J. B. Pessoa
Meus
amigos!... Como já tive a ocasião de dizer pra vocês, acontece cada coisa na
vida de um cidadão que até o diabo duvida! Tenho sempre a tendência de
acreditar nas estórias que me contam, porque, não tenho nenhuma certeza, se as
coisas que me aconteceram foram verdadeiras ou produto da minha imaginação. O
caso da moça do algodão de seda me deixou bastante encafifado! Teve gente que
andou dizendo que sou mentiroso ou que fiquei de “miolo mole”. Eu só queria
saber quem foi o “cabra” que disse isso, porque que eu pegaria o moleque e o
amarraria dentro de uma casa mal assombrada, em noite de lua cheia pra ele ver
o que é bom pra tosse.
Muito
tempo atrás, bem antes do Caso do Algodão de Seda, quando eu ainda morava em
Iguatemi, no município de Livramento do Brumado começou a aparecer na vila um
fantasma assombrando todo mundo! Ninguém queria sair à noite, pois a tal
visagem rondava a noite toda, gemendo e dizendo palavras que ninguém entendia.
Todo mundo tratou-se de ficar quieto, dentro de casa, pois, se existe uma coisa
que o catingueiro tem medo, é de alma penada!
Certo
dia, pela manhã, cansadas da falta de coragem de seus concidadãos, um grupo de
moças, aconselhadas por alguém, foi atrás de Golino da Lagoa Grande, o famoso
caçador de onças. Esse sim: era um “cabra” valente que não tinha medo de
assombração, boi brabo, capeta ou mulher feia e diziam que ele já tinha botado
pra correr muito lobisomem tinhoso! Porém na ocasião, o meu compadre Golino não
se encontrava na região, tinha viajado para Vitória da Conquista a negócios. “O
que fazer então?” perguntavam as moças na procura de uma solução. Foi aí que um
capadócio, querendo aparecer e mangar de certa pessoa sugeriu às moças que
procurasse o companheiro de Golino das grandes caçadas, um “cabra aretado”, muito
valente, que também não tinha medo de nada! Meus amigos! Vocês sabem quem era
esse caçador arrojado, camarada de Golino? Não? Pois bem: é esse capiau aqui,
que está proseando com vocês!... Seu moço! Quando vi aquele bocado de moças
bonitas, todas fidalgas, não tive como dizer não. Principalmente quando uma
delas, uma menina de doze anos, que mais tarde os anjos me dariam como esposa e
mãe dos meus filhos, me implorou: “Manoel! Essa visagem não está deixando
ninguém dormir, Vê se você pode fazer alguma coisa”. Ergui o peito, fiz uma
pose de macho corajoso e disse para as moças que podiam contar comigo. Elas
foram embora me agradecendo antecipadamente. Seu Moço, aqui pra nós: eu não
tive outro remédio senão concordar com aquilo, pois não sou nenhum besta de passar
por medroso diante de moças tão finas e bonitas como aquelas e, além disso,
fiquei sabendo que o tal mequetrefe, que me botou naquela fria, tinha inveja do
sucesso que eu fazia entre a moçada daquele tempo.
Fui
para minha venda, bastante preocupado com essa responsabilidade. Como já disse
antes: não sou nenhum mofino, mas valentia nunca foi uma das minhas qualidades,
principalmente quando se trata de coisas do além. Comecei a matutar uma maneira
decente de sair daquela enrascada. Nunca acreditei em fantasmas, mas, pelo sim
ou pelo não, não queria me arriscar, pois muita gente boa jurou que já viu.
Então me lembrei do meu velho tio avô, chamado de João Velho, que tinha fama de
mandingueiro e fui pedir sua ajuda. Selei meu cavalo e rumei
para
um lugar chamado de Olho D’água, onde era a sua morada. Lá chegando, o velho me
deu um forte abraço, trouxe uma cabaça cheia de destilada, tomamos uns tragos e
ficamos proseando por um bom tempo. Quando lhe falei do meu dilema ele riu
bastante e disse: “Meu filho, você não precisa se preocupar com isso! Alma
penada não faz mal a ninguém!... Ela geralmente quer ajuda e poucas são as
pessoas que tem o poder de ver e falar com alguma!” Depois pensou um pouco e
disse: “Vá ver que é algum capadócio querendo mangar com o pessoal da vila.”
