Por Luana Leal
Jorge Amado foi um dos responsáveis
pela propagação da cultura brasileira ao redor do mundo - Foto: Arquivo
Nacional / Wikimedia Commons
Indagado por ninguém menos que Clarice Lispector há exatos 50 anos atrás, Jorge
Amado respondeu, modesto, sobre qual crítica faria aos seus próprios livros.
“São rudes, sem finuras nem filigranas de beleza. São pobres de linguagem e
muitíssima coisa mais. São livros simples de um contador de história da Bahia”,
disse o autor.
Filho de Oxóssi e do
sul do estado, mais precisamente da fazenda Auricídia, no distrito de Ferradas,
município de Itabuna,
o baiano foi um dos responsáveis pela propagação da cultura brasileira ao redor
do mundo. Não à toa o sucesso com as adaptações para o cinema, teatro e
televisão, sendo o escritor de literatura brasileira com mais traduções: são 53
países e 49 idiomas, entre eles, o raro esperanto.
Livro no idioma esperanto | Foto: José Simões / Ag. A TARDE
Engana-se quem
acredita que ‘Capitães
da Areia’ (1937) foi a primeira publicação do universo
amadiano. Lá em 1929, aos 16 anos, ele já mostrava interesse pela escrita,
tendo publicado a novela ‘Lenita’ com
os amigos Edison Carneiro e Dias da Costa. Entretanto, não considerava o livro
como a primeira obra oficial, tecendo críticas de ‘imaturidade’ ao texto. O
título de livro inaugural da carreira é dado, então, ao exemplar ‘O País do Carnaval’,
publicado em 1931.
- Primeiro exemplar de
'Lenita' |Foto: José Simões / Ag. A TARDE
- Primeiro exemplar de 'País
do Carnaval' |Foto: José Simões / Ag. A TARDE
Fama vs Processo Criativo
Caso fosse um ditado
popular, “O mar não se limita a um rio” seria a sublime definição para o autor,
que não se restringia a uma única perspectiva ou experiência. Em vida, atuou
como militante, membro ativo do Partido Comunista Brasileiro
(PCB), deputado
federal mais votado do Estado de São Paulo (1945), Obá de Xangô no
Ilê Axé Opô Afonjá, ocupante da cadeira de número 23 na Academia Brasileira de Letras (1961),
além de colecionar prêmios na Itália, União Soviética, França, entre outros países.
Jorge Amado e Zélia Gattai | Foto: Arquivo A TARDE
O reconhecimento internacional era
razão pela qual o escritor preferia se isolar no processo de criação das obras,
buscando refúgio em sítios de amigos, em sua casa no bairro de Itapuã, ou no
apartamento que tinha em Paris - este já no final da vida.
Jorge
Amado tinha uma vida muito rica de experiências, ele tinha amigos, ele se
envolvia com várias questões da cidade, do país, desde sempre. O perfil dele
era de uma pessoa muito ligada ao outro, até a obra dele reflete issoJoselia Aguiar -
autora de ‘Jorge Amado - Uma Biografia’
- Diego Rivera, Amado e Neruda
em 1954 |Foto: Arquivo Pessoal
- Amado, Caymmi e Carybé
|Foto: Arquivo Pessoal
- Jorge Amado e Jean-Paul
Sartre |Foto: Arquivo Pessoal
O fato é: na lista do que fazer em
Salvador, a visita a Jorge Amado aparecia no topo e como prioridade; todos
queriam prosear com o itabunense.
Residência onde morou Jorge Amado e
Zélia Gattai, Casa do Rio Vermelho é aberta a visitação | Foto: Olga Leiria / Ag. A Tarde
Luta e liberdade
Questionado sobre o
filho preferido dentre os escritos, Jorge Amado surpreendeu ao responder que
não seria uma das mulheres protagonistas das tramas, como Tieta, Gabriela, Dona Flor ou
Tereza Batista. O defensor dos pobres e marginalizados, Pedro Archanjo, foi
escolhido em entrevista à TV Cultura, em 1984.
Luta
a vida toda contra o preconceito. Que nascido do povo, se transforma num grande
sábio. Que sabe as coisas. Aprendidas por um lado na vida, por outro lado nos
livros. Pedro Archanjo é um personagem que estimo muito. Ele é a mistura de
muita genteJorge Amado
Em ‘Milagres do Povo’, canção feita por Caetano Veloso em
homenagem a Jorge Amado, o cantor eterniza as aspas cedidas pelo escritor ao
jornal O Pasquim, em 1970, quando diz: “Mas que já vi o candomblé fazer
milagres, já vi, e são milagres do povo".
