J. B. Pessoa
Ronaldo
Ramos seguia pela avenida sem nenhum ânimo pela festividade que estava
começando naquele entardecer. Caminhou até a praça do poeta e prostrou-se, totalmente
desanimado, no baluarte que separava a praça das ladeiras que davam acesso à
parte baixa da cidade. Naquele momento alguns foliões subiam pelo íngreme
declive de uma delas, cantando cantigas de letras marotas do carnaval
tradicional, ainda trajando seus uniformes de trabalho, indicando que a farra
começou logo após o término do expediente daqueles alegres comerciários. A
concessão do governo ditatorial à chamada Semana Inglesa prevalecia já havia
alguns anos; embora alguns patrões recusarem-se a cumprir a lei. Naquele sábado
carnavalesco, os trabalhadores da maior cidade histórica do país, fizeram valer
seus direitos, obrigando os gerentes a fecharem os estabelecimentos comerciais
no horário designado pelo regulamento. Ronaldo quedou-se momentaneamente,
seduzido por aquela alacridade simplória de pessoas que sabiam viver, e os
acompanhou com o seu olhar melancólico até o grupo sumir, descambando para um
determinado terminal de ônibus coletivos, que os conduziria até os subúrbios da
cidade, onde moravam.
O
anoitecer despontou sorrateiramente como se fosse cúmplice de uma série de
fatores que acabrunhavam a sua deprimida alma. Nesse momento, o rapaz olhou
para o mar e vislumbrou os últimos clarões do por do sol. Um leve sorriso
acometeu em seu rosto tristonho, lembrando-se de que, talvez, a sua cidade
fosse a única do mundo, onde o Sol nascia e morria no mar. Tirou do maço um
cigarro e colocou em seus lábios, acendendo-o em seguida. Tragou a fumaça com
avidez, sentindo a noite que se formava, semelhante a um filme preto e branco.
Nesse momento, lembrou-se das românticas películas que assistia com a sua mãe,
quando ainda era menino, e uma doce saudade aflorou em seu coração,
esquecendo-se, por uns instantes, das amarguras que o corroíam. No último novembro,
tinha completado quarenta anos e no ano que se seguia, elucubrava a sua vida,
sobre o seu passado e a sua solidão. Sentia-se velho e alquebrado, sem nenhuma
esperança no porvir. Havia passado onze anos, desde que fora abandonado no
altar pela noiva e, até aquele dia, lutava contra uma depressão que o castigava
impiedosamente. Era um funcionário público. Pertencente ao primeiro escalão,
ele foi progressivamente decaindo, em virtude de sua incorruptível atuação;
desagradando a velhos amigos e alguns familiares, inclusive os da própria
nubente, sua namoradinha de infância.
Já era
noite formada, quando Ronaldo abandonou o baluarte, pois o número de pessoas
que preferiam o local aumentava constantemente, e foi sentar-se nas escadarias
de um prédio, onde outrora havia um famoso teatro. Tirou do bolso um cantil
prateado e tomou um trago de uísque, acendendo novamente outro cigarro. Nesse
momento, escutou uivos e berros de um monstrengo elétrico que percorria a rua
de luxo da cidade, vindo do centro histórico. O monstrengo estacionou na praça,
na confluência de duas vias, como se fosse um deus pagão adorado por milhares
de fieis, que o prestavam culto e venerações. No cume daquele artefato, rodeado
por uma orquestra singular, estava uma espécie de sacerdote ou pajé, de gênero
indefinido, berrando num sinistro canto, que era o rei da cidade. O rapaz notou
que aquela seita tinha uma espécie de hábito, de tecidos diversos e cores
berrantes, denominado de
mortalha.
Havia algumas fantasias diversificadas que não faziam parte do cortejo,
pertencentes a uma época que aquela seita antropófaga destruía aos poucos.
