J. B. Pessoa
Caríssimos amigos, presentes em meu
estabelecimento, nessa fria e escura noite de agosto: Como hoje é sábado, estou
preparando uma boa feijoada sertaneja, cozinhada em um fogão a lenha, numa
grande e velha panela de barro, a qual estará pronta antes da meia noite. Todos
os senhores estão convidados. Mas antes vamos tomar um cafezinho com um
requeijão da cidade de Livramento, minha terra, e esperar o compadre Ambrosio,
o qual foi buscar o seu Manequito, que está fulo de raiva com um comentário que
surgiu mais cedo. Falando no Diab... Digo, no homem, eis aqui o maior proseador
dessas bandas, que veio nos dar a graça de sua presença.
Meus camaradas de prosas: o seu Manequito
anda chateado, e com muita razão, porque um mequetrefe, aqui do nosso bairro,
anda dizendo que a minha venda é um clube dos mentirosos e que o seu Manequito
é o maior de todos! Vê se pode?!... Como é seu Otonho? O tal sujeito em questão
é um beberrão sem eira e nem beira, também sem trabalho, que anda socado no bar
da esquina, jogando sinuca o dia inteiro, junto a outros de sua confraria?!...
Ué!... Se aqui é o clube dos mentirosos, lá deve ser o clube dos vagabundos.
Isso seu Manequito! Pode rir a vontade, o senhor merece. Afinal, todos aqui são
homens de bem. Somos pobres, porém honestos e trabalhadores. Verdade seu João
do Osso? Nós não somos pobres?! O que somos é caixa baixa, pois quem é pobre é
o Diabo, que não tem as graças de Deus?!... Taí, essa eu concordo com o senhor,
pois como diz um ditado do povo: “Deus dá o cobertor conforme o frio”. Pois
bem: Somos pessoas decentes e sempre nos reunimos pra prosear e contar nossas
aventuras e nossos causos do dia a dia. Eles que fiquem por lá, com os deles,
bebendo e jogando, apostado, sinuca e baralho, além d’outros jogos de azar.
Problemas deles! “Cada macaco no seu galho”; o nosso é aqui e o deles lá, o
qual é sempre visitado pela polícia que, de vez em quando, leva um deles para o
xilindró. Nós ficamos com nossos causos, segundo eles, mentirosos, nos
divertindo; porque astuciar uma estória é uma arte e não um crime e nem dá
cadeia.
Como já dissemos anteriormente: aumentar o
tamanho do peixe é uma mentirinha compreensível! O peixe que foi pescado é
verdadeiro. Definir o tamanho dele fica por conta do proseador e ninguém tem
nada a ver com isso. Pois é seu Manequito: o senhor tem razão! Eu soube que a
corja daquele bar anda falando da vida alheia, inventando mentiras sobre as
pessoas de bem.
Por falar em mentiras, existem pessoas que
só contam causos mentirosos! O sujeito, que nunca viu uma vara de pescar e não
sabe o que é um anzol, espalha aos quatro ventos que pescou um peixe do tamanho
de um boi! Esse sim, que é um mentiroso de marca maior. Eu conheci um proseador
assim, pois além de mentir, ele difamava muita moça donzela e de boa família. Eu
vou contar esse causo pra vocês depois da gente tomar um cafezinho quente.
Quando eu estava morando no Rio de
Janeiro, vivendo naquela pensão, na companhia dos meus amigos, os músicos
Ademar, Pedro e Paulo, eu conheci várias pessoas, vindas dos quatro cantos do
Brasil. Eram pessoas boas e trabalhadeiras; algumas delas eram talentosos
artistas, que mais tarde fizeram sucesso no rádio, televisão e cinema.
O dono dessa pensão só aceitava hóspedes
do gênero masculino, porque achava que, macho e fêmea morando no mesmo lugar
era encrenca certa. Contudo, sua mulher gerenciava outra, na qual vivia muita
moça bonita e ostentava o soberbo nome de “Pensão dos Artistas”. Na pensão que
a gente morava havia dois baianos, um de Salvador outro de Vitória da
Conquista, os quais me foram apresentados por Ademar, alegando que aqueles meus
conterrâneos, eram pessoas muito especiais.
