Por Carlos Eden Meira
Quando
abri os olhos pela primeira vez em minha vida, estava numa velha casa da Rua
Vinte e Sete de Janeiro número um, (Ladeira do Vinte e Sete). Hoje, é a casa do
meu saudoso irmão, jornalista Raymundo Meira. Ali passei toda a minha infância
entre meus pais, seis irmãos e uma irmã. Cresci nos alegres anos cinquenta,
época de ouro do cinema, do rádio e das histórias em quadrinhos. Essas coisas,
para nós, meninos da época, eram sinônimos de alegria. O mundo ocidental
pós-segunda grande guerra, impulsionado pela propaganda intensiva imposta pelos
interesses políticos dos EUA, nos parecia cheio de esperanças num futuro
melhor; acreditava-se com sincero otimismo nas notícias alvissareiras
divulgadas nos meios de comunicação, ainda que muitas delas fossem politicamente
e ideologicamente manipuladas.
Uma
coisa, porém, nos assustava por aqui: a fúria da Natureza. Ouvindo sempre
histórias sobre as enchentes de 1914 e de 1942, ficávamos apreensivos, quando
as chuvas de fim de ano ameaçavam desabar sobre a cidade. Eu, particularmente,
me considero apavorado no que se refere às ventanias, pois, aos cinco ou seis
anos de idade, numa madrugada tempestuosa, ouvi o estrondo terrível da cozinha
da nossa velha casa vindo abaixo, sob o impacto de uma ventania descomunal. Num
único quarto forrado, a família inteira amedrontada mantinha-se ali, proibida
por meu pai de sair para qualquer outra parte da casa; e quem era doido? O
vento uivava no telhado, e, de vez em quando, cacos de telhas caíam sobre o
forro, provocando mais medo em todos nós. Aquilo durou uma eternidade, ninguém
dormiu, até que os primeiros raios de um tímido sol entraram pelas vidraças, e
a tormenta transformou-se numa chuvinha mansa.
Pela
manhã, ao abrir a porta da sala que dava acesso à cozinha, foi uma experiência
incrível avistar todo o quintal da casa através de onde antes havia uma parede.
Além disso, era possível ver toda a paisagem à distância, onde se viam os
morros e o Rio das Contas cheio da água barrenta da chuva, onde navegavam
troncos de árvores e canoas. Só um pouco mais tarde, fui prestar atenção aos
escombros da cozinha: cacos de telhas, pedaços das paredes e da madeira do
telhado, a fiação elétrica pendurada, armários, pia, pratos e panelas
destroçados, enquanto minha mãe, coitada, não sabia o que fazer desesperada com
aquilo tudo.
Em que
pesem as conseqüências de tais eventos, criança sempre busca a novidade de cada
coisa. Sem cozinha, obviamente sem fogão, vi pela primeira vez o serviço de
marmitas. Se bem que eram marmitas vindas da casa de minha avó, mas, para mim
foi muito interessante ver aquelas vasilhas empilhadas de onde saia a comida
quentinha e cheirosa. O café passou a ser preparado num fogareiro a querosene,
mais uma novidade para nós, garotos. Soubemos, mais tarde, que muitos outros telhados,
paredes e muros da cidade haviam desabado naquela inesquecível madrugada.
Hoje, quando vejo nos noticiários de TV, o horror dos deslizamentos de encostas que matam famílias inteiras, enchentes e outras calamidades, quando verbas para construir sistemas preventivos são criminosamente desviadas para os bolsos dos insensíveis bandidos engravatados, o que frequentemente acontece no país; lembro-me de que a queda da nossa cozinha, nada tinha a ver com tais despropósitos administrativos homicidas, que deveriam ser julgados como crimes dolosos. Foi somente “coisa de casa velha”, iria acontecer, mas felizmente, nada de mais grave aconteceu. Atualmente, umas das calamidades que mais me assustam são as calamidades institucionais: o fanatismo politico e religioso, a inversão de valores, a corrupção galopante, os julgamentos seletivos e corporativistas, a intolerância cultural, social e religiosa e o crescimento das ideologias radicais e antagônicas, no mundo inteiro.
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