Misturados, democraticamente, na inócua festividade aos pierrôs e arlequins, o
termo mortalha pareceu para Ronaldo bastante apropriado àqueles foliões, que
tinham renegado as velhas tradições. Usando como incenso, uma erva especial que
dava aos adeptos daquela seita, percepções ultra valoradas, eles se rendiam às
delirantes concepções artísticas de falsos intelectuais, que emergiam
constantemente na cidade, a qual estava se tornando a capital da moda párvoa.
À
medida que o tempo passava a aglomeração de pessoas com todos os tipos de
fantasias, começou a despertar no rapaz uma sensação de pânico. Ele então
percebeu que a verdadeira solidão é se sentir sozinho em uma multidão. Nesse
momento, apareceu na sua frente, a figura sinistra do Zé do Caixão, personagem
famosa de um filme de terror nacional, segurando pela correia um aterrorizante
cão, que mais parecia um lobo, o qual lhe lançou um olhar demoníaco, rosnando
raivosamente. Zé do Caixão encarou o rapaz e, arregalando os olhos, o ameaçou
numa arrepiante voz:
- Esta
noite levarei a tua alma!
Ronaldo
olhou para aquela corporatura fantasmagórica com aflição e tremeu de pavor ao
ouvir a sua apavorante gargalhada. Simultaneamente apareceram outras duas
figuras, as quais formavam o Diabo e a Morte. A noite tornou-se mais escura e
ele não conseguia divisar o horizonte. Parecia a Ronaldo, que ele se encontrava
em um grande buraco. A Morte vestida numa fantasia negra, colante em seu corpo,
tinha o desenho que um esqueleto branco, pintado com tinta acrílica, que
resplandecia no escuro. Ela olhou para Ronaldo, indicando com sinais que estava
de olho nele, enquanto o Diabo sussurrava ao seu ouvido:
- Esta
noite encarnarei em teu cadáver!
Ao
ouvir o hediondo prenúncio, o rapaz fugiu apressado daquele lugar, enquanto
tentava controlar o pânico que tomava conta de toda a sua alma. Respirou fundo
e foi sentar-se em um banco de outra praça, onde não se ouvia a cantoria e a
zoada dos equivocados ideólogos. Ainda bastante agitado, o rapaz tomou outro
trago do seu cantil, sentindo o efeito inebriante do álcool desvanecer o medo
que sentia. Baixou as vistas e tentou chorar, pois estava sentindo uma profunda
pena de si mesmo. Nenhuma lágrima veio em seu socorro. Tinha chorado tanto na
vida, que suas lágrimas haviam secado. Nesse momento ouviu uma doce voz, que o
perguntou:
-
Porque o meu filhinho está tão triste?!
Ronaldo
levantou os olhos e viu uma mulher fantasiada de lavadeira, com uma trouxa de
roupas na cabeça. Era jovem e bastante bonita. Dela desprendia uma suave
fragrância de rosas, que era tão natural, como se as flores não tivessem sido,
ainda, colhidas. Ela pegou uma cabaça que levava a tiracolo; despejou o seu
conteúdo numa pequena cuia e deu para Ronaldo beber. Enquanto solvia a bebida,
o rapaz percebeu que o líquido tinha o sabor de um finíssimo vinho, jamais
concebido por qualquer mortal. Ronaldo observava a mulher com contentamento,
que era branca de cabelos lisos e negros. Parecia muito com a sua trisavó
portuguesa, a qual ele só conhecia por fotografias. Ela sentou-se junto dele e
começou a acariciar os seus cabelos, dizendo: - O meu filhinho é guerreiro!
Sempre combateu os seus inimigos sem temor! Não tenha medo da solidão, pois o
meu filhinho nunca está sozinho. Não ligue para os invejosos e nem lhes dê
explicações. É um bando de hipócritas. O meu
filhinho
é um doce menino! Nunca deixe morrer esse menino que vive em você e não espere
muito desse louco mundo de fariseus!
