segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O Fantasma de Iguatemi.

                                                           J. B. Pessoa

Meus amigos!... Como já tive a ocasião de dizer pra vocês, acontece cada coisa na vida de um cidadão que até o diabo duvida! Tenho sempre a tendência de acreditar nas estórias que me contam, porque, não tenho nenhuma certeza, se as coisas que me aconteceram foram verdadeiras ou produto da minha imaginação. O caso da moça do algodão de seda me deixou bastante encafifado! Teve gente que andou dizendo que sou mentiroso ou que fiquei de “miolo mole”. Eu só queria saber quem foi o “cabra” que disse isso, porque que eu pegaria o moleque e o amarraria dentro de uma casa mal assombrada, em noite de lua cheia pra ele ver o que é bom pra tosse.

Muito tempo atrás, bem antes do Caso do Algodão de Seda, quando eu ainda morava em Iguatemi, no município de Livramento do Brumado começou a aparecer na vila um fantasma assombrando todo mundo! Ninguém queria sair à noite, pois a tal visagem rondava a noite toda, gemendo e dizendo palavras que ninguém entendia. Todo mundo tratou-se de ficar quieto, dentro de casa, pois, se existe uma coisa que o catingueiro tem medo, é de alma penada!

Certo dia, pela manhã, cansadas da falta de coragem de seus concidadãos, um grupo de moças, aconselhadas por alguém, foi atrás de Golino da Lagoa Grande, o famoso caçador de onças. Esse sim: era um “cabra” valente que não tinha medo de assombração, boi brabo, capeta ou mulher feia e diziam que ele já tinha botado pra correr muito lobisomem tinhoso! Porém na ocasião, o meu compadre Golino não se encontrava na região, tinha viajado para Vitória da Conquista a negócios. “O que fazer então?” perguntavam as moças na procura de uma solução. Foi aí que um capadócio, querendo aparecer e mangar de certa pessoa sugeriu às moças que procurasse o companheiro de Golino das grandes caçadas, um “cabra aretado”, muito valente, que também não tinha medo de nada! Meus amigos! Vocês sabem quem era esse caçador arrojado, camarada de Golino? Não? Pois bem: é esse capiau aqui, que está proseando com vocês!... Seu moço! Quando vi aquele bocado de moças bonitas, todas fidalgas, não tive como dizer não. Principalmente quando uma delas, uma menina de doze anos, que mais tarde os anjos me dariam como esposa e mãe dos meus filhos, me implorou: “Manoel! Essa visagem não está deixando ninguém dormir, Vê se você pode fazer alguma coisa”. Ergui o peito, fiz uma pose de macho corajoso e disse para as moças que podiam contar comigo. Elas foram embora me agradecendo antecipadamente. Seu Moço, aqui pra nós: eu não tive outro remédio senão concordar com aquilo, pois não sou nenhum besta de passar por medroso diante de moças tão finas e bonitas como aquelas e, além disso, fiquei sabendo que o tal mequetrefe, que me botou naquela fria, tinha inveja do sucesso que eu fazia entre a moçada daquele tempo.

Fui para minha venda, bastante preocupado com essa responsabilidade. Como já disse antes: não sou nenhum mofino, mas valentia nunca foi uma das minhas qualidades, principalmente quando se trata de coisas do além. Comecei a matutar uma maneira decente de sair daquela enrascada. Nunca acreditei em fantasmas, mas, pelo sim ou pelo não, não queria me arriscar, pois muita gente boa jurou que já viu. Então me lembrei do meu velho tio avô, chamado de João Velho, que tinha fama de mandingueiro e fui pedir sua ajuda. Selei meu cavalo e rumei

para um lugar chamado de Olho D’água, onde era a sua morada. Lá chegando, o velho me deu um forte abraço, trouxe uma cabaça cheia de destilada, tomamos uns tragos e ficamos proseando por um bom tempo. Quando lhe falei do meu dilema ele riu bastante e disse: “Meu filho, você não precisa se preocupar com isso! Alma penada não faz mal a ninguém!... Ela geralmente quer ajuda e poucas são as pessoas que tem o poder de ver e falar com alguma!” Depois pensou um pouco e disse: “Vá ver que é algum capadócio querendo mangar com o pessoal da vila.” Depois de conversar bastante com o velho e ouvir suas opiniões, me despedi dele e, acatando o seu conselho, fui à busca de uma velha cafuza chamada Luzia Curandeira, que era “mãe de santo”. Lá chegando me apresentei e, em poucas palavras, lhe fiz ciente do meu problema. “Se a vexe não, meu branco! O que a visagem precisa e de uma boa reza!” Dizendo tudo o que ia fazer, ela ficou de encontrar comigo na vila, ao cair da tarde daquele mesmo dia. Fiquei bastante aliviado, pois não estava mais sozinho naquela empreitada. Montei em meu cavalo e chegando à vila numa só galopada, fui direto para minha venda. O boato que eu tinha me comprometido com as moças na inusitada aventura, se espalhou por toda a parte e todo mundo comentava que eu ia botar um fantasma pra correr. O tal capadócio dizia pra todo o mundo, que eu era um poltrão, só tinha tamanho e que eu ia me borrar de medo na hora do confronto. Fiquei fulo da vida e quis partir para dar um corretivo no sujeito. Meu grande amigo Tião de Maria Rita tomou as minhas dores e foi atrás do mequetrefe que, quando soube da encrenca que estava se metendo, pulou em cima de seu cavalo e saiu em disparada; pois não era besta de se meter com um homem de valentia comprovada.

O sol estava se pondo quando Mãe Luzia chegou à vila e foi direto para minha venda. Estava vestida com seus trajes religiosos, pois pertencia a um tipo de candomblé, misto do africano e caboclo. Ela tirou do seu embornal umas peças estranhas que eram necessárias aos seus afazeres. Portava, também, uma cabaça com água de cheiro e um ramo de folhas verdes. Colocou tudo em cima do balcão e se preparou para receber aquela entidade sofredora. Lá pelas sete horas da noite, já não se via mais ninguém pelas ruas, pois todo mundo havia se recolhido em seus cantos. Peguei o meu revolver, carreguei o tambor com as seis balas, calibre 38 e guardei no bolso interno do meu paletó. Eu suava bastante, pois estava muito nervoso, embora confiante pela presença da curandeira. “Precisa disso não, meu filho! Pra que esse medo todo? Se devera tiver por aqui alguma uma alma penada, o que ela precisa é de caridade!” disse ela, sorrindo, diante do meu temor. Depois balançando a cabeça completou: “mercê precisa ter medo é dos vivos”! Depois sentando em uma cadeira que ofereci, ela olhou para uma pequena vitrina, onde estavam alguns bolos, queijos e doces, disse caçoando dela mesma: “O que essa velha aqui ta precisando é de um bom cafezinho e um pedaço daquele vistoso requeijão, ali!”. Eu já estava com uma chocolateira fervendo no fogo, tratei de coar um forte café e, colocando em um bule a servi, acompanhado de uma bandeja com fatias de queijos e requeijão e com alguns beijus e chimangos, que a velha devorou em poucos minutos. Tomei uma soberba tigela de café e depois de picar uma boa quantidade de fumo, fiz um grosso cigarro de palha e ofereci o restante a ela. Mãe Luzia, assim como ela era tratada pelos mais íntimos, colocou o fumo picado em seu cachimbo de barro e ficamos fumando por um bom tempo, proseando sobres as vicissitudes da vida. As horas foram passando sem que eu percebesse, pois a velha

tinha uma prosa boa. Em nenhum momento ela se referia ao seu trabalho e os casos que ela contava eram sobre pessoas que foram vitoriosas, graças às suas persistências e habilidades. Alguns casos eram engraçados e dávamos boas gargalhadas. O relógio de parede que eu tinha em meu estabelecimento badalou doze vezes, anunciando a meia noite. Estávamos tão entretidos em nossas conversas que não sentimos o tempo passar. Seu Moço! Meu compadre! Camaradas aqui presentes! De repente, do meio do nada, ouvimos um grito horripilante, misto de dor e medo, que gelou a minha alma! A velha ergueu-se calmamente e foi ao balcão, pegou suas coisas e acendeu uma vela. Olhou para mim, muito séria e disse impassivelmente: “Está na hora meu filho! Vamos ver o que essa alma infeliz quer da gente”! Seu moço! Meus amigos! O meu coração batia tanto, parecendo que ia sair pela boca. Coloquei num copo uma boa talagada da branquinha e enfiei goela adentro! Alisei a parte esquerda do meu paletó, certificando que minha arma continuava no bolso. Respirei forte e saímos à rua na procura do fantasma.

Era noite de lua cheia, com uma claridade especial parecendo está de dia. Se não fosse pelo sinistro acontecimento os boêmios do lugar estariam fazendo serenatas naquele final de semana. Seguimos em direção de onde parecia ter vindo o terrível grito. A velha ia rezando, fazendo o sinal da cruz com o ramo de folhas verdes em uma mão enquanto levava a vela acesa na outra. Eu ia com a cabaça de água de cheiro pronto pra jogar na alma penada, conforme determinação da mãe de santo. De repente, uma nuvem escura encobriu a lua quando estávamos na praça da igreja e um vento frio surgiu, simultaneamente, apagando a vela. Nesse momento apareceu em cima de um telhado, uma figura macabra, envolvida numa coisa branca, que berrou com uma voz cavernosa: “EU VIM AQUI PRÁ LEVAR O NENÉM”. Seu moço! Quando vi aquele maldito fantasma no telhado da casa de minha prima, no momento em que ela se encontrava de resguardo, pelo nascimento de seu primogênito, não pensei duas vezes: Com um misto de raiva e medo, saquei o meu revolver e disparei uns tiros contra o maligno que assombrava os meus parentes. Subitamente o fantasma despiu de seu manto branco, ergueu as mãos e gritou: “Pelo amor de Deus, Manoel, não atire!... É Cidinha!... Cidinha do Santo Inácio!... Isso aqui é apenas uma brincadeira e não tenho a intenção de fazer nenhum mal!” Fiquei boquiaberto, com o revolver fumegando na mão, sem entender o que estava a acontecer, enquanto a velha ordenava a moça, que descesse do telhado, dizendo bastante zangada: “Cruz, credo! Onde já se viu uma coisa dessas! Tá pensando que a gente não tem o que fazer? Mercê tá precisando receber uma dúzia de “bolos”, pra aprender a respeitar os mais velhos“! A moça, tremendo de medo, desceu do telhado por uma escada escondida no oitão da casa, que ficava às escuras. Nesse mesmo instante, nos arredores de onde estavam ocorrendo àquela cena, às pessoas acendiam as luzes de suas casas, aparecendo nas janelas, interessadas nos acontecimentos. Não demorou muito e o lugar estava repleto de curiosos. Algumas mulheres se sentiam injuriadas com a falta de respeito daquela moça atrevida e quiseram dar uma sova na garota. Imediatamente rapaziada local protestou, defendendo a moça. Afinal, tratava-se apenas de uma peraltice juvenil e Maria Aparecida de Jesus Pereira, de 20 anos, conhecida como Cidinha, era a cabocla mais bonita da região. Eu estava ainda atordoado com tudo aquilo, pois a moça, além de ser minha amiga, era afilhada de meu pai. Eu tinha escapado, por pouco, de levar uma morte nas costas e aquela horripilante idéia remoia meus

pensamentos. O bate-boca estava generalizado, com os prós e contras, quando, de súbito, Mãe Luzia gritou furiosa: “Vão pra suas tocas seus bandos de mofinos! Na hora do pega-pra-capar todo mundo estava escondido debaixo de suas camas e agora querem dar opinião! E as donas tratem logo de dar o fora, senão eu jogo um pó de pemba, que vai deixar todo mundo de caganeira por uma semana”. No mesmo instante a praça ficou vazia, pois ninguém era besta de encarar uma mandingueira da fama de Mãe Luzia. Em seguida levamos a moça para minha venda, que ainda choramingava pelo susto recebido. Mãe Luzia fez um chá de erva cidreira que Cidinha tomou enquanto ouvia os sermões da velha, a qual ralhava e ao mesmo tempo aconselhava numa postura quase maternal. Ficamos sabendo que a treita de Cidinha era apenas para assustar a mãe do neném, objeto do desafeto da moça, pois ela tinha sido xodó do marido da minha prima e não se conformava em ser descartada pelo rapaz. Logo após o nascimento do menino, Cidinha foi aconselhada pelo tal capadócio, que atendia pelo nome de Luis Weisderland Amorim e, com a cumplicidade dele, armou toda aquela molecagem. Ela se vingaria da rival e eu seria “avacalhado” como um cabra medroso. O filho da mãe era, por sinal, um parente das moças que me pediu ajuda. Esse mequetrefe foi o sujeito mais pernóstico, arrogante e metido a besta que conheci na vida.

O dia amanheceu esplendoroso e os acontecimentos da noite anterior foram bastante comentados naquele domingo ensolarado. No dia seguinte, dia da feira semanal da vila, não deu outro assunto. Todo mundo da região, ficou sabendo do xodó de Cidinha com Joaquim, marido da minha prima, que jurou de pés juntos, por todos os santos, que o namoro que manteve com a moça, foi antes de seu casamento. Cidinha tomou o seu corretivo naquele mesmo dia de feira, onde todos ouviram seus gritos. O vaqueiro Abdias da Silva Pereira, pai da moça, deu-lhe uma surra com vara de marmelo, que foi preciso banhá-la em água com sal grosso, para que seus ferimentos não inflamassem. Joaquim só escapou de ser morto pelo irredutível vaqueiro, depois que Mãe Luzia, ao examinar a moça, afirmou, categoricamente, que Cidinha era moça donzela e que, tudo aquilo que aconteceu era apenas irresponsabilidade de uma moça magoada em seus sentimentos.

O caso do fantasma de Iguatemi rendeu muitas prosas e a maioria não correspondia à realidade. Entre tantos, alguns viraram casos de lobisomem e não faltaram heróis que botaram o bicho pra correr! Pois é isso aí seu moço! Contei o caso direitinho como aconteceu. Esse ditado popular que diz que: “o povo aumenta mais não inventa” ou “onde há fumaça, há fogo” são coisas relativas, pois o povo torce as verdades. O capadócio do Luis Weisderland caiu fora e por um bom tempo não apareceu no lugar, pois o zangado Abdias sabia que ele tinha culpa no cartório. Eu, da minha parte, tratei de conversar direitinho com o pai da moça, porque, afinal, fui o autor dos tiros que poderia ter tirado a vida de sua filha. Ele me recebeu cordialmente, me abraçou e disse com sinceridade: “Se avexe não, meu filho! Sou eu quem deve desculpas a você e a Mãe Luzia! Além disso, eu jamais faria algum mal ao filho do meu compadre Adolfo Pessoa!”

Com o tempo as coisas voltaram ao normal na vila. Minha prima e seu marido vivem juntos até hoje e tiveram vários filhos. Cidinha foi morar em Fernandópolis, cidade do interior paulista e nunca mais apareceu em Iguatemi. Dizem que se casou com um alemão, vivendo atualmente no estrangeiro. Pois bem meus amigos, como eu disse no começo: até os dias de hoje, não vi, ainda, nenhum

fantasma ou visagem como dizem os catingueiros, mas, como tem um ditado que diz: “Eu não creio nas bruxas, mas elas existem”, fico calado e acredito em tudo que me dizem! Agora vamos tomar um cafezinho bem quente e comer um bom pedaço de requeijão feito, sabem por quem?!...Pelo meu primo sobrinho, o neném da história, que hoje está com 30 anos e tem uma pequena indústria de lacticínios em Brumado.

Quarto capítulo do livro não publicado “As Aventuras de um Catingueiro”

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