J. B. Pessoa
Não meus amigos, eu nunca fui um homem de brigas!
Desde garoto procurei evitá-las, porque sempre achei degradante ver dois ou
mais homens se atracando em uma luta corporal, às vezes pelo motivo mais torpe
ou fútil. Aliás, nunca gostei do esporte, nem mesmo dessa palhaçada, que a
televisão mostra todas as semanas, cujas atuações não passam, como se diz no
linguajar atual, de autênticas “marmeladas”. Nunca gostei de brigar porque se
perco, fico com o orgulho ferido e se ganho, fico com sentimento de culpa, por
haver ferido ou enxovalhado uma pessoa que, com um pouco de boa vontade,
poderia ser um amigo. Não quero parecer demagogo, pois tenho consciência da
existência de tanta gente ruim, que às vezes fica difícil, da gente não perder
as estribeiras. Porém, sempre dei sorte e sempre fui respeitado, salvaguardando
às raríssimas exceções. Como é o negócio seu João do Osso? Um sujeito forte e
grandão que nem eu sou, é difícil de ser provocado?!... Bom: embora tamanho não
seja documento, isso deve, sempre, ser levado em consideração. Enfim, rezo
constantemente ao meu Bom Jesus da Lapa para me livrar das pessoas abusadas e
não vamos falar mais sobre o diabo, senão ele nos visita nessa escura e fria
noite de inverno.
Meus caros amigos de prosas. Vocês estão admirados com
a friagem desse ano, não é verdade? Afinal nós vivemos na Cidade Sol e não é
comum a temperatura cair tanto, como tem sido nas últimas semanas. Se não me
engano, a última invernada, que nem essa, sucedeu há quatorze anos, quando
certo caixeiro viajante afirmou que caíram flocos de neve em um lugar, perto do
Pico das Almas, na Chapada Diamantina. De lá prá cá só houve muita chuva e
pouco frio, pois Jequié está situada numa depressão relativa do Vale do Rio das
Contas. Frio, mesmo, deve estar fazendo em Vitoria da Conquista, Poções,
Periperi de um lado e, do outro, em Jaguaquara, Itiruçu e Maracás, onde o frio
é de doer.
Por falar em frio, o inverno mais rigoroso que eu
conheci foi no Rio de Janeiro, a famosa Cidade Maravilhosa! Como é que é seu
Macedo?!... No Rio de Janeiro não há inverno? Só calor o ano inteiro? Ledo
engano meu amigo. Às vezes acontece o mesmo fenômeno que está acontecendo em
nossa cidade e eu presenciei isso há alguns anos atrás. Aliás, foi no Rio, numa
noite gelada, pior do que essa, que me envolvi num bafafá medonho, que esse
proseador aqui vai contar para vocês, depois que eu coar um cafezinho quente
para a gente tomar.
Pois bem: logo depois que eu me despedi dos meus
amigos e conterrâneos Chico da Lagoa Grande e Tião de Maria Rita em São Paulo,
resolvi conhecer o Rio de Janeiro, a maior cidade do País, a qual era a Capital
Federal naquela época. Dito e feito, mais um tabaréu foi visitar a terra das
mulheres mais bonitas do mundo. Lá chegando me hospedei numa pensão barata, nas
imediações da Praça Tiradentes, no centro da cidade. Não demorou muito e fiz
amizade com os meus três companheiros de quarto, os quais eram músicos e
gostaram muito das modinhas sertanejas que eu cantei e
toquei para eles, acompanhado da minha harmônica de oito baixos. Um deles era
um caboclo sergipano, chamado Ademar Santana, o qual era exímio no pandeiro. Os
outros Pedro e Paulo Lee da Silveira eram dois irmãos do interior de São Paulo,
os quais tocavam, muito bem, violão e cavaquinho.
Em uma manhã de domingo, antes do almoço, meus
camaradas de quarto me convidaram para um aperitivo em um dos botequins da
famosa praça carioca. Conversa vai e conversa vem, depois de uns tragos da
branquinha, um deles me convidou para formar um quarteto com eles, os quais
animavam as noites de um ilustre cabaré da Lapa, bairro boêmio muito famoso na
época. Meus amigos, aquele convite me pegou desprevenido, pois eu nunca toquei
profissionalmente. Sempre animei os bailes familiares da minha vila,
acompanhado de outros músicos amadores que nem eu. Só apenas isso e nunca
cobramos nada por nossas atuações; aliás, oferecer dinheiro pra gente que
tocava pelo prazer de tocar, era até uma ofensa. Pensei bem no assunto e
avaliei a proposta pensando em recusá-la, quando Paulo afiançou: “Manoel você é
um moço formoso, toca e canta muito bem! Vai conquistar os corações das moças
que frequentam o cabaré!” Ademar reiterou o convite, afirmando que eu não iria
me arrepender, pois a casa pagava muito bem, se os músicos agradassem a
clientela. Dito e feito aceitei o convite e os rapazes trataram logo de
evidenciar o contrato.
Meus amigos aqui presentes nessa noite de prosas:
torna-se necessário acrescentar que a Lapa, a qual eu conheci no início dos
anos 40, não tinha mais o brilho das décadas anteriores, quando era considerado
o lugar mais aconchegante da boemia do Rio de Janeiro. Época em que os seus
cabarés fervilhavam de “cocottes” e eram frequentados pelos mais famosos
artistas, políticos e intelectuais fluminenses. O bairro começou a declinar com
a Segunda Guerra Mundial, afastando a nata da boemia romântica, dando lugar aos
“falsos boêmios” e sendo invadida por marinheiros americanos, que nela
despejavam os seus dólares, o que era muito bom para a gente, modestos músicos
em ascensão.