Concluída
a mensagem, a mulher se despediu de Ronaldo com um beijo em seu rosto e sumiu
na multidão. O rapaz ficou inerte por alguns segundos, sem entender muito bem,
o que tinha lhe acontecido. As palavras da encantadora lavadeira encheram-no de
ânimos e a bebida que ela lhe ofereceu, tinha dissipado totalmente, o seu
pânico. Naquele momento, ele sentia uma sensação de conforto, que aliviava o
seu ser cansado. Ficou quieto em seu canto, saboreando o uísque que trazia
consigo. Esqueceu-se completamente do monstrengo elétrico, e dos adeptos
daquela sistemática estética de modernosos. Ronaldo acendeu um cigarro e ficou
brincando com a fumaça, fazendo anéis, que se dissolviam em poucos segundos. De
repente, notou que a noite tinha se modificado. Não tinha mais a característica
de um filme preto e branco, e sim, de um belíssimo colorido Vista Vsion. Nesse
ínterim começou a ouvir numa maravilhosa voz, uma belíssima melodia dos velhos
tempos:
Eu
perguntei a um malmequer
Se meu
bem ainda me quer,
Ele
então me respondeu...
O
rapaz levantou-se do banco e olhou ao redor, para averiguar de onde vinha a
suave canção. Na calçada de um luxuosíssimo cinema, vizinho de onde funcionava
um famoso café, pode divisar ao longe, uma bela garota a qual cantava, olhando
em sua direção. Ronaldo caminhou até aquele café que estava abarrotado de
foliões trajando fantasias tradicionais, bailando em volta da moça, que cantava
e continuava a olhar para ele. Ronaldo foi se aproximando e, ao chegar a certa
distância parou; tolhido pela timidez que sempre o acompanhou. Nesse momento
verificou que estava diante da menina mais linda que os seus olhos já viram.
Sim: se tratava realmente de uma menina; fantasiada de fada com belíssimas asas
de borboleta. Aparentemente, não deveria ter mais de quinze anos. Embora
totalmente fascinado pelo doce encanto que o tinha acometido, tratou de sair
dali imediatamente. Porém, ao virar as costas, ouviu da menina uma pergunta
acompanhada de um suave pedido:
- Oh
Inho!... Por que vais embora?... Fica um pouco comigo! Ronaldo voltou-se
subitamente ao ouvir aquele apelo. Como a menina continuava a olhar para ele
com uma imensa ternura, resolveu adentrar naquele ambiente acolhedor para
cumprimentar a bela fadazinha e ganhou dela um sorriso, que era lindo como um
alvorecer. O rapaz pegou na mão da garota e levou aos seus lábios, num ósculo
delicado. A seguir, se apresentou:
- Boa
noite! Meu nome é Ronaldo Ramos. Sou...
- Oh
Inho, não estás me reconhecendo?
Completamente
embaraçado, perante a pergunta da encantadora jovem, o rapaz elucidou o seu
esquecimento, alegando haver bebido um pouco. A garota o convidou a acomodar-se
numa mesa, separada de outras pessoas. Ronaldo olhou bem para a menina,
procurando lembrar-se de onde a tinha conhecido. Notou que ela era dotada de
boa altura, com um corpo perfeito. Tinha os cabelos doirados com belíssimos
olhos azuis, que resplandeciam diante das luzes daquela atmosfera festiva. Como
tinha muitos parentes, inclusive no exterior procurou adivinhar, usando o
tratamento na segunda pessoa:
-Tu não
és a minha prima sobrinha portuguesa?
- Não!
Sou a tua Inha, a garota de teus sonhos!
Ronaldo
emitiu um leve sorriso, julgando que a linda menina estivesse flertando
consigo. Como era considerado um homem atraente, e no carnaval as adolescentes
ficam mais afoitas, resolveu brincar um pouco com a garota, perguntando:
-Tu
não achas que és jovem demais para mim?
- Oh
Inho! Tu realmente não te lembras de mim?!
- Para
ser honesto contigo, não!
Nesse
momento, uma pequena banda de foliões, a qual procurava preservar as antigas
tradições do carnaval, apareceu no recinto dando o seu recado, cantando:
-
Tanto riso, oh quanta alegria!
Mais
de mil palhaços no salão.
Arlequim
está chorando,
Pelo
amor da colombina!
No
meio da multidão.