Quem é ateu e viu milagres como eu / Sabe que os deuses sem Deus / Não
cessam de brotar, nem cansam de esperar - ‘Milagres do Povo’, Caetano Veloso
Jorge Amado e Caetano Veloso | Foto: Xando Pereira
A obra representa a luta incessante de
Amado contra as desigualdades sociais, em especial ao racismo religioso. Quando
deputado federal pelo PCB, foi o autor do §7° do art. 141, presente na
Constituição de 1946, que declarava e reconhecia a liberdade de crença.
§ 7º
- É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou
os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica
na forma da lei civilConstituição de 1946
Os fatos levam a refletir sobre a
escolha de Pedro Archanjo como filho favorito. Seria o personagem, voz dos
menos favorecidos, um alter ego do autor?
“Pode-se dizer que
Pedro Archanjo é, sim, o alter ego de Jorge Amado. Ele é a união do autor com
respeitadíssimo Miguel Santana, Edson Carneiro e Martiniano do Bonfim, que era
um outro intelectual negro, pintor de paredes e que era babalaô, o “pai do
segredo”, do Ilê Axé Opô Afonjá”, explica Gildeci Leite, escritor e professor
de literatura da UNEB.
Lado infantil do
universo amadiano
Com a vida pessoal
sendo um livro aberto, Jorge
Amado foi pai de três filhos: Eulália, carinhosamente apelidada de
Lila (1935-1949), João Jorge e Paloma; os dois últimos, fruto do grande amor
com a escritora e fotógrafa Zélia Gattai, com quem casou-se em 1976 e viveu até
os seus últimos dias, em 2001.
Jorge Amado com os filhos João Jorge e
Paloma |
Foto: Zélia Amado | Cedoc A TARDE
Um dos grandes sucessos amadianos é a
historieta infanto juvenil ‘O gato Malhado e a
andorinha Sinhá’ (1976). O livro foi um presente de
aniversário para João Jorge quando este completou um ano, em 1948. Sem intenção
de publicá-lo, ficou perdido até 1976, quando o jovem, vasculhando seus
guardados antigos, reencontrou o texto e o transformou em obra com ilustrações
inéditas do grande amigo e mundialmente reconhecido artista plástico Carybé.
A obra se tornou um dos best-sellers da
carreira do autor, que também lançou outra literatura infantil poucos anos
depois, chamada ‘A bola e o goleiro’ (1984).
- 'A bola e o goleiro' e ‘O
gato Malhado e a andorinha Sinhá’ |Foto: José Simões / Ag. A TARDE
- Primeira e última edição de
‘O gato Malhado e a andorinha Sinhá’ |Foto: José Simões / Ag. A TARDE
- Ilustrações de ‘O gato
Malhado e a andorinha Sinhá’ |Foto: José Simões / Ag. A TARDE
Sobre o estilo de escrita, por muito
tempo criticado como ‘simples’ ou ‘bruto’, Jorge Amado respondeu a Lispector,
em entrevista a Manchete (1975):
"Eu escrevo como me agrada; não há escritor mais livre neste país.
Não tenho compromissos senão comigo mesmo: nem com modas, nem com escolas, nem
com circunstâncias, nem com academias, nem com editores, nada. Tenho um único
compromisso: com o povo – e não é demagogia, sou anti demagogo. Com o povo,
porque creio que meu dever de escritor é servi-lo. Quanto ao público, é ele que
tem compromisso comigo e não eu com ele” - Jorge Amado
Amado nos deixou no dia 6 de agosto de
2001, quatro dias antes de completar 89 anos. O autor presenteou o mundo com um
rico legado para a literatura e cultura brasileira e baiana, registrados em
suas obras e disponível para imersão ao público nas atrações turísticas Fundação Casa de Jorge Amado, localizada no
Pelourinho, e Casa do Rio Vermelho,
antiga residência onde viveu em Salvador.
É também em honra a ele que acontece o
maior evento cultural literário da Bahia, a Festa Literária Internacional do
Pelourinho (Flipelô). Inspirada na Festa Literária Internacional de Paraty
(Flip), o evento acontece desde 2017 e é realizado pela Fundação Casa de Jorge
Amado. A edição 2025, que acontecerá de 6 a 10 de agosto, vai homenagear o
romancista, dramaturgo e autor de telenovelas Dias Gomes (1922-1999),
conforme informação antecipada ao Portal (A TARDE).