Durante mais de três meses animamos as noitadas da
alegre casa noturna. Eu estava vivenciado uma situação completamente aleatória
à minha pessoa. De tabaréu, que era, passei a ter um comportamento mais
condizente com aquele ambiente. O meu sotaque do norte foi desaparecendo, dando
lugar a uma alocução mais atraente, sendo percebido pelos companheiros, os
quais me congratularam pelo meu senso de adaptação. Conheci muitas moças e
namorei algumas, nunca escondendo o fato, de que eu era noivo em minha terra. E
assim, nessa aventura, vivi o período mais gratificante da minha juventude.
Contudo, com o passar dos meses, uma intensa saudade começou aflorar o meu
coração. Sentia falta do meu lugar, do meu povo e, sobretudo, da bela namorada
que me esperava.
O nosso quarteto estava fazendo muito sucesso devido à
versatilidade dos seus componentes. A gente tocava e cantava de tudo;
Principalmente Pedro e
Paulo que cantavam em Inglês, pois eram descendentes
de imigrantes americanos da Guerra da Secessão e estavam familiarizados com o
idioma. Assim seguíamos contentes no nosso trabalho, satisfazendo todos os
gostos e enchendo os nossos bolsos com as gorjetas recebidas.
Numa noite friorenta de agosto, com o cabaré
abarrotado de gente, inclusive de marinheiros americanos, entraram no recinto
um sujeito de cor parda, vestido elegantemente um belo terno de linho,
acompanhado de uma bela lourinha; daquelas que tirava o sossego de qualquer
cristão. Seu moço!... Não é que a menina se engraçou com o tabaréu aqui!...
Toda a hora ela vinha flertar comigo, pedindo para cantar uma canção, me
tecendo elogios, deixando o seu acompanhante fulo de raiva. Em nenhum momento
eu lhe fiz elogios, ou a desrespeitei, sendo apenas atencioso, como era para
todos. Lá pelas tantas da madrugada, o sujeito cismou comigo e foi me pedir
satisfações. Eu disse para ele, que a gente atendia aos pedidos de todos,
inclusive o dele, se ele tivesse alguma preferência. Meus amigos: sabe o que
aconteceu?! O filho d’uma mãe jogou um copo de cerveja na minha cara! Dei-lhe
um empurrão com tanta força que ele foi se esbarrar com um americano grandão,
caindo os dois no chão. Quando eles se levantaram, o sujeito, ao invés de pedir
desculpas, xingou o gringo em inglês, recebendo dele um potente soco, que o
jogou pra fora do cabaré, caindo em plena rua, numa sarjeta suja. O marinheiro
voltou para sua mesa e nós recomeçamos a tocar com um Fox trote animado, bem no
gosto dos americanos. Seu moço, quando tudo parecia haver terminado ali mesmo,
segundos depois, entrou pela porta adentro o sujeito, amarfanhado com o terno
branco todo sujo de lama, acompanhado de um bando de rufiões, amigos seus e, “o
pau comeu na casa de Noca”! Eu e meus companheiros permanecemos juntos e fomos
pra atrás do balcão para proteger os nossos instrumentos. Ademar afiançou que:
“O que der para um, dará para os quatro!” E assim permanecemos no mesmo lugar,
assistindo de camarote aquele arranca-rabo de gringos e malandros cariocas.
Como havia mais marinheiros do que malandros, os nativos estavam perdendo a
briga, quando um deles sacou um revolver e deu uns tiros, sem, entretanto,
ferir ninguém. Os outros fizeram o mesmo e o bando de gringos sumiram
rapidamente do lugar, deixando os malandros cantarem de galos naquele momento. Logo
depois, o dono do estabelecimento aconselhou a malandragem dar no pé, pois a
uma patrulha policial não tardaria a aparecer. O baile voltou animado, com o
quarteto tocando como se nada tivesse acontecido. Pouco depois, chegou a
polícia e a coisa voltou ao seu normal.
Durante algum tempo ficamos preocupados com o rumo que
os acontecimentos poderiam ter. O proprietário do cabaré nos assegurou que
aquele bando de rufiões dava proteção ao lugar, e que o pivô da briga já havia
pedido desculpas a ele pela agressão feita a minha pessoa. Mais tarde, o
próprio sujeito veio falar comigo, com aquela conversa mansa de malandro
carioca, e “tudo voltou com era antes no Quartel de Abrantes!”.
Fiquei com meus companheiros tocando naquele cabaré,
até o início de dezembro daquele ano. Logo depois voltei para minha terra, pois
a saudade
estava de doer. Despedi-me dos amigos e vim-me embora.
O Rio de Janeiro era lindo, mas nada é mais bonito do que o nosso rincão.
Voltei para minha vida de antes, contraindo matrimônio com a minha noiva
Gercina Rizzerio Amorim no ano de 1944.
Como vocês podem ver meus amigos, aquela foi à única
confusão que eu me envolvi num ambiente social. Mesmo assim, sem nenhuma
consequência e independentemente da minha vontade. Agora vamos tomar um cafezinho
que seu Otonho vai nos contar à briga que ele presenciou com duas turmas em
Catingal.
Décimo quarto capítulo do livro não publicado: “ As
Aventuras de um Catingueiro”.
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