A
garota pegou Ronaldo pela mão e começou a brincar com ele pela calçada,
juntamente com outros jovens foliões, que adoravam as antigas marchinhas
carnavalescas. A banda chegou ao final da canção, com sua letra sugestiva:
- Vou
beijar-te agora, não me leves a mal, hoje é carnaval!
Simultaneamente,
a maioria dos casais trocou beijos de amor, naquele delicioso momento. Ronaldo,
completamente enlevado naquela conjuntura, fez o mesmo com a linda fadazinha e
foi correspondido pela menina com uma intensa paixão. O rapaz ficou por alguns
segundos mirando aquela beleza singular, completamente enamorado pela
misteriosa garota que olhava e sorria para ele, com muito carinho. Um tanto
indeciso com a situação, ele tirou do seu bolso o cantil prateado e tomou um
trago da bebida, para conter a emoção que sentia. O rapaz e a moça permaneceram
juntos um bom tempo, bailando com animação, outras românticas marchinhas de
outrora. Subitamente, a banda se retira daquele lugar, cantando e dançando,
arrastando muitos foliões, deixando o café quase vazio:
- Ó
abre alas que quero passar!...
Ronaldo
conduz a garota para a mesa e lhe oferece uma bebida, enquanto pede ao garçom
uma dose de uísque. Ela solicita um coquetel de frutas sem álcool. Um tanto
incomodado por estar com uma adolescente em um bar, o rapaz comenta a sua
condição e a menina afirma com serenidade:
- Não
te preocupes querido, que tenho mais de dezoito anos! O rapaz olha para a
garota sem parecer acreditar. Percebendo o seu acatamento, a moça afirma para
ele, dizendo com discernimento:
- Sem
dúvidas, não te lembras de mim! Eu sou uma fada semelhante a Sininho, enquanto
tu és uma espécie de Peter Pan! Eu sou a tua Inha e tu és o meu Inho!
Ronaldo
ficou encantado ao ouvir aquela simpática profecia. Como era carnaval, julgou
que tudo aquilo fosse uma brincadeira de menina, dando continuidade à fantasia
que usava. Estava feliz demais na companhia da graciosa jovem e resolveu aderir
a sua charmosa alegoria. Percebendo o seu ceticismo, a menina lamentou com
tristeza:
- Oh
Inho, vejo que não acreditas em mim!
O
rapaz observou a menina com seriedade, procurando averiguar se ela estava
caçoando dele. Depois sorriu contente, olhando para a bela adolescente com
ternura, pois sentiu que não havia nela a menor malícia. Percebendo a natureza
daquela
manifestação e diante de tamanha sinceridade, o rapaz começa a vislumbrar uma
vaga recordação, a qual ele não sabia definir com precisão. Concentrou-se em
sua infância e, de repente, tudo lhe veio à mente. Lembrou-se de que, quando
ele ainda era um bebê, aquela fadazinha o visitava e ele a chamava de Inha.
Olhou para a garota, sorriu e exclamou:
-
Sim!... Agora sim, eu me lembro, com se fosse um sonho! Quando eu era muito
pequeno e acordava na noite, tu vinhas acalentar o meu sono, com uma cantiga de
ninar!
A menina
sorriu e exclamou feliz:
- Isso
Inho, finalmente tu te lembras de mim e tu sabes quem eu sou!
Ronaldo
não conseguia acreditar no que estava lhe acontecendo. Subitamente, tudo fazia
sentido para ele. Sentiu que, naquele mágico momento, a sua vida encaminhava
para uma solução definitiva. Doravante não ligaria mais para as críticas de
seus opositores, pois ficou ciente de que, o tempo era seu aliado. Ele percebeu
então, que nunca havia se sentido, realmente, um adulto na acepção íntegra da
palavra. Jamais teve algum tipo de ambição e não havia coisa alguma que ele
desejasse para si mesmo. Sempre sentiu que lhe faltava alguma coisa, algo que o
seu raciocínio não definia. Alguma coisa que, no fundo do seu coração, ele
procurava e não sabia bem o que era. Compreendeu que ali estava o que ele
sempre desejou: ela, a sua menininha, a sua Inha, a sua alma gêmea. O rapaz
afagou as mãos da bela menina e as beijou em seguida, desejando saber mais a
respeito do mundo que ela pertencia. Ela delineou em poucas palavras a sua
natureza e o mundo encantado em que vivia. Afirmou que as fadas eram mistas de
humanos e anjos e que a Terra era o planeta natural delas e de todos os seres
etéreos, abaixo dos anjos imaculados de Deus. A Terra apenas hospedava os seres
humanos, os quais eram anjos decaídos, evoluindo para chegar ao seio de Deus.
