quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

O Lobisomem da Lagoa Grande.

                                                                   J. B. Pessoa

Vamos com calma pessoal, pois eu nunca afirmei que não acredito em seres fantásticos ou almas d’outro mundo. Insisto apenas em dizer, que eu nunca tive contacto com algum desses seres, como o seu Jurandir e o Seu Manequito. O seu Jurandir contou pra a gente que, quando viu a Mula Sem Cabeça em um sábado de aleluia, caiu fora e correu para sua casa, sem olhar para trás, com medo do bicho. Eu acredito nele, pois eu também faria a mesma coisa, pois não sou tão corajoso como o Seu Manequito, o qual, presente aqui nesse momento, pode nos contar como foi o caso dele com a Mula sem Cabeça. Como?!!... Porque não meu amigo? O senhor está muito rouco e com a garganta inflamada? Tudo bem, vamos deixar para outra ocasião. O senhor quer ouvir o seu causo proseado por mim?!... Quanta honra!... Já que é assim, vou tentar narrar com a maior lealdade possível os acontecimentos. Porém, antes disso, vamos tomar um cafezinho quente com esse queijo de Vitoria da Conquista, que eu considero o mais saboroso de todo o Estado da Bahia.

Pois bem: Certa feita o seu Manequito fez uma longa viagem de canoa, navegando contra a corrente do Rio das Contas, entrando no Rio Sincorá, lá pelas bandas de Contendas. Ele foi à busca de uma raiz milagrosa, que só se encontra naquela parte do Sertão. Que raiz é essa?!... Ora meu compadre, não está sabendo?! É aquela que faz todo velho virar menino e sorrir contente para a vida! O Seu Manequito me disse que ele foi buscar o remédio para curar um compadre seu, o qual andava muito triste, sem disposição para nada. O seu João do Osso afirmou que já tomou esse chá e sarou da noite para o dia. Voltando ao causo: o seu Manequito entrou no Rio Sincorá, que na época estava navegável e, depois de algum tempo, deixou sua canoa em ancorada nas margens, se embreando pela caatinga. Quando encontrou a famosa planta, já estava anoitecendo. Arrancou várias delas e encheu um grande saco com as raízes, esperando fazer um bom negócio com a venda delas. Como a noite já tinha chegado, ele resolveu pernoitar no mato, fazendo uma pequena fogueira e foi dormir em volta dela, pois a noite estava escura feito breu. O dia não tinha amanhecido ainda, quando ele acordou com o terrível relincho da Mula Sem Cabeça. Seu Moço, o que foi que o seu Manequito fez? Correu da Mula?!... Não!... Ele está aqui pra confirmar a estória. O homem, sem pestanejar, fez um laço com uma corda que carregava consigo e laçou o bicho na hora. Saltando em seu dorso, montou na Mula, a qual pulava feito um cavalo doido. O bicho peidava, relinchava, empinava, pulava, soltava fogo pelas ventas e ele em cima dela. Lá pelas tantas, aquela criatura maléfica, cansada com o rojão do amigo, foi domada. Como se isso não bastasse, ele pegou o saco com as raízes e rumou para Contendas montada nela, que já não soltava fogo pelas ventas. Chegando perto da cidade de Contendas, ele liberou a Mula, a qual caiu fora dali, rapidamente, com medo desse bravo vaqueiro! Não é verdade seu Manequito?!

... Êta homem valente, sim senhor! Certo!... Podem bater palmas que ele merece.

Agora voltando a minha opinião: como eu já contei pra vocês, a única coisa estranha que eu presenciei, que até hoje me deixa encafifado, foi a moça do algodão de seda. Fora disso foi o caso do fantasma lenhador, no Estado de São Paulo, que era o ronco de um velho, o qual parecia machadadas no mato e o fantasma em Iguatemi, que foi uma moça pregando peças nas pessoas. Verdade seu João do Osso?!... O seu compadre Elias Pessoa afirmou para o senhor, que eu enfrentei um lobisomem?... Puxa a vida!... Vejam bem: Eu nunca contei isso pra ninguém, porque nunca dei importância a esse fato. Contudo, como o senhor tocou no assunto, eu não vou deixar o meu irmão passar por mentiroso. Vou relatar esse causo, com todos os detalhes e colocar todos os pingos nos is. Mas antes de ir ao assunto, vamos tomar outro cafezinho com o queijo de Conquista.

Na época que aconteceu essa aventura, eu morava em um local, em volta de uma grande lagoa, onde eu tinha um pequeno sítio, no qual criava algumas rezes e vacas leiteiras. Nesse lugar, conhecido como Lagoa Grande, nasceram duas das minhas filhas, pois a caçula nasceu aqui em Jequié. Era um bom lugar para se morar; pois tínhamos como vizinhos vários parentes e amigos, entre os quais o meu amigo Golino. Além disso, ficava perto de uma montanha, onde eu tinha uma plantação de algodão, próximo do meu outro sítio chamado de Três Umbuzeiros. Nessa época, o meu menino, que nasceu em Iguatemi, era um bebê de quase três anos de idade e se lembra de todo o ocorrido, pois presenciou a peripécia, que vou narrar pra vocês nesse momento.