Seu moço!... Meus camaradas de prosas! Eu
nunca vi duas pessoas tão diferentes, uma da outra, serem amigas. Os dois eram
jovens e tinham mais ou menos vinte e cinco anos de idade. O de Salvador
chamava-se Roberto Grillo Viana; falava pouco e se dizia um artista moderno e,
como tal, um incompreendido. Era bem apessoado e não tinha aspecto de um baiano
habitual, pois era louro e tinha os olhos azuis; contudo, afirmava que
pertencia a uma tradicional família soteropolitana. Já o de Conquista era um
falastrão. O seu nome era José Bispo dos Santos, o Zezinho das meninas,
conforme a sua autodenominação. Não fazia o tipo característico do sudoeste
baiano. Era moreno de cabelos crespos e tirado a bonito; Tinha a falsa
aparência de um boêmio carioca, nascido em qualquer lugar do mundo, menos no
Rio de Janeiro. Trabalhava como vendedor em um elegante magazine na Avenida Rio
Branco e dizia conhecer pessoas importantes do cotidiano fluminense. Apesar da
aparente amizade entre os dois rapazes, era notória a adversidade entre ambos,
ou, pelo menos, era o que eu achava. Seu moço, o tal de José Bispo pertencia
àquela espécie de “pescador”, que me referi antes! O pior de tudo era que muita
gente acreditava em suas lorotas. Metido a valente e audacioso, ele dizia ser
um verdadeiro sedutor, pois já havia deflorado 32 moças bonitas, sendo a
maioria de sua cidade. Como é mesmo seu Abdias?!... Se isso tivesse, realmente,
acontecido, o malandro já estaria morando na cidade de pés juntos, pois o povo
de Conquista não dá moleza a ninguém?!... Foi o que eu pensei! Pois bem: eu,
que sempre fui um homem de boa vontade e de fácil convivência, logo de início
me antipatizei com o sujeito, pois detesto quem costuma difamar moças donzelas,
filhas de quem quer que fosse. Percebi então, que eu não estava sozinho na
minha cisma, pois notei que alguns dos rapazes pensionistas, não estavam
gostando daquela prosa potoqueira, principalmente o amigo dele.
Certa manhã, durante as refeições
matinais, enquanto o pessoal ouvia as aventuras do conquistense, Roberto, o de
Salvador, apareceu com um artefato de madeira, que parecia um grande quadro.
Olhando para todos com um sorriso de deboche, colocou a peça pendurada na
parede da sala de jantar e pregou nele um prego pequeno. Quando os rapazes
questionaram o que era aquilo, ele respondeu que era uma escultura surreal!...
Ih seu Otonho, não me pergunte o
que é isso, que eu também não sei! Pois
bem: O quadro estava revestido em toda a sua área com pregos de todos os tipos
e tamanhos. Quando alguém lhe perguntou, o que significava todos aqueles
pregos, ele explanou que era “uma delação espontânea das mitificações de mentes
doentias”. Os amigos aqui presentes nesta noite de prosas entenderam alguma
coisa?!... Nem eu, naquele momento; Porém, não perguntei nada! Quieto eu estava
e quieto fiquei, observando a tudo àquilo com muito interesse. O tal José Bispo
olhou para o pessoal, balançando a sua cabeça negativamente e circulou o seu
dedo indicador na parte direita de sua testa, indicando que o seu amigo era um
demente.