Os anjos decaídos não foram expulsos do Paraíso; saíram dele por vontade
própria, exercendo o seu livre arbítrio. Deus jamais expulsaria um filho da
Casa Paterna.
Ronaldo
ouviu, maravilhado, o relato da sua linda fadazinha. Esperando dela uma
existência venturosa, comum aos dois, perguntou:
- O
que será do porvir?
-Ainda
não é o momento de estarmos juntos, meu querido! Eu nunca te abandonei! Apenas
sentia saudades de conversar contigo e sentir o teu olhar no meu olhar. Para
poder estar aqui, ao teu lado, precisei usar o grosseiro envoltório humano, o
que me deixa fraca como qualquer pessoa comum. Por isso pedi permissão à Rainha
Morgana, que me recomendou muito cuidado.
- Quem
é a Rainha Morgana?!
- A
nossa rainha, a Rainha das fadas.
- Por
que é tão perigoso assim? – Perguntou Ronaldo, preocupado com a segurança da
sua bela fada.
Querendo
alertar o rapaz sobre os inimigos naturais dos seres etéreos e humanos, ela
proferiu em tom sério e cauteloso:
-
Existem as criaturas das trevas, que vivem nos umbrais, as quais atuam
livremente na face do planeta. Os humanos, por terem um egocentrismo acentuado,
são sempre vítimas desses seres, os quais então na mais baixa posição, da
evolução espiritual dos anjos decaídos. No momento três deles estão a minha
procura, disfarçados de foliões fantasiados.
Lembrando-se
dos três tipos que o abordaram no começo da noite, o rapaz explanou para a
garota:
- Mais
cedo, antes de te encontrar, eu me deparei com uns caras, que me ameaçaram.
Principalmente um fantasiado de Zé do Caixão!
- São
esses mesmos! Mas não te preocupes com eles, que não podem fazer nada conosco,
antes da meia noite!
-
Antes da meia noite?! Faltam poucos segundos para isso! – Disse Ronaldo para a
sua fadazinha. Subitamente as sonoras badaladas do relógio de uma igreja nas
adjacências se fizeram ouvir:
- Como
assim?! Não são só onze horas da noite? – Perguntou a menina assustada, com a
novidade.
-
Estamos adiantados em uma, devido o horário de verão! – Afirmou o rapaz,
surpreso com a aflição da garota.
- Oh
Inho, eu não contava com esse imprevisto. Bem que a rainha me alertou sobre as
leis e costumes locais! Devemos ir embora depressa daqui! – Alertou a
fadazinha, olhando para todos os lados, preocupada com aquela situação.
Ronaldo
abraçou a menina, procurando lhe dar um pouco de conforto e ambos saíram
apressados daquele local. De repente, uma estranha ventania varreu toda a praça
e o sinistro uivo de um lobo se ouviu ao longe. O rapaz notou que, com o
avançar das horas, os bares foram sendo fechados e a localidade ficou quase
vazia, Nesse momento Ronaldo percebeu que a noite perdeu o seu colorido e em
seguida a aparência noir se fez sentir, trazendo um pouco de insegurança para
ele. A fada lhe avisou que os vilões estavam por perto e só havia um local,
onde eles poderiam ficar em segurança até o amanhecer. Ela olhou para o rapaz
dizendo com ansiedade:
- Oh
Inho, nós temos que seguir até o santuário da sagrada colina!