Em uma bela noite de lua cheia do mês setembro do ano de 1949. Eu e minha mulher Tina, com Batista ao colo, deixando nossa filhinha Glória, de um ano, aos cuidados da bem amada mãe Ana, fomos visitar Golino, o qual havia chegado de São Paulo, após uma longa viagem de negócios. Lá chegando, encontramos quase todos os vizinhos em volta dele, o qual narrava as novidades da grande cidade. Muitos deles fizeram encomendas, tais como: rádios, vitrolas, discos, espingardas e outras finezas da civilização sulina. Enquanto as mulheres ficaram na cozinha, em alegres palestras, coando café e assando carne do sol para a gente, nós permanecemos na varanda examinando, contentes, nossas aquisições. Eu estava satisfeito com a minha, pois encomendei para Golino, um rifle winchester calibre 44, no modelo de 1930, novinho em folha. Uma verdadeira joia de arma, que deixava muito tabaréu de água na boca, pois a maioria caçava com espingardas carregadas pela boca; inclusive eu. Depois de aquela onça ter invadido os Três Umbuzeiros, como já relatei aqui pra vocês, resolvi me prevenir. Eu tinha mulher e filhos e, naquela época, ainda havia muitos felinos, como onças e suçuaranas, na região. Depois de muitas prosas e considerações me despedi de todos, pois era mais de dez horas da noite, alegando que eu precisava acordar de madrugada, para executar meus afazeres. Avisei a Golino e a todos os outros amigos, que eu ia experimentar aquele rifle, ainda naquela mesma noite, pois eu estava curioso demais com o desempenho

da arma. O meu amigo Zacarias, que tinha adquirido uma vitrola movida a pilhas, caçoou de mim dizendo: “Ô Né, esse canhão aí vai fazer um barulho tão grande, que vai espantar qualquer alma penada que estiver por perto!” Todo mundo riu naquele momento e eu respondi para todos, que a intenção era aquela.

A lua continuava esplendorosa naquela noite sertaneja, brilhando quase igual o dia, quando segui para minha propriedade, a qual distanciava da de Golino, mais ou menos um quilômetro de distância, o qual era o meu vizinho mais próximo. Como é mesmo seu Felisberto?!... O senhor acha longe demais, para o meu amigo ser considerado um vizinho?! É porque o senhor é um homem de cidade. Quem nasceu ou vive na roça não estranha essas coisas da vida camponesa. Pois bem: fui para casa bastante contente, seguindo feliz pelo caminho, na Santa Paz do Senhor, conversando alegremente com a minha mulher, que carregava o nosso filho, o qual dormia tranquilo, chupando o seu dedinho. De repente a lua se escondeu por entre uma nuvem escura e, por alguns segundos, faltou-nos a sua claridade, bem no momento em que a gente já estava perto de casa. Seu Moço!... Quando eu ia abrir a porteira do meu sítio, apareceu, subitamente, atrás da gente, uma figura grotesca, uivando feito um lobo. Meu compadre e amigos aqui presentes!... Naquele momento minhas pernas tremeram que nem vara verde e a minha mulher gritou de pavor, acordando o menino. Amigos!... Não vou mentir para vocês. Se eu estivesse sozinho, dava no pé e sebo nas canelas. Sairia dali correndo sem olhar para trás, pois aquela aparição era horrenda demais. Porém, quando a claridade da Lua voltou e vi minha mulher me abraçando aflita e o meu filho chorando, meus colhões começaram a doer e o medo foi para as cucuias. Afastei-me de Tina e do menino, deixando-os na cancela e caminhei em direção do bicho. Como o rifle novo estava carregado, engatilhei-o na hora e, instintivamente, atirei naquela peste sem fazer mira, o qual parou de uivar, surpreso com a minha reação. Foi aí então que percebi que aquilo era algum mequetrefe querendo me assombrar e a minha família. Ouvindo os gritos e o tiro, saíram de casa mãe Ana e sua irmã Criola com sua espingarda na mão. Vendo a encrenca que nos acontecia, a minha comadre não pestanejou e mandou chumbo quente no coisa ruim, que tratou de dar o fora dali rapidamente. Como eu estava fulo de raiva com o acontecido, eu deixei Tina e Batista em segurança com nossas amigas e fui atrás daquele pulha, que corria velozmente.

A claridade lunar resplandecia magnificamente naquela noite de lua cheia. Por isso então pude perceber, que o sujeito que eu perseguia, devia estar na minha frente uns trezentos metros de distância. A raiva que eu sentia deu às minhas pernas uma velocidade surpreendente e, em pouco tempo, eu estava próximo daquele sacana. Nesse momento eu ameacei atirar, se ele não parasse e colocasse as suas mãos na cabeça, em sinal de rendição. Como ele não atendeu, eu dei um tiro para o alto e o moleque parou no mesmo instante, morrendo de cansaço e medo.

