Vamos
com calma pessoal, pois eu nunca afirmei que não acredito em seres fantásticos
ou almas d’outro mundo. Insisto apenas em dizer, que eu nunca tive contacto com
algum desses seres, como o seu Jurandir e o Seu Manequito. O seu Jurandir
contou pra a gente que, quando viu a Mula Sem Cabeça em um sábado de aleluia,
caiu fora e correu para sua casa, sem olhar para trás, com medo do bicho. Eu
acredito nele, pois eu também faria a mesma coisa, pois não sou tão corajoso
como o Seu Manequito, o qual, presente aqui nesse momento, pode nos contar como
foi o caso dele com a Mula sem Cabeça. Como?!!... Porque não meu amigo? O
senhor está muito rouco e com a garganta inflamada? Tudo bem, vamos deixar para
outra ocasião. O senhor quer ouvir o seu causo proseado por mim?!... Quanta
honra!... Já que é assim, vou tentar narrar com a maior lealdade possível os
acontecimentos. Porém, antes disso, vamos tomar um cafezinho quente com esse
queijo de Vitoria da Conquista, que eu considero o mais saboroso de todo o
Estado da Bahia.
Pois
bem: Certa feita o seu Manequito fez uma longa viagem de canoa, navegando
contra a corrente do Rio das Contas, entrando no Rio Sincorá, lá pelas bandas
de Contendas. Ele foi à busca de uma raiz milagrosa, que só se encontra naquela
parte do Sertão. Que raiz é essa?!... Ora meu compadre, não está sabendo?! É
aquela que faz todo velho virar menino e sorrir contente para a vida! O Seu
Manequito me disse que ele foi buscar o remédio para curar um compadre seu, o
qual andava muito triste, sem disposição para nada. O seu João do Osso afirmou
que já tomou esse chá e sarou da noite para o dia. Voltando ao causo: o seu
Manequito entrou no Rio Sincorá, que na época estava navegável e, depois de
algum tempo, deixou sua canoa em ancorada nas margens, se embreando pela
caatinga. Quando encontrou a famosa planta, já estava anoitecendo. Arrancou
várias delas e encheu um grande saco com as raízes, esperando fazer um bom
negócio com a venda delas. Como a noite já tinha chegado, ele resolveu
pernoitar no mato, fazendo uma pequena fogueira e foi dormir em volta dela,
pois a noite estava escura feito breu. O dia não tinha amanhecido ainda, quando
ele acordou com o terrível relincho da Mula Sem Cabeça. Seu Moço, o que foi que
o seu Manequito fez? Correu da Mula?!... Não!... Ele está aqui pra confirmar a
estória. O homem, sem pestanejar, fez um laço com uma corda que carregava
consigo e laçou o bicho na hora. Saltando em seu dorso, montou na Mula, a qual
pulava feito um cavalo doido. O bicho peidava, relinchava, empinava, pulava,
soltava fogo pelas ventas e ele em cima dela. Lá pelas tantas, aquela criatura
maléfica, cansada com o rojão do amigo, foi domada. Como se isso não bastasse,
ele pegou o saco com as raízes e rumou para Contendas montada nela, que já não
soltava fogo pelas ventas. Chegando perto da cidade de Contendas, ele liberou a
Mula, a qual caiu fora dali, rapidamente, com medo desse bravo vaqueiro! Não é
verdade seu Manequito?!
...
Êta homem valente, sim senhor! Certo!... Podem bater palmas que ele merece.
Agora voltando
a minha opinião: como eu já contei pra vocês, a única coisa estranha que eu
presenciei, que até hoje me deixa encafifado, foi a moça do algodão de seda.
Fora disso foi o caso do fantasma lenhador, no Estado de São Paulo, que era o
ronco de um velho, o qual parecia machadadas no mato e o fantasma em Iguatemi,
que foi uma moça pregando peças nas pessoas. Verdade seu João do Osso?!... O
seu compadre Elias Pessoa afirmou para o senhor, que eu enfrentei um
lobisomem?... Puxa a vida!... Vejam bem: Eu nunca contei isso pra ninguém,
porque nunca dei importância a esse fato. Contudo, como o senhor tocou no
assunto, eu não vou deixar o meu irmão passar por mentiroso. Vou relatar esse
causo, com todos os detalhes e colocar todos os pingos nos is. Mas antes de ir
ao assunto, vamos tomar outro cafezinho com o queijo de Conquista.
Na
época que aconteceu essa aventura, eu morava em um local, em volta de uma
grande lagoa, onde eu tinha um pequeno sítio, no qual criava algumas rezes e
vacas leiteiras. Nesse lugar, conhecido como Lagoa Grande, nasceram duas das
minhas filhas, pois a caçula nasceu aqui em Jequié. Era um bom lugar para se
morar; pois tínhamos como vizinhos vários parentes e amigos, entre os quais o
meu amigo Golino. Além disso, ficava perto de uma montanha, onde eu tinha uma
plantação de algodão, próximo do meu outro sítio chamado de Três Umbuzeiros.