Ronaldo,
querendo dar mais confiança à sua fadazinha, assegurou:
-
Estarei contigo querida e nada poderá nos acontecer!
Naquela
hora os ônibus já tinham sido recolhidos. Ronaldo tentou encontrar um taxi, mas
foi em vão a sua procura. Um finíssimo e frio sereno começou a cair, trazendo desconforto
para ambos. Os dois seguiam apressados pela avenida vazia, quando depararam com
as horripilantes figuras: Zé do Caixão, de cartola e bengala na mão, usando uma
capa escura sobre a casaca negra, segurando o seu lobo; o Diabo, com sua
fantasia vermelha e um tridente nas mãos; e a Morte, a qual resplandecia o seu
esqueleto na sombria hora noturna. Vendo aqueles espectros, a menina exclamou
com aflição:
- Veja
Inho, são eles!
O
rapaz pegou a menina pela mão e ambos saíram correndo, entrando nas estreitas
ruas do centro histórico, sendo perseguidos pelos algozes vilões. Após algum
tempo, a fada carente do seu encantamento, clamou exausta:
-Oh
Inho, eu não posso mais. Estou cansada!
Imediatamente
Ronaldo ergueu a sua fadazinha e a carregou nos seus braços, verificando que
ela era leve como um bebê. Correu mais rápido ainda, subindo e descendo as
famosas ladeiras da sua amada cidade. Depois de algum tempo nessa agonia,
acabou chegando num local bastante movimentado. Nesse momento avistou uma
senhora parda, com seus trajes tradicionais, sentada em um banco, a qual vendia
em seu tabuleiro, as famosas iguarias da cidade. Indagando-a onde ele poderia
encontrar uma condução, ela observou:
-
Nessa madrugada é quase impossível, devido o carnaval! Ronaldo observou aquele
ambiente, com angústia. A mulher olhou para ele com curiosidade e, depois
percebendo que o rapaz carregava uma menina nos braços, perguntou:
- Sua
filha está doente?
Ronaldo
respondeu que sim e ela o advertiu:
- O
Senhor está entrando numa zona do baixo meretrício, que é muito perigosa. Para
evitar isso, suba aquela ladeira à esquerda, que logo depois, o senhor encontra
um pronto socorro.
Ronaldo
agradeceu a amável senhora e partiu dali apressado. Depois de percorrer muito
tempo pelas ruas desertas, naquela madrugada, verificou que não estava sendo
seguido e suspirou aliviado, dizendo:
- Acho
que estamos fora de perigo!
Nesse
momento a sua Inha lhe abraçou e um suave e indescritível perfume penetrou em
suas narinas, transportando-o aos longíssimos tempos de sua primeira infância,
quando ele era ainda um bebê e recebia a visita daquela linda fadazinha. Afagou
seu dourados cabelos, osculando todo o seu rosto, dizendo:
-
Nunca irei abandonar a minha Inha e jamais deixarei algo lhe acontecer!
- Eu
sei disso, querido. Sempre soube.
Ronaldo
sorriu feliz e continuou a sua especial odisseia, carregando a sua bela
fadazinha que, apesar do invólucro humano, era leve como uma pluma. A seguir
chegou ao final de uma comprida ladeira, a qual começava na parte baixa da
cidade. No mesmo instante, a fadazinha avistou, ao longe, o famoso santuário e
disse contente:
- Olha
Inho, lá está ela! A sagrada colina.
As
duas almas gêmeas seguiram felizes, abraçados um ao outro, sentindo o sabor do
paraíso. Desceram pela a longa ladeira, convictos de que estavam livres de
ameaças. Porém, chegando ao inicio da subida, perto do terreiro de uma famosa
mãe de santo, encontrou os três facínoras de tocaia. Nesse momento, Ronaldo
respirou fundo e dominou o medo que sentia. Colocando a sua fadazinha sentada
em cima de um muro, deixou-a em segurança, livre do ataque do lobo. A seguir,
pegando um porrete que encontrou no chão, se prontificou a enfrentar os três
canalhas. Inesperadamente, ouviu uma suave e poderosa voz lhe saudando:
- Olá
Seu Ronaldo! Se a briga for com o senhor, eu entro do seu lado!
