J. B. Pessoa
Capítulo - 53 do livro " Guris e Gibis".
A temperatura caiu significativamente
no mês de julho. O frio voltou, e desta vez com mais intensidade do que no
começo de junho. Havia bastantes anos, que no sudoeste baiano não se via
tamanha friagem. Nos botequins e bares da cidade, os caixeiros viajantes,
tomando suas doses de uísque e conhaque, afirmavam que, nas cidades mais altas
do Planalto Baiano, como Poções, Periperi e Vitória da Conquista, os
termômetros aproximavam-se do zero grau. Exagero para uns e realidade para
outros. Certo cavalheiro chegou a declarar que pernoitou num lugarejo, próximo
a Brotas de Macaúbas e, pela madrugada, ele presenciou flocos de neve caindo,
sem, entretanto, formar nenhuma camada, pois derreteu logo ao nascer do sol. Do
outro lado do Vale do Rio das Contas, os habitantes de Jaguaquara, Itiruçu,
Três Morros e Maracás penavam com o mais rigoroso frio dos últimos tempos.
Apesar de estar situada numa depressão relativa, Jequié também faz parte do
planalto baiano e certamente sofre, quando uma onda de frio atinge a região. O
frio voltou e com ele a neblina gelada que caía constantemente, obrigando os
jequieenses a trajes mais pesados e o uso constante de capas e guarda-chuvas.
Aquela era a última semana das férias
escolares. Johnny contava os dias para a volta das aulas, pois necessitava
rever seus colegas e voltar a sua atividade predileta, que era os estudos. A
saudade que ele sentia de Berenice doía-lhe na alma. Várias vezes, no decorrer
do mês, o garoto passeava pelo jardim da Praça Ruy Barbosa na esperança de
vê-la, pelo menos, de longe. Depois das festas juninas a cidade cai num marasmo
total, sem nenhuma festividade que valia a pena. Houve apenas o Dois de Julho,
com comemoração na câmera dos vereadores, onde distintos cidadãos faziam
apologias aos heróis da Independência Baiana e, com seus discursos rococós,
apresentavam-se ou indicavam como candidatos ao legislativo municipal, algum
correligionário importante.
A tarde chegava ao seu final, com os
garotos da Siqueira Campos reunidos embaixo da mangueira, que os protegia da
neblina fria. Estavam satisfeitos em saber, que o inimigo comum nunca mais iria
incomodar. O velho estava preso e desmoralizado, perante todos os moradores
daquele modesto subúrbio. Johnny olhava com tristeza para as cinzas molhadas do
que restou do clubinho. Sabia que em breve, os garotos seriam agraciados com
outra construção; Porém, aquele clube foi um projeto seu, e todo mundo tinha
adorado a idéia de uma cabana de pioneiros. O tempo estava nublado e o
anoitecer chegava cedo demais, antes dos alto-falantes da Voz da Cidade soarem
à hora do ângelus. Era sábado e, naquela noite, a garotada pretendia ir a um
comício no Bairro do Mandacaru, onde o prefeito da cidade apresentaria o seu
candidato à sucessão municipal, acompanhados pelos pretendentes a vereadores.
Tõe Porcino tentava animar a turma, que parecia amorfa, diante da perspectiva
de singular diversão. Depois de ouvir Porcino falar sobre cidadania,
deveres e direito, Mipai resolveu
achincalhar o garoto, cantando uma modinha de carnaval:
- O cordão dos puxa sacos, cada vez
aumenta mais...
Os garotos começaram a rir diante da
insinuação de Mipai, que arremedava a postura do gibi em defesa do seu
candidato. Nêgo, após ouvir Porcino protegendo os políticos, perguntou:
- O que você ganha com isso, defendendo
esses sujeitos?
- Já ganhamos!
- Ganhamos?!... O que?!
Porcino levantou-se da pedra onde
estava sentado e, olhando, seriamente, para os garotos, proferiu com
indignação:
- O mal de muita gente é a ingratidão!
- Que ingratidão? Do que você está
falando seu sujeito? - Perguntou Nêgo, atônito, diante da colocação do garoto.
- O jogo de camisas do time Lagoa
Dourada foi doado pelo Doutor Ademar Nunes Viera; as camisas do time do Bariri
foram dadas pelo vereador Emerson Pinto de Araújo, e o professor Jason Wilson
Amorim, com Doutor Djalma Ribeiro, candidatos a vereador, que são amigos do Seu
Zé Sampaio, vão ajudar construir o novo clube de vocês!