Nessa época, o meu menino, que nasceu em Iguatemi, era um bebê de quase três
anos de idade e se lembra de todo o ocorrido, pois presenciou a peripécia, que
vou narrar pra vocês nesse momento.
Em uma
bela noite de lua cheia do mês setembro do ano de 1949. Eu e minha mulher Tina,
com Batista ao colo, deixando nossa filhinha Glória, de um ano, aos cuidados da
bem amada mãe Ana, fomos visitar Golino, o qual havia chegado de São Paulo,
após uma longa viagem de negócios. Lá chegando, encontramos quase todos os
vizinhos em volta dele, o qual narrava as novidades da grande cidade. Muitos
deles fizeram encomendas, tais como: rádios, vitrolas, discos, espingardas e
outras finezas da civilização sulina. Enquanto as mulheres ficaram na cozinha,
em alegres palestras, coando café e assando carne do sol para a gente, nós
permanecemos na varanda examinando, contentes, nossas aquisições. Eu estava
satisfeito com a minha, pois encomendei para Golino, um rifle winchester
calibre 44, no modelo de 1930, novinho em folha. Uma verdadeira joia de arma,
que deixava muito tabaréu de água na boca, pois a maioria caçava com
espingardas carregadas pela boca; inclusive eu. Depois de aquela onça ter
invadido os Três Umbuzeiros, como já relatei aqui pra vocês, resolvi me
prevenir. Eu tinha mulher e filhos e, naquela época, ainda havia muitos
felinos, como onças e suçuaranas, na região. Depois de muitas prosas e
considerações me despedi de todos, pois era mais de dez horas da noite,
alegando que eu precisava acordar de madrugada, para executar meus afazeres.
Avisei a Golino e a todos os outros amigos, que eu ia experimentar aquele
rifle, ainda naquela mesma noite, pois eu estava curioso demais com o
desempenho
da
arma. O meu amigo Zacarias, que tinha adquirido uma vitrola movida a pilhas,
caçoou de mim dizendo: “Ô Né, esse canhão aí vai fazer um barulho tão grande,
que vai espantar qualquer alma penada que estiver por perto!” Todo mundo riu
naquele momento e eu respondi para todos, que a intenção era aquela.
A lua
continuava esplendorosa naquela noite sertaneja, brilhando quase igual o dia,
quando segui para minha propriedade, a qual distanciava da de Golino, mais ou
menos um quilômetro de distância, o qual era o meu vizinho mais próximo. Como é
mesmo seu Felisberto?!... O senhor acha longe demais, para o meu amigo ser
considerado um vizinho?! É porque o senhor é um homem de cidade. Quem nasceu ou
vive na roça não estranha essas coisas da vida camponesa. Pois bem: fui para
casa bastante contente, seguindo feliz pelo caminho, na Santa Paz do Senhor,
conversando alegremente com a minha mulher, que carregava o nosso filho, o qual
dormia tranquilo, chupando o seu dedinho. De repente a lua se escondeu por entre
uma nuvem escura e, por alguns segundos, faltou-nos a sua claridade, bem no
momento em que a gente já estava perto de casa. Seu Moço!... Quando eu ia abrir
a porteira do meu sítio, apareceu, subitamente, atrás da gente, uma figura
grotesca, uivando feito um lobo. Meu compadre e amigos aqui presentes!...
Naquele momento minhas pernas tremeram que nem vara verde e a minha mulher
gritou de pavor, acordando o menino. Amigos!... Não vou mentir para vocês. Se
eu estivesse sozinho, dava no pé e sebo nas canelas. Sairia dali correndo sem
olhar para trás, pois aquela aparição era horrenda demais. Porém, quando a
claridade da Lua voltou e vi minha mulher me abraçando aflita e o meu filho
chorando, meus colhões começaram a doer e o medo foi para as cucuias. Afastei-me
de Tina e do menino, deixando-os na cancela e caminhei em direção do bicho.
Como o rifle novo estava carregado, engatilhei-o na hora e, instintivamente,
atirei naquela peste sem fazer mira, o qual parou de uivar, surpreso com a
minha reação. Foi aí então que percebi que aquilo era algum mequetrefe querendo
me assombrar e a minha família. Ouvindo os gritos e o tiro, saíram de casa mãe
Ana e sua irmã Criola com sua espingarda na mão. Vendo a encrenca que nos
acontecia, a minha comadre não pestanejou e mandou chumbo quente no coisa ruim,
que tratou de dar o fora dali rapidamente. Como eu estava fulo de raiva com o
acontecido, eu deixei Tina e Batista em segurança com nossas amigas e fui atrás
daquele pulha, que corria velozmente.
A
claridade lunar resplandecia magnificamente naquela noite de lua cheia. Por
isso então pude perceber, que o sujeito que eu perseguia, devia estar na minha
frente uns trezentos metros de distância. A raiva que eu sentia deu às minhas
pernas uma velocidade surpreendente e, em pouco tempo, eu estava próximo
daquele sacana. Nesse momento eu ameacei atirar, se ele não parasse e colocasse
as suas mãos na cabeça, em sinal de rendição. Como ele não atendeu, eu dei um
tiro para o alto e o moleque parou no mesmo instante, morrendo de cansaço e
medo.
