segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O Nadador.

                                                                   J. B. Pessoa

Meus camaradas, eu concordo com o nosso amigo, aqui presente, o Seu João do Osso, homem de muita sabedoria e apreciador dos ditados populares. Quando ele disse que, só morre afogado quem sabe nadar, é por que: quem não sabe, tem medo d’água. Isso mesmo! Podem rir à vontade, que é de graça; como de graça é esse cafezinho que coei prá vocês, adoçado com rapadura do Sertão. Como o frio está de lascar, um cafezinho quentinho ajuda o cristão a se animar. Podem ir se servindo e não se acanhem. Aproveitem e provem este cuscuz aqui, feito com milho pilado por esse proseador aqui, amigo de vocês. Enquanto isso, aproveitando o tema natação, eu conto um caso que aconteceu comigo, aqui mesmo em Jequié.

Pois é pessoal! Só quem se considera um bom nadador é que se atreve a tomar banho de rio, numa época de enchente e de correnteza forte. Quem foi o idiota que fez isso?!... Ora vocês estão falando com ele!... Sim, eu mesmo. Quando me lembro disso, fico até com vontade de dar uma surra em mim mesmo! Pois é!... Vê se pode?!...

Pois bem: certa feita, numas das minhas idas e vindas a Jequié, eu fui convidado, num sábado à tarde, por uma moçada daqui, com a qual eu tinha feito amizade, para uma pescaria. O pessoal me convenceu de que, na época das cheias eles tinham pescado traíras com mais de meio metro de comprimento. Eu fiquei animado, pois eu nunca tinha visto traíras tão grandes. Como?!... É verdade Seu Manequito?... O senhor já pescou traíras com mais de um metro?!... Puxa a vida!... Acredito, pois sei que o senhor é um homem que detesta mentiras! Benza-te Deus! Pois é!...

Como eu disse antes, eu fiquei contente com a possibilidade de pescar traíras tão desenvolvidas, pois a maior que eu havia pescado, media apenas trinta e cinco centímetros de comprimento. Alegre com aquela recreação, segui a risonha rapaziada e fomos para um ponto do rio, depois da Rua Curral dos Bois. Lá chegando, jogamos na água os nossos anzóis e não pegamos nada! “Nadica” de nada! Ou como diz o Seu Nenê: ”necas de tibiribas”! O que a gente viu, entre outras coisas, foi muitas melancias boiando e rolando na correnteza, viajando para outras paragens. Foi aí então, que um caboclo, morador das redondezas, o qual estava acostumado com as manhas do rio, se atirou naquelas águas turbulentas e começou a recolher as melancias, que as enxurradas arrancaram das roças, levando-as para o rio, as quais viajaram até àquela parte.

Fiquei um bom tempo observando o rapaz, o qual era um excelente nadador. Ele foi colhendo muitas e fazendo um belo monte delas. Ofereceu algumas para a gente, que eram de excelente qualidade. Seu moço, quando provei uma delas, eu imaginei que teria vindo do meu torrão, pois os meus parentes possuíam roças nas proximidades das margens do Rio São João, o qual é afluente do Rio das Contas. Contente com tudo aquilo, resolvi cair n’água, para também pegar algumas. O pessoal que estava comigo ficou preocupado, dizendo que eu não conhecia bem o rio, e que aquela ideia poderia ser perigosa. Eu já estava quase desistindo daquela bravata, quando um sujeito baixinho, que estava com a gente, começou a caçoar do meu propósito. Era um lourinho tirado a bonito, o qual nutria uma antipatia gratuita à minha pessoa. Aludindo a minha altura, o mequetrefe disse que, em pau grande o tombo é maior. Seu moço!... Meu compadre!... Eu fiquei fulo de raiva, mas não perdi as estribeiras. Trato