É devera! – Disse Géo, relembrando a
conversa que teve com o guarda Martins. Mipai deu de ombros, não dando a menor
importância em tudo aquilo. Pé de Pata e Géo concordavam com Porcino. Mipai
virou-se para os meninos e disse a seguir:
- Na época de eleição muitos políticos
aparecem com muitas promessas e depois de eleitos, somem! É o que diz o povo.
Géo gostava de política e eleições.
Achava divertida a postura dos que pleiteavam algum cargo político;
principalmente, os candidatos a vereador dos pequenos distritos. Admitindo o
seu gosto, disse para os amigos:
- Eu gosto de assistir os comícios,
porque acho divertidos os discursos de alguns.
- Principalmente dos metidos a cultos!
– Disse Johnny sorrindo.
Mipai elevou os braços para o ar, numa
gostosa espreguiçada; deu um longo bocejo e depois se despediu dos garotos,
dizendo:
- Estou indo para casa. Não contem
comigo para essa aventura, numa terra de índios!
Nêgo, concordando com o amigo, disse a
seguir:
- Eu também estou indo embora, pois o
frio está de lascar. Amanhã vejo vocês na matinê.
Porcino não conseguiu o apoio de todos
para ir prestigiar o seu candidato. Cobrou lealdade deles, pois o time da
Siqueira Campos foi beneficiado pelos políticos. Johnny ficou calado por uns
instantes e, depois de pensar no assunto, deu a sua opinião:
- Eu acho que devemos ir a esse
comício. O Seu Zé Sampaio e Seu Túlio Preto apoiam os candidatos, como também,
Seu Martins e Seu Belmiro. Além
disso, vocês não podem esquecer que,
foram eles que nos livraram do Seu Manequito!
- É devera! – Disse Géo, muito sério.
- Também concordo! – Assegurou Pé de
Pata.
Mais animado diante da decisão dos
amigos, Porcino marcou para se encontrar com a turma às dezenove horas, ali
mesmo, embaixo da mangueira. Depois disso, todos se despediram e foram para
suas casas.
Logo após o final da “Voz do Brasil”,
principal jornal radiofônico do País, Antonio Porcino dos Santos apareceu na
casa de Johnny e, com o seu largo sorriso, cobrou do garoto a sua promessa.
Tendo a permissão do pai, Johnny seguiu com os amigos, para uma aventura
diferente, do outro lado do rio, na periferia sul da cidade. A noite estava
sombria e fria, naquele inverno irregular, o qual castigava os moradores menos
favorecidos pela sorte. A lua, na fase decrescente, parecia incomodada com
aquela friagem, se escondendo entre as nuvens escuras, que tomavam conta de
toda a abóboda celeste. As pessoas que transitavam pelas adjacências usavam
lanternas a pilhas, para iluminarem os seus passos, pois os postes com
iluminação elétrica terminavam, sempre, na metade das ruas, um pouco distante
da área final dos subúrbios. Além disso, toda iluminação pública era
interrompida após a meia noite. Porcino liderava os garotos, contagiando os
amigos com a sua singular animação. Johnny gostava de participar daquelas
saudáveis aventuras, que eram valoradas pelas cândidas fantasias de almas
impolutas. A turma desceu pela Rua Santa Luzia, contornando a cidade pela Rua
Gameleira, evitando, assim, o centro, por aquele atalho. O negrinho conduzia
sua turma, que conversava alegremente pelo caminho, o qual era iluminado por
uma lâmpada a pilhas. Ao atravessar a ponte Teodoro Sampaio, um vento gelado
uivou sinistramente, dando asas à imaginação daquelas mentes juvenis. Géo
segurou o braço de Johnny, perguntando com medo:
- Será que não tem nenhum lobisomem
solto numa noite dessas?
- Provavelmente não! – Respondeu o garoto.
- Ué, como você sabe?
- Porque lobisomens só aparecem em
noite de lua cheia, seu otário! – Respondeu Pé de Pata numa sonora gargalhada,
achincalhando o amigo.