O tempo foi passando e, como sempre, nas
horas das refeições, o Zezinho das meninas contava mais uma das suas. Logo após
o final de cada história, Roberto vinha e pregava um prego na sua escultura
surrealista. Foi aí então, que percebi que o maroto estava pregando as mentiras
do companheiro, naquela tábua em forma de um quadro, como uma espécie de
protesto; e que o tamanho do prego variava conforme a dimensão da mentira. Às
vezes era um prego bem pequeno e outros bastantes grandes. Contei para os meus
amigos de quarto a minha descoberta e eles espalharam para todos os hóspedes
daquela pensão, deixando os pensionistas de prontidão. Toda vez que o José
contava um caso, o Roberto vinha com um prego e pregava a mentira no quadro,
fazendo a rapaziada rir daquela estripulia. O José não entendia nada ou fingia
não entender. As mentiras do embusteiro eram tantas, que no quadro não havia
mais espaços, para tantos pregos de tamanhos tão diferentes.
Em um domingo, após o almoço, o pessoal
notou que o José Bispo dos Santos não havia pernoitado na pensão. O meu amigo
Ademar Sergipano perguntou a Roberto, onde se encontrava o seu companheiro e
ele respondeu que não tinha a menor ideia. Lá pelas cinco horas da tarde, o
sujeito apareceu com ares de vitorioso, afirmando que teve a noite mais
gloriosa de sua vida. Havia conhecido a mulher mais bonita do mundo no Cassino
da Urca e tinha dormindo com ela na suíte presidencial do Copacabana Palace
Hotel. Roberto arregalou os olhos, diante da novidade e os rapazes perguntaram
quem era a dita beldade. José Bispo dos Santos olhou para todos com desdém,
estufou o peito e disse na maior cara de pau: Olivia de Havilland!... Seu moço,
meus companheiros de prosas!... Naquele momento um profundo silêncio reinou no
ambiente, deixando pasmados todos os rapazes na sala de jantar, espantados com
a audácia do sujeito. Logo aquela famosa e belíssima atriz, que nem os maiores
garanhões do cinema americano conseguiram conquistá-la, conforme afiançaram
Pedro e Paulo, e vem um sujeitinho à toa, sem eira e nem beira, afirmar
semelhante asneira. De repente, Roberto vai até o seu quarto e volta, em
seguida, com o maior prego que já vi até hoje. Com o martelo na mão e muita
indignação no rosto, ele pregou aquele prego no quadro, o qual era tão grande e
grosso, que rachou no meio aquela grossa madeira. Subitamente toda a rapaziada
caiu na gargalhada, enquanto os mais afoitos deram uma série de cascudos no
mequetrefe, jogando-o numa sarjeta, formada pelas chuvas da noite anterior,
emporcalhando todo o terno de linho branco do infame
mentiroso. A seguir, os rapazes saem
juntos, levando Roberto na companhia deles, indo farrear num boteco da Praça
Tiradentes, deixando o sujeito caído na lama. Escondendo o meu sorriso, eu fui
ajudar o sujeito a se levantar, dizendo para ele não guardar rancor, pois os
rapazes estavam embriagados. Parecendo não haver entendido bem os
acontecimentos, ele entra na pensão, um tanto avexado, dizendo que ia tomar
banho, pois estava com ressaca muito grande. Logo após, eu segui para a
Cinelândia, com meus amigos Ademar, Pedro e Paulo para assistir um bom filme,
em um dos seus cinemas.
Foram esses, os acontecimentos inusitados
daquele domingo, meus amigos! No dia seguinte, um dos rapazes da pensão disse
para mim que, se um sujeito bonito e rico afirmasse para ele uma coisa
daquelas, ele poderia até acreditar! Mais aquele cara?!... Portanto eu digo
para vocês: ninguém pode dizer que pescou um peixe, sem ter pescado nada; e
como “toda mentira tem as pernas curtas”, e a do Zezinho das meninas nem pernas
tinha; por isso, naquela tarde, ele foi desmascarado em suas conversas e foi
jogado na lama, pela exasperada rapaziada. Agora vamos tomar outro cafezinho,
que eu vou olhar como anda a feijoada. Volto rapidamente, para ouvir o seu
Macedo, contar o caso do Dom Juan de Feira de Santana.
Décimo quinto capítulo do livro não publicado: “ As Aventuras de um Catingueiro”.
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