todo mundo bem, para ser respeitado. Eu era um homem feito, com os meus trinta e três anos, e já era um negociante conceituado por todo o Sertão. Olhei com desprezo para o sujeito e menti para os meus amigos, dizendo que eu estava acostumado a tomar banho nas cheias do Rio São Francisco, em Bom Jesus da Lapa. Sem dar trela a ninguém, tirei as minhas roupas e caí pelado dentro d’água, para não molhar minha cueca de cambraia com a água barrenta do rio. A correnteza não estava forte como eu imaginava. Cheio de coragem, eu fui nadando além das margens e, em pouco tempo, a minha ruma de melancias já estava maior do que a do nadador daquela localidade, despertando nele certa inveja. O caboclo, que estava beirando os trinta anos, olhou para mim e disse com arrogância: “Ocê tá fazendo bonito para o diabo ver! “Eu, que sou eu, não faço isso, que dirá ocê!” Fiquei chateado com aquela desconsideração a minha pessoa; contudo, fiquei calmo e, olhando sério para o sujeito, perguntei: “Por que você se acha melhor do que eu?” Foi nessa hora que, o enxerido do baixinho respondeu pelo caboclo: “O que você tem é muita garganta, pois Cosme está acostumado a atravessar o rio em correnteza pior do que esta!” Seu moço!... Meu compadre!... Meus amigos aqui presentes: meus colhões começaram a doer na hora! Fiquei com tanta raiva do baixinho, que me deu uma vontade danada de pegar o sujeito e mostrar com quantos paus se faz uma canoa. Entretanto, procurei me acalmar, pois não gosto de brigas e, além disso, o baixinho era amigo de toda aquela rapaziada, com quem eu tinha feito amizade. É verdade compadre José das Alagoas?!... O senhor teria dado umas porradas no baixinho?!... Êta homem valente sô! Isso merece até uma comemoração: Café e cuscuz para todo o mundo.

Voltando ao que eu estava contando, não deixei o desaforo barato, não! Ignorando o baixinho, não dando trelas para seus desaforos, virei para o caboclo e lhe disse muito sério: “Aposto com você cem mil reis, como atravesso nadando esse rio, agora mesmo.” Seu moço, o sacana do baixinho queria me aporrinhar mesmo. Olhou para mim e disse com toda a sua arrogância: “Você está fazendo este desafio, porque sabe que Cosme é pobre e não tem esse dinheiro”. Seu moço, eu já ia partir para o barulho, quando um dos rapazes presentes no local, chamado José Vaz Sampaio, o qual vocês conhecem muito bem, virou para o baixinho e lhe disse em tom de mofa: “Ué, já que você está tomando as dores do outro, por que você não encara a aposta?” Nesse momento Otoniel Vieira, outro rapaz que estava com a gente, disse mangando do baixinho: “Isto é, se você tiver dinheiro!” Seu moço, meus amigos, vocês não vão acreditar; mas, mesmo assim, eu vou contar. O petulante do baixinho olhou sorrindo para a moçada e gritou alto para todo mundo ouvir: “Dinheiro pouco eu tenho muito; aposto um conto de reis com o grandão aí, como ele não tem coragem de atravessar o rio a nado!”

Seu moço, desta vez quem sorriu, fui eu! Esse proseador que vos fala nessa noite de boas prosas, sempre foi um bom nadador de mar, rios e lagoas! O safado do baixinho não sabia com quem estava lidando e achava que eu estava blefando. Ele imaginava que, além de não ter coragem de atravessar o rio a nado, eu também não tinha dinheiro para bancar a aposta. Como vocês sabem, naquela época mil cruzeiros era uma bela soma e pouca gente podia dispor de uma quantia daquelas. Só para comparar com os dias de hoje, a entrada em um cinema de luxo custava cinco cruzeiros, ou como se dizia naquele maravilhoso tempo: cinco mil réis!

Pois bem: virei para o baixinho e disse que topava a aposta. Contudo ela teria de ser casada naquela hora, com dinheiro ou cheque. O estrapilho de gente ficou surpreso com a minha determinação, mas não teve outra saída. Assinou

um cheque de mil cruzeiros e eu também. Os cheques ficaram com Moura, um jovem rapaz que trabalhava no Banco do Brasil. A moçada que estava com a gente não gostou da ideia, pois achava perigosa aquela empreitada. Não voltei atrás, nem o baixinho também. Alertei para o pessoal que, devido à correnteza, eu iria sair do outro lado, um pouco distante. Quando eu tivesse completado a travessia, acenaria para eles.