Johnny sorriu e resolveu entrar na
brincadeira, pois sabia do medo terrível ao sobrenatural, que afligiam os seus
amigos. Ele próprio tinha seus receios, mesmo sendo advertido pelo seu pai, que
tudo aquilo era fruto da imaginação popular. Ele virou para Géo e disse com uma
voz temerosa:
- Lobisomens gostam de tempo bom e lua
cheia; entretanto, os vampiros adoram uma noite tenebrosa como essa!
- Puxa a vida, vampiros?! – Inquiriu
Tõe Porcino amedrontado.
Pé de Pata contestou, querendo
disfarçar o medo que sentia:
- Deixa de onda rapaz, pois no Brasil
não existem vampiros.
Johnny fez uma pausa, e depois alisando
o queixo com ar pensativo, explanou para os amigos uma pequena farsa, na
intenção de zombar de suas crendices:
- Realmente, no Brasil não há vampiros!
Contudo, em noites sombrias e tempestivas como essa; quando os ventos vêm do
Polo Norte e passam pela Transilvânia, às vezes carregam alguns vampiros e
jogam por aqui. Eles se alimentam de sangue novo e vão embora.
- Rapaz, não diga umas coisas dessas,
não!... Pelo amor de Deus! – Clamou Géo, com o queixo batendo de frio e medo.
- Eu acho melhor a gente ir mais
depressa! – Alardeou Porcino apressando o passo. Quando Pé de Pata, motivado
pelo temor, começou a sentir dor de barriga, Johnny caiu na gargalhada,
deixando os amigos perplexos com a sua súbita hilaridade. Ainda sorrindo, virou
para os amigos e disse, mangando deles:
- Vocês parecem um bando de
tabaréus!... Vampiros, lobisomens, Caiporas, Mulas sem cabeça, etc. Nada disso
existe.
Pé de Pata olhou seriamente para Johnny
e, na dúvida, proferiu:
- Pode ser que não!... Mas pode ser que
sim!
Géo saiu na frente e começou a correr,
gritando para os amigos:
- Sendo assim, sebo nas canelas
molecada!
Subitamente, sem qualquer aviso, os
meninos saíram em disparada, deixando Johnny sozinho, espantado com aquela
atitude. Tendo sido deixado para trás, o garoto começou a sentir medo e provou
do próprio veneno que criou. O vento forte começou a sibilar novamente, e com
intensidade superior do que antes, deixando o garoto mais apavorado ainda.
Johnny respirou forte e seguiu solitário pela estrada deserta. A parca
iluminação de uma lua, na sua fase decrescente, não dava para iluminar a
estrada, principalmente em um tempo de nuvens carregadas. Johnny tirou do bolso
sua pequena lanterna e começou a iluminar o seu caminho. Depois da ponte, o
garoto tinha que percorrer um longo trecho da rodovia, sem qualquer residência
ou casa comercial por perto. Ao lado direito, protegido por uma cerca de arame
farpado, ficava uma propriedade da prefeitura e ao lado esquerdo, um loteamento
residencial, pertencente a uma imobiliária da cidade. Depois de uma boa
caminhada, o garoto avistou as luzes do Mandacaru e ouviu o som de uma banda
filarmônica. Johnny se sentiu aliviado e satisfeito por não haver corrido.
Tinha consciência de que ele não era um garoto corajoso, mas seu orgulho era
maior do qualquer medo que pudesse sentir. O seu pai havia lhe ensinado a
dominar o medo, dizendo que, todo homem verdadeiramente valente sabia sentir
medo. Antes de adentrar naquele subúrbio, viu Tõe Porcino, sentado na beira do
caminho, à sua espera. O negrinho veio ao seu encontro e lhe deu um forte
abraço, dizendo:
- Puxa a vida meu camarada!... Fiquei
preocupado, quando vi que você não acompanhou a gente na corrida!
O garoto respondeu, sorrindo:
- Correr pra que! Os vampiros corriam
atrás de vocês e não de mim!
Nesse momento apareceram Géo e Pé de
Pata. Admirado diante da tranquilidade do garoto, Géo perguntou:
- Você não ficou com medo de vir
sozinho?
- Sim, mas não de seres do além!... Eu
tenho medo de boi brabo, cachorro doido, de algum ladrão ou gente ruim e de má
intenção! – Respondeu o garoto, de maneira resoluta e convicta de sua visão
racional.
Porcino concordou com o amigo, dizendo:
- Johnny tem razão! Há tanta gente ruim
no mundo, que não precisamos temer coisas de filmes de terror.