O
rapaz olhou a sua direita e viu um senhor escuro de cabelos e barbas grisalhas,
fumando o seu cachimbo. Reconheceu-o imediatamente. Era um velho amigo do
passado, o qual sempre o protegeu do perigo e o carregava para casa, em suas
famosas bebedeiras. Ele sempre se apresentava como o amigo Preto Velho. Graças aos
seus conselhos, Ronaldo se livrou de um provável alcoolismo. Os três
malfeitores, ouvindo a pretensão do velho, caíram numa ruidosa gargalhada e
começaram a mangar dele. Zé do Caixão disse com arrogância:
- Se
esse coroa aí não é de nada, imagine você velho gagá!
Preto
Velho estalou os dedos e o feroz lobo se transformou em um dócil cachorro.
Desceu à fadazinha do muro e colocou aquele belo cão para lhe fazer companhia.
Subitamente, o inconfundível som dos atabaques e berimbaus começou a ritmar na
madrugada, encobrindo a sinfonia dos galos, que anunciavam aquele amanhecer.
Nesse momento, o velho começou a sorrir e gingar na frente dos malandros.
Enquanto isso acontecia, apareceram as jovens filhas de santo do famoso
terreiro e fizerem uma roda em volta do capoeirista, e dos três meliantes.
Enquanto a luta prosseguia, elas deram suas mãos umas às
outras,
começando a girar em volta dos lutadores e cantar uma conhecida cantiga de
roda, modificando, um pouco, a sua letra:
- Pai
Francisco entrou na briga,
Batendo
com o pé e com a mão!
Dingue,
dingue e dingue dão!
Dingue,
dingue e dingue e dão!
Deu
uma surra nos valentões,
E Pai
Francisco salvou o seu irmão!
Como
ele vem todo contente,
Deixando
surrados os bobalhões!
Como
ele está sorridente
Depois
de surrar os meliantes!
Logo
após a mostra perfeita daquela arte, o pessoal do terreiro ficou em volta do
velho, saudando a sua destreza. Todos pareciam conhecer a natureza da bela
fadazinha. Nesse momento, os vilões surrados levantaram-se do chão e trataram
de sumir dali imediatamente, abandonando o seu cão. Principalmente quando os
capoeiristas do terreiro botaram os três para correr. A mãe de santo assegurou
a Ronaldo e sua bela fada, dizendo:
- Não
se preocupem meus filhos! Fiquem sossegados, que aqueles três não irão
incomodá-los. Os meus meninos só vão deixar eles, além do velho farol da praia
norte.
Despedindo-se
de todos e agradecendo a grande ajuda, Ronaldo e sua fada seguiram contentes
para o santuário da sagrada colina. Faltava apenas uma hora para o amanhecer.
Enquanto andavam, iam escutando a cantoria dos galos, sentindo os aromas
peculiares da aurora, anunciando um dia perfeito. O rapaz não carregava mais a
garota. Seguiam juntos, de mãos dadas, como um belo casal de namorados; felizes
pelo reencontro e por tudo terem terminado bem. Quando chegaram à colina e
começaram a subir os primeiros degraus da milagrosa igreja, o final da noite se
transformou, novamente, em um belo colorido. Nesse momento, aquela maravilhosa
fada desfez-se do seu invólucro humano e apareceu para Ronaldo, mais bela
ainda, na sua forma verdadeira; portando na cabeça um diadema dourado,
cravejado de cores cintilantes e usando um finíssimo vestido azul, cujas
estamparias, formadas por pontos brilhantes e coloridos, pareciam desvinculados
do próprio tecido. A fada pegou na mão de Ronaldo, fazendo-o sentir o êxtase
profundo dos seres etéreos. O suave perfume que dela exalou, deixou-o
totalmente enlevado no mágico momento. De repente o rapaz começa a levitar e,
surpreso com tudo aquilo, perguntou a sua fadazinha:
- Oh
Inha, o que está nos acontecendo?