Eu
estava ofegante com aquela correria; afinal, eu não era mais nenhum jovem, pois
contava com os meus trinta e seis anos de idade. Olhei para aquela figura
sinistra, que usava uma capa preta e uma mascara que parecia ser uma cara de
lobo, mandando ele se ajoelhar e por as mãos ao alto. Ele obedeceu, tremendo de
medo e suplicou, quase chorando: “Manoel não me mate! Aquilo foi só uma
brincadeira!” Surpreso com a súplica, arranquei a mascara do sujeito com o cano
do meu rifle, que brilhava na luz prateada da lua cheia.
Seu
Moço!... Meus camaradas de prosas nessa fria noite de agosto!... Pasmem!...
Adivinhe quem era o tal lobisomem que havia perseguido a minha família?...
Quem?!... Isso mesmo seu Manequito. O senhor acertou na mosca! Ô cabra arretado
Sô! Isso mesmo pessoal: Luís Weisderland Amorim. Fiquei boquiaberto quando vi
aquele capadócio ali, acovardado, implorando por sua vida, e me lembrei de que
foi ele quem induziu Cidinha do Santo Inácio a fingir um fantasma e assustar o
povo de Iguatemi. Que em outras ocasiões tentou me anarquizar e já tinha feito
de tudo para desmerecer a minha pessoa, diante dos meus amigos. Ali estava ele,
um homem da minha idade, agindo feito um moleque, igual a um rapazola, que não
havia chegado, ainda, a idade da razão. Ele me implorou novamente, dizendo que
era meu parente e por isso eu não devia judiar dele. Seu Moço!... Olhei para
aquela patética figura e fiquei com pena do sujeito. Afinal, existe homem de
barba branca que se recusa a crescer e, com certeza, Luís era um deles.
Lembrei-me depois, que Luís Weisderland era o filho caçula de um grande amigo
do meu pai, cuja mãe era prima da minha avó materna Iria Nunez Dourado.
Lembrei-me também, que o meu avô Anacleto Rosa da Silva Matos, marido de Iria,
afirmava que no sertão de Livramento, Caetité e Brumado quase todo o mundo eram
parentes.
Mandei
Luís se levantar e se recompor, notando que ele estava com um bafo danado de
cachaça. Perguntei se ele tinha alguma pinga consigo. Ele respondeu
afirmativamente e pegou uma pequena cabaça, que trazia a tiracolo e me ofereceu
uma finíssima destilada, da qual eu tomei um bom gole devido, às circunstancias
que eu estava passando. Perguntei o que ele estava fazendo por aquelas bandas,
que era distante de Iguatemi, Ele respondeu que estava visitando sua irmã e
cunhado, os quais moravam por ali mesmo, perto da Lagoa Grande. Como a noite
era de lua cheia, ele tinha resolvido pregar uma peça nos tabaréus do lugar.
Tomando mais uns goles da cabaça, expliquei para ele, que o pessoal daquelas
paragens tinha raiva de lobisomens e que cada um deles tinha uma garrucha,
carregada com uma bala de prata; o que era a mais pura verdade. Que se ele
continuasse naquela peraltice de moleques, mais cedo ou mais tarde, ele iria
receber prata quente nos peitos. Aconselhei-o a arranjar uma boa moça para se
casar, pois ele estava passando do tempo. Acompanhei-o até perto da casa, onde
ele estava hospedado, aconselhando-o a ter muito juízo.
Já se
passava das onze horas da noite, quando voltei apresado para casa. Tina estava
na varanda esperando por mim, na companhia de mãe Ana e Criola, a qual
continuava com a sua espingarda recarregada na mão. Tina veio correndo e me
abraçou chorando, aliviada com a minha presença. As minhas duas
comadres
vieram ao meu encontro suspirando acalmadas, a me ver são e salvo. Expliquei
pra elas que perdi a pista do bicho lá pelas bandas da Fazenda Zé Gomes, perto
do Rio São João. Não contei pra ninguém, nem mesmo para Tina, o que realmente
aconteceu; porque não queria manchar o nome de Luís Weisderland Amorim, o qual
hoje é um homem bem casado, pai de cinco filhos, morando na cidade de
Fernandópolis, no interior de São Paulo. Porém Criola, negra arretada de
valente, me afirmou que, com certeza, se tratava de um autêntico Lobisomem.
Pois é
isso mesmo meus camaradas de prosa. Esta é a minha história. Pelos semblantes
de vocês, vejo certa decepção. Todavia, eu não podia mentir para os amigos,
astuciando outra coisa. Contudo, se algum dia eu vier contar para vocês, que me
atraquei com um lobisomem, podem botar suas mãos no fogo que será a mais pura
verdade. Agora vamos deixar de choromelas e tomar mais um cafezinho, com o
delicioso queijo de Conquista, que seu Agripino vai relatar o encontro dele com
o Saci Pererê, lá pelas bandas do Curral Novo.
Gostei do causo, qualquer hora eu conto um aqui também.
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