Eu estava ofegante com aquela correria; afinal, eu não era mais nenhum jovem, pois contava com os meus trinta e seis anos de idade. Olhei para aquela figura sinistra, que usava uma capa preta e uma mascara que parecia ser uma cara de lobo, mandando ele se ajoelhar e por as mãos ao alto. Ele obedeceu, tremendo de medo e suplicou, quase chorando: “Manoel não me mate! Aquilo foi só uma brincadeira!” Surpreso com a súplica, arranquei a mascara do sujeito com o cano do meu rifle, que brilhava na luz prateada da lua cheia.

Seu Moço!... Meus camaradas de prosas nessa fria noite de agosto!... Pasmem!... Adivinhe quem era o tal lobisomem que havia perseguido a minha família?... Quem?!... Isso mesmo seu Manequito. O senhor acertou na mosca! Ô cabra arretado Sô! Isso mesmo pessoal: Luís Weisderland Amorim. Fiquei boquiaberto quando vi aquele capadócio ali, acovardado, implorando por sua vida, e me lembrei de que foi ele quem induziu Cidinha do Santo Inácio a fingir um fantasma e assustar o povo de Iguatemi. Que em outras ocasiões tentou me anarquizar e já tinha feito de tudo para desmerecer a minha pessoa, diante dos meus amigos. Ali estava ele, um homem da minha idade, agindo feito um moleque, igual a um rapazola, que não havia chegado, ainda, a idade da razão. Ele me implorou novamente, dizendo que era meu parente e por isso eu não devia judiar dele. Seu Moço!... Olhei para aquela patética figura e fiquei com pena do sujeito. Afinal, existe homem de barba branca que se recusa a crescer e, com certeza, Luís era um deles. Lembrei-me depois, que Luís Weisderland era o filho caçula de um grande amigo do meu pai, cuja mãe era prima da minha avó materna Iria Nunez Dourado. Lembrei-me também, que o meu avô Anacleto Rosa da Silva Matos, marido de Iria, afirmava que no sertão de Livramento, Caetité e Brumado quase todo o mundo eram parentes.

Mandei Luís se levantar e se recompor, notando que ele estava com um bafo danado de cachaça. Perguntei se ele tinha alguma pinga consigo. Ele respondeu afirmativamente e pegou uma pequena cabaça, que trazia a tiracolo e me ofereceu uma finíssima destilada, da qual eu tomei um bom gole devido, às circunstancias que eu estava passando. Perguntei o que ele estava fazendo por aquelas bandas, que era distante de Iguatemi, Ele respondeu que estava visitando sua irmã e cunhado, os quais moravam por ali mesmo, perto da Lagoa Grande. Como a noite era de lua cheia, ele tinha resolvido pregar uma peça nos tabaréus do lugar. Tomando mais uns goles da cabaça, expliquei para ele, que o pessoal daquelas paragens tinha raiva de lobisomens e que cada um deles tinha uma garrucha, carregada com uma bala de prata; o que era a mais pura verdade. Que se ele continuasse naquela peraltice de moleques, mais cedo ou mais tarde, ele iria receber prata quente nos peitos. Aconselhei-o a arranjar uma boa moça para se casar, pois ele estava passando do tempo. Acompanhei-o até perto da casa, onde ele estava hospedado, aconselhando-o a ter muito juízo.

Já se passava das onze horas da noite, quando voltei apresado para casa. Tina estava na varanda esperando por mim, na companhia de mãe Ana e Criola, a qual continuava com a sua espingarda recarregada na mão. Tina veio correndo e me abraçou chorando, aliviada com a minha presença. As minhas duas

comadres vieram ao meu encontro suspirando acalmadas, a me ver são e salvo. Expliquei pra elas que perdi a pista do bicho lá pelas bandas da Fazenda Zé Gomes, perto do Rio São João. Não contei pra ninguém, nem mesmo para Tina, o que realmente aconteceu; porque não queria manchar o nome de Luís Weisderland Amorim, o qual hoje é um homem bem casado, pai de cinco filhos, morando na cidade de Fernandópolis, no interior de São Paulo. Porém Criola, negra arretada de valente, me afirmou que, com certeza, se tratava de um autêntico Lobisomem.

Pois é isso mesmo meus camaradas de prosa. Esta é a minha história. Pelos semblantes de vocês, vejo certa decepção. Todavia, eu não podia mentir para os amigos, astuciando outra coisa. Contudo, se algum dia eu vier contar para vocês, que me atraquei com um lobisomem, podem botar suas mãos no fogo que será a mais pura verdade. Agora vamos deixar de choromelas e tomar mais um cafezinho, com o delicioso queijo de Conquista, que seu Agripino vai relatar o encontro dele com o Saci Pererê, lá pelas bandas do Curral Novo.

 

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