- Uma
situação puramente etérea, querido! Tu estás entrando no meu círculo
dimensional, no qual seguiremos em total segurança, sobrevoando a cidade, até a
tua morada!
Nesse
mesmo instante o rapaz, conduzido pela sua bela fadazinha, elevou-se às
alturas, deslumbrado com o que via. Sentiu que não estava voando, apenas o
efeito gravitacional da matéria deixou de atuar, numa magia delirante.
Observando a cidade naquela altura, notou que ela era mais bela do que ele
imaginava. Transportado até o prédio onde ele residia a sua fadazinha entrou
pela janela do seu quarto e o colocou em sua cama, como se ele fosse ainda um
bebê. Ela o mirou ternamente e beijou os seus lábios, dizendo:
- Eu
quero que o meu Inho durma tranquilo e nunca esqueça a sua Inha! Não temas
nada, pois és muito amado! Em um belo dia, num futuro ainda
distante,
eu virei te buscar. Até lá sejas feliz! – inesperadamente, ela elevou-se no ar,
tornando-se pequenina, do tamanho de um dedo indicador. Pegou a sua varinha de
condão e salpicou milhares de estrelinhas brilhantes por todo o quarto do seu
Inho, purificando todo o ambiente. Depois disso, jogou-lhe um beijo com as
mãos, acenando sorridente para o sonolento rapaz e saiu pela janela, deixando
atrás de si, a sua suave fragrância.
Era
quase meio dia, quando Ronaldo despertou naquela manhã, ouvindo o som
estridente de um trio elétrico, que passava por perto. Levantou-se da cama e se
dirigiu para a sala, indo até a janela para observar a folia. O dia estava
maravilhoso, dando-lhe uma sensação de conforto e bem estar. Morava no terceiro
andar de um novo prédio, na principal avenida da cidade, ápice de toda aquela
conjuntura. Apesar de não gostar de trios elétricos, não os considerava mais
nenhum mostrengo. “Afinal havia gosto para tudo”, pensou ele no momento,
relembrando um ditado popular que dizia: “O que seria do azul se todos
gostassem do vermelho”. Entretanto, preferia uma frase de um poeta que dizia:
“Arte é uma questão de gosto; contudo, gosto é uma questão de cultura”. Saiu da
janela e foi sentar-se num sofá, perto da televisão. Lembrou-se de sua aventura
na noite anterior. Teria ele sonhado?!... Perguntou isso a si mesmo e não
encontrou uma resposta razoável para aquele acontecimento. “Parecia tão real!”
Pensou ele no momento, considerando como uma coisa fantástica toda aquela
ocorrência. Lembrou-se que tinha saído de casa no entardecer do dia anterior;
porém, não conseguia se lembrar de como tinha chegado até a sua casa. Não
conseguiu lembrar-se de nada! Só do sonho maravilhoso que teve com a sua linda
fadazinha. “Teria sido mesmo um sonho?!” Perguntou a si mesmo, novamente, e
teve dificuldade em achar uma resposta racional. Sorriu feliz com toda aquela
circunstância e chegou à ambígua conclusão: “Pode ser que sim, mas pode ser que
não!” Levantou-se do sofá e foi até a mesa, para pegar uma garrafa de uísque e
tomar um trago. Notou que não havia em si, nenhum sinal de ressaca da bebedeira
daquele sábado. Tentou ascender um cigarro e, sentindo que, não precisava mais
daquele achaque, amassou o maço, jogando-o ao lixo. Em seguida, não pensou
muito e despejou todo o conteúdo da garrafa na pia. Após aquele ato reflexivo,
foi até a geladeira à procura de algo saudável para beber. Encontrou um pacote
de suco de laranja, bebendo todo o liquido com prazer. A seguir, foi
refugiar-se na sua rede, armada na área de serviço do seu apartamento e foi ler
um bom livro, sentindo que um novo capítulo, iria começar em sua vida.
Sarava bonjour!
ResponderExcluirBoa crônica.
Abraços
Heitor de Pedra Azul
* heitordepedrazul@yahoo.fr