Eram mais ou menos umas quatro horas da tarde, quando me benzi e entrei na água. No início eu ia bem, me preocupando apenas com os troncos e galhos de árvore que a correnteza levava. O rio tinha, mais ou menos, uns trezentos metros de largura, o que não é muito. Eu já tinha atravessado mais da metade, quando olhei para trás e vi que estava distante do ponto de partida. À medida que eu ia ficando próximo à outra margem, a correnteza ia ficando, cada vez, mais forte e, quando faltavam apenas uns cinco metros para eu conseguir chegar ao final, ela aumentou bastante me deixando preocupado.

Seu moço, meu compadre, amigos aqui presentes!... Se arrependimento matasse, eu estava morto! Quem foi que disse que eu conseguia atingir a outra margem?!... Seu moço!...Parecia que um romãozinho estava me atrapalhando, não querendo que eu chegasse ao final. Na beirada da margem, a correnteza estava forte demais, parecendo que o furor dela estava concentrado perto do barranco. Talvez naquela parte, o fundo do rio fosse mais profundo. Quando eu ia tocando nos ramos das plantas, que ficavam nas beiradas, estes se partiam e eu tinha que recomeçar tudo de novo. Eu já estava sentindo meus braços e pernas cansados daquela labuta, quando percebi que eu estava me aproximando da ponte. Meus amigos!... Nesse momento, o pânico começou a tomar conta de mim. Lembrei-me de que, nos pilares da Ponte Teodoro Sampaio havia uns redemoinhos d’água, que rodopiavam até bois pesados, levando-os à morte. Foi aí que gritei com muita fé: “Valei-me meu Bom Jesus da Lapa!” No mesmo instante minhas braçadas ficaram mais vigorosas e, com muito esforço, consegui segurar um ramo mais forte, escapando daquele perigo!

Meus amigos!... Saí da água com as pernas bambas e os braços cansados, sentindo dores no corpo inteiro. Deitei-me na relva para descansar um pouco, me sentindo aliviado, pensando na enorme besteira que eu havia feito. De repente me lembrei da aposta. Como eu estava distante do lugar, de onde havia entrado na água, saí apressado, andando pelas beiradas do rio, quase correndo, para poder dar notícias aos meus amigos. Quando me aproximei do local, ainda um pouco distante, subi em um pé de pau e gritei, acenando para eles. A moçada toda gritou de volta, acenando e batendo palmas para mim. Fiquei muito contente com tudo aquilo e avisei que eu ia atravessar o rio de volta naquele momento, pedindo a eles para me esperar. Seu moço!... Quando eu ia entrar na água novamente, um baita medo tomou conta de mim! Olhei para aquelas águas turbulentas e me lembrei da burrada que eu tinha feito antes. Cocei a cabeça e pensei com os meus botões. Botões?!... Que botões?... Eu estava nu! Peladão da silva! As minhas roupas estavam com a rapaziada do outro lado do rio. Voltar a nado estava fora de cogitação, pois outra besteira daquela era demais. Cocei a cabeça novamente e, como eu estava muito nervoso, gritei: “Puta que pariu e agora?!” Depois de pensar um pouco, cheguei à conclusão que, a única saída era voltar pela ponte. Mas como?! Se eu estava nu? Resolvi então esperar a noite chegar e passar pela ponte, protegido pela escuridão. Pensando assim, fui andando pelas beiradas do rio, me escondendo no mato, para depois tentar a sorte, pedindo ajuda a alguém. Não precisei andar muito e encontrei uma casinha de sapé, a qual parecia não ter ninguém nela, naquele momento. Foi aí

que vi no modesto varal de roupas, um calção feito com pano de saco de açúcar, secando ao sol. Seu moço! Eu não pensei duas vezes! Afanei e vesti aquele calção rapidamente e sebo nas canelas! Corri pelas veredas da margem direita do Rio das Contas, em direção à ponte, desaparecendo dali em seguida, sem olhar prá trás.