Pé de Pata concordou com Porcino e
ficou aliviado ao ver Johnny tranquilo e bem disposto. Abraçou o garoto de lado
e o conduziu para o cerne da manifestação política, sendo acompanhado por Géo e
Porcino, que estavam entusiasmados com o evento. Apesar do frio e do sereno que
caía constantemente, havia muita gente de várias partes da cidade, prestigiando
os seus candidatos. Um caminhão Chevrolet serviu de palanque e a banda
filarmônica Amantes da Lira se encarregou de animar a multidão, com seus choros
e dobrados, dando uma conotação de festa ao acontecimento.
Os garotos ficaram na frente do
palanque, juntos com outras pessoas, aplaudindo entusiasticamente todos os
políticos daquele comício. Após seus discursos, o professor Jason Wilson e o
Doutor Djalma Ribeiro, tiveram uma acolhida especial dos meninos. O público se
divertia com falação dos incultos e admirava a oratória rococó dos bacharéis,
como também, os pronunciamentos notáveis do prefeito Antonio Lomanto Junior e
do seu candidato Ademar Nunes Vieira. O tom de comédia ficou por conta de um
eleitor, que arrancou o microfone de um candidato a vereador e fez a acusação:
- “Ô cumpadi Zezin!... Ocê quer ser
muito bão, mas comprou na minha mão um curió, e até hoje, não me pagou!” –
Depois virou para a multidão e perguntou:
-“Saiu aí, povo?!”
O comício durou cerca de duas horas.
Quando se ouviu, ao longe, o relógio da igreja matiz anunciar as horas, com dez
badaladas graves e duas agudas, o prefeito Lomanto Junior encerrou aquela
reunião política, fazendo um relatório de suas obras no município. O evento foi
encerrado com muita música, fogos de artifícios e saraivadas de foguetes. Nesse
momento, a neblina gelada que tinha se dissipado, voltou novamente e, dessa
vez, com mais intensidade. Os garotos estavam se preparando para a longa viagem
de volta, quando Géo virou-se para a turma e disse vibrando de alegria:
- Não precisamos ir a pé. Aquele
caminhão é do Seu Otoniel Vieira, que mora na Rua Santa Luzia. Vamos pegar
carona com ele, turma!
Os garotos saíram correndo e pularam em
cima da carroceria do caminhão, que estava abarrotada de indivíduos, muitos dos
quais bêbados, fazendo a maior algazarra, bradando com energia, o nome de seus
candidatos. Géo ficou contente com a inesperada condução, pois se sentiu aliviado,
por não ter de andar, outra vez, pela estrada deserta. Depois de passar pela
ponte, o
caminhão virou à direita entrando na
via, que dava acesso ao bairro do Jequiezinho. Percebendo o desvio, Géo
perguntou a um sujeito do seu lado:
- Ué!... Esse caminhão não vai para a
Santa Luzia?!
Um garoto, reconhecendo os meninos,
gritou para os outros:
- Veja turma!... Olha quem estão
aqui!... Índios do Joaquim Romão!
Nesse momento, alguém pediu ao
motorista para parar e, antes que isso acontecesse, os meninos receberam muitas
pancadas e foram atirados para fora do carro, com caminhão ainda em movimento,
rolando pela estrada escura àquela hora da noite. Os garotos tiveram a sorte de
terem a queda amortecida, ao cair em um monte de areia, perto de uma construção.
Mesmo assim, ficaram um pouco machucados com aquela brutalidade. Johnny,
chocado, diante de tamanha selvageria, perguntou assombrado:
- Quem é essa gente?!... Porque fizeram
isso conosco?
- São os índios do Jequiezinho que têm
raiva da gente! – Respondeu Géo, numa boa gargalhada. Pé de Pata, que teve o
seu blusão rasgado, disse zangado:
- E o sacana ainda ri das porradas que
tomou...
- Logo que subi no caminhão, eu notei
que os caras eram do Jequiezinho. Fiquei quieto para não dar na pinta! –
Assegurou Tõe Porcino para os amigos.
Pé de Pata olhou para Géo e disse com
raiva:
-E você foi logo abrindo o bico! Não
podia ficar calado?!... Vai ser burro assim na casa do caralho!
- Burro é você seu sacana! – Bradou Géo
zangado.
Vendo os dois amigos se desentendendo,
Johnny tratou logo de apartá-los