Depois de conversar bastante com o velho e ouvir suas opiniões, me despedi dele
e, acatando o seu conselho, fui à busca de uma velha cafuza chamada Luzia
Curandeira, que era “mãe de santo”. Lá chegando me apresentei e, em poucas
palavras, lhe fiz ciente do meu problema. “Se a vexe não, meu branco! O que a
visagem precisa e de uma boa reza!” Dizendo tudo o que ia fazer, ela ficou de
encontrar comigo na vila, ao cair da tarde daquele mesmo dia. Fiquei bastante
aliviado, pois não estava mais sozinho naquela empreitada. Montei em meu cavalo
e chegando à vila numa só galopada, fui direto para minha venda. O boato que eu
tinha me comprometido com as moças na inusitada aventura, se espalhou por toda
a parte e todo mundo comentava que eu ia botar um fantasma pra correr. O tal
capadócio dizia pra todo o mundo, que eu era um poltrão, só tinha tamanho e que
eu ia me borrar de medo na hora do confronto. Fiquei fulo da vida e quis partir
para dar um corretivo no sujeito. Meu grande amigo Tião de Maria Rita tomou as
minhas dores e foi atrás do mequetrefe que, quando soube da encrenca que estava
se metendo, pulou em cima de seu cavalo e saiu em disparada; pois não era besta
de se meter com um homem de valentia comprovada.
O sol
estava se pondo quando Mãe Luzia chegou à vila e foi direto para minha venda.
Estava vestida com seus trajes religiosos, pois pertencia a um tipo de
candomblé, misto do africano e caboclo. Ela tirou do seu embornal umas peças
estranhas que eram necessárias aos seus afazeres. Portava, também, uma cabaça
com água de cheiro e um ramo de folhas verdes. Colocou tudo em cima do balcão e
se preparou para receber aquela entidade sofredora. Lá pelas sete horas da
noite, já não se via mais ninguém pelas ruas, pois todo mundo havia se
recolhido em seus cantos. Peguei o meu revolver, carreguei o tambor com as seis
balas, calibre 38 e guardei no bolso interno do meu paletó. Eu suava bastante,
pois estava muito nervoso, embora confiante pela presença da curandeira.
“Precisa disso não, meu filho! Pra que esse medo todo? Se devera tiver por aqui
alguma uma alma penada, o que ela precisa é de caridade!” disse ela, sorrindo,
diante do meu temor. Depois balançando a cabeça completou: “mercê precisa ter
medo é dos vivos”! Depois sentando em uma cadeira que ofereci, ela olhou para
uma pequena vitrina, onde estavam alguns bolos, queijos e doces, disse caçoando
dela mesma: “O que essa velha aqui ta precisando é de um bom cafezinho e um
pedaço daquele vistoso requeijão, ali!”. Eu já estava com uma chocolateira fervendo
no fogo, tratei de coar um forte café e, colocando em um bule a servi,
acompanhado de uma bandeja com fatias de queijos e requeijão e com alguns
beijus e chimangos, que a velha devorou em poucos minutos. Tomei uma soberba
tigela de café e depois de picar uma boa quantidade de fumo, fiz um grosso
cigarro de palha e ofereci o restante a ela. Mãe Luzia, assim como ela era
tratada pelos mais íntimos, colocou o fumo picado em seu cachimbo de barro e
ficamos fumando por um bom tempo, proseando sobres as vicissitudes da vida. As
horas foram passando sem que eu percebesse, pois a velha
tinha
uma prosa boa. Em nenhum momento ela se referia ao seu trabalho e os casos que
ela contava eram sobre pessoas que foram vitoriosas, graças às suas
persistências e habilidades. Alguns casos eram engraçados e dávamos boas
gargalhadas. O relógio de parede que eu tinha em meu estabelecimento badalou
doze vezes, anunciando a meia noite. Estávamos tão entretidos em nossas
conversas que não sentimos o tempo passar. Seu Moço! Meu compadre! Camaradas
aqui presentes! De repente, do meio do nada, ouvimos um grito horripilante,
misto de dor e medo, que gelou a minha alma! A velha ergueu-se calmamente e foi
ao balcão, pegou suas coisas e acendeu uma vela. Olhou para mim, muito séria e
disse impassivelmente: “Está na hora meu filho! Vamos ver o que essa alma
infeliz quer da gente”! Seu moço! Meus amigos! O meu coração batia tanto,
parecendo que ia sair pela boca. Coloquei num copo uma boa talagada da
branquinha e enfiei goela adentro! Alisei a parte esquerda do meu paletó,
certificando que minha arma continuava no bolso. Respirei forte e saímos à rua
na procura do fantasma.
Era
noite de lua cheia, com uma claridade especial parecendo está de dia. Se não
fosse pelo sinistro acontecimento os boêmios do lugar estariam fazendo
serenatas naquele final de semana. Seguimos em direção de onde parecia ter
vindo o terrível grito. A velha ia rezando, fazendo o sinal da cruz com o ramo
de folhas verdes em uma mão enquanto levava a vela acesa na outra. Eu ia com a
cabaça de água de cheiro pronto pra jogar na alma penada, conforme determinação
da mãe de santo. De repente, uma nuvem escura encobriu a lua quando estávamos
na praça da igreja e um vento frio surgiu, simultaneamente, apagando a vela.
Nesse momento apareceu em cima de um telhado, uma figura macabra, envolvida
numa coisa branca, que berrou com uma voz cavernosa: “EU VIM AQUI PRÁ LEVAR O
NENÉM”. Seu moço! Quando vi aquele maldito fantasma no telhado da casa de minha
prima, no momento em que ela se encontrava de resguardo, pelo nascimento de seu
primogênito, não pensei duas vezes: Com um misto de raiva e medo, saquei o meu
revolver e disparei uns tiros contra o maligno que assombrava os meus parentes.
Subitamente o fantasma despiu de seu manto branco, ergueu as mãos e gritou:
“Pelo amor de Deus, Manoel, não atire!... É Cidinha!... Cidinha do Santo
Inácio!... Isso aqui é apenas uma brincadeira e não tenho a intenção de fazer
nenhum mal!” Fiquei boquiaberto, com o revolver fumegando na mão, sem entender
o que estava a acontecer, enquanto a velha ordenava a moça, que descesse do
telhado, dizendo bastante zangada: “Cruz, credo! Onde já se viu uma coisa
dessas! Tá pensando que a gente não tem o que fazer? Mercê tá precisando
receber uma dúzia de “bolos”, pra aprender a respeitar os mais velhos“! A moça,
tremendo de medo, desceu do telhado por uma escada escondida no oitão da casa,
que ficava às escuras. Nesse mesmo instante, nos arredores de onde estavam
ocorrendo àquela cena, às pessoas acendiam as luzes de suas casas, aparecendo
nas janelas, interessadas nos acontecimentos. Não demorou muito e o lugar
estava repleto de curiosos. Algumas mulheres se sentiam injuriadas com a falta
de respeito daquela moça atrevida e quiseram dar uma sova na garota. Imediatamente
rapaziada local protestou, defendendo a moça. Afinal, tratava-se apenas de uma
peraltice juvenil e Maria Aparecida de Jesus Pereira, de 20 anos, conhecida
como Cidinha, era a cabocla mais bonita da região. Eu estava ainda atordoado
com tudo aquilo, pois a moça, além de ser minha amiga, era afilhada de meu pai.
Eu tinha escapado, por pouco, de levar uma morte nas costas e aquela
horripilante idéia remoia meus
pensamentos.
O bate-boca estava generalizado, com os prós e contras, quando, de súbito, Mãe
Luzia gritou furiosa: “Vão pra suas tocas seus bandos de mofinos! Na hora do
pega-pra-capar todo mundo estava escondido debaixo de suas camas e agora querem
dar opinião! E as donas tratem logo de dar o fora, senão eu jogo um pó de
pemba, que vai deixar todo mundo de caganeira por uma semana”. No mesmo
instante a praça ficou vazia, pois ninguém era besta de encarar uma
mandingueira da fama de Mãe Luzia. Em seguida levamos a moça para minha venda,
que ainda choramingava pelo susto recebido. Mãe Luzia fez um chá de erva
cidreira que Cidinha tomou enquanto ouvia os sermões da velha, a qual ralhava e
ao mesmo tempo aconselhava numa postura quase maternal. Ficamos sabendo que a
treita de Cidinha era apenas para assustar a mãe do neném, objeto do desafeto
da moça, pois ela tinha sido xodó do marido da minha prima e não se conformava
em ser descartada pelo rapaz. Logo após o nascimento do menino, Cidinha foi
aconselhada pelo tal capadócio, que atendia pelo nome de Luis Weisderland
Amorim e, com a cumplicidade dele, armou toda aquela molecagem. Ela se vingaria
da rival e eu seria “avacalhado” como um cabra medroso. O filho da mãe era, por
sinal, um parente das moças que me pediu ajuda. Esse mequetrefe foi o sujeito
mais pernóstico, arrogante e metido a besta que conheci na vida.
O dia
amanheceu esplendoroso e os acontecimentos da noite anterior foram bastante
comentados naquele domingo ensolarado. No dia seguinte, dia da feira semanal da
vila, não deu outro assunto. Todo mundo da região, ficou sabendo do xodó de
Cidinha com Joaquim, marido da minha prima, que jurou de pés juntos, por todos
os santos, que o namoro que manteve com a moça, foi antes de seu casamento.
Cidinha tomou o seu corretivo naquele mesmo dia de feira, onde todos ouviram
seus gritos. O vaqueiro Abdias da Silva Pereira, pai da moça, deu-lhe uma surra
com vara de marmelo, que foi preciso banhá-la em água com sal grosso, para que
seus ferimentos não inflamassem. Joaquim só escapou de ser morto pelo
irredutível vaqueiro, depois que Mãe Luzia, ao examinar a moça, afirmou,
categoricamente, que Cidinha era moça donzela e que, tudo aquilo que aconteceu
era apenas irresponsabilidade de uma moça magoada em seus sentimentos.
O caso
do fantasma de Iguatemi rendeu muitas prosas e a maioria não correspondia à
realidade. Entre tantos, alguns viraram casos de lobisomem e não faltaram
heróis que botaram o bicho pra correr! Pois é isso aí seu moço! Contei o caso
direitinho como aconteceu. Esse ditado popular que diz que: “o povo aumenta
mais não inventa” ou “onde há fumaça, há fogo” são coisas relativas, pois o
povo torce as verdades. O capadócio do Luis Weisderland caiu fora e por um bom
tempo não apareceu no lugar, pois o zangado Abdias sabia que ele tinha culpa no
cartório. Eu, da minha parte, tratei de conversar direitinho com o pai da moça,
porque, afinal, fui o autor dos tiros que poderia ter tirado a vida de sua
filha. Ele me recebeu cordialmente, me abraçou e disse com sinceridade: “Se
avexe não, meu filho! Sou eu quem deve desculpas a você e a Mãe Luzia! Além
disso, eu jamais faria algum mal ao filho do meu compadre Adolfo Pessoa!”
Com o
tempo as coisas voltaram ao normal na vila. Minha prima e seu marido vivem
juntos até hoje e tiveram vários filhos. Cidinha foi morar em Fernandópolis,
cidade do interior paulista e nunca mais apareceu em Iguatemi. Dizem que se
casou com um alemão, vivendo atualmente no estrangeiro. Pois bem meus amigos,
como eu disse no começo: até os dias de hoje, não vi, ainda, nenhum
fantasma
ou visagem como dizem os catingueiros, mas, como tem um ditado que diz: “Eu não
creio nas bruxas, mas elas existem”, fico calado e acredito em tudo que me
dizem! Agora vamos tomar um cafezinho bem quente e comer um bom pedaço de
requeijão feito, sabem por quem?!...Pelo meu primo sobrinho, o neném da
história, que hoje está com 30 anos e tem uma pequena indústria de lacticínios
em Brumado.
Quarto capítulo do livro não publicado “As Aventuras de um Catingueiro”
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