Meus camaradas!... Mas uma vez a sorte me acolheu. Eram quase cinco horas da tarde quando, ao percorrer a ponte, encontrei Adonias Risério Pessoa, meu irmão adolescente, o qual estudava em Jequié. Ele estava passeando pelo bairro Mandacaru, pilotando a sua nova motocicleta. Quando ele me viu andando só de calção, ficou avexado com aquela situação. Contei-lhe a minha história e pedi que ele me levasse rápido dali. Com receio de alguém me ver naquela condição, o meu irmão agiu rapidamente, dando-me uma oportuna carona e me levou para beira do rio, perto de onde a rapaziada me esperava. Despi-me do calção e pedi ao meu irmão para guardar. Em seguida, entrei na água para molhar o corpo e ir ao encontro dos meus amigos. Adonias ficou escondido para ninguém lhe ver e, só foi embora, depois que me apresentei àquela moçada, são e salvo como um vencedor!

A primeira coisa que fiz, foi vestir minhas roupas, agradecendo a Deus em pensamento, por ter escapado com vida daquela aventura e de não sofrer o vexame de alguém me ver nu ou de calção pelas ruas. Apesar de não ter voltado a nado, moralmente eu havia ganhado a aposta, pois o desafio era atravessar o rio a nado e isso eu fiz. A rapaziada me cumprimentou com alegria e satisfação, congratulando-me pelo ato heroico. Contente com tudo aquilo, saudei a todos com muita alegria, e aproveitei a ocasião para alertar os nadadores, do perigo existente na margem direita do rio, Em seguida Moura me entregou os dois cheques, pois fui o vencedor da aposta. Olhei para o baixinho e verifiquei que tinha sumido toda a sua arrogância. Ele me olhava preocupado; talvez com a possibilidade de que não pudesse cobrir o cheque.

Meus amigos: eu vou dizer uma coisa pra vocês e espero que acreditem em mim. Eu nunca gostei de apostas, pois acho que saio sempre perdendo. Se eu perco a aposta fico no prejuízo. Se ganho e levo, sinto a sensação esquisita, de estar subtraindo alguém. Pois é!... Pensando assim e agradecendo aos céus por estar vivo, peguei os dois cheques e rasguei-os em pedacinhos atirando-os ao vento. A moçada ficou boquiaberta diante do meu gesto. Olhei para o baixinho e lhe disse: ”Dinheiro pouco eu também tenho muito; porém, ganho com o suor do meu rosto!” Virei para a rapaziada, que continuava pasmada com o meu ato, acrescentando: “Dinheiro ganho com apostas dá um azar danado!”

Seu moço, meus amigos aqui presentes nessa fria e escura noite de julho: o baixinho suspirou aliviado. Em seguida chegou a mim, pedindo desculpas e, estendendo a sua mão, perguntou se podia apertar a mão de um homem de verdade. O aperto de mãos foi dado, sob os aplausos daquela moçada maravilhosa.

É verdade Seu Durval Bodeiro?...O senhor não apertava a mão e nem dispensava a aposta do sujeito?!... Pois é! Muita gente pensa assim. Deve ser porque o meu nome é Manoel!... Não dizem que todo Mané é besta?!...

Bom: de qualquer maneira a moçada aprovou o meu gesto. Depois de despedirmos do caboclo, deixando para ele minha ruma de melancias, saímos dali em direção ao centro da cidade. Por sugestão de meu amigo Sosténes Cerqueira e de um rapaz conhecido como Zé das Moças, fomos terminar à tarde no Bar Vermelho, tomando umas cervejas geladas, acompanhadas a tragos de uma puríssima destilada.

Na segunda feira, bem cedinho, fui bater na porta da casinha de sapé. Apareceu um moço, trabalhador de roça, a quem pertencia o calção. Contei-lhe parte da minha história, devolvendo o seu calção. Junto às minhas desculpas, doei-lhe uma nota de dez cruzeiros, deixando o caboclo satisfeito.

Pois é meus amigos! Como diz o povo: ”Só se molha quem sai na chuva sem proteção!” Agora vamos tomar outro cafezinho, que Seu Manequito vai contar pra gente um caso de assombração.

Nono capítulo do livro não publicado “As Aventuras de um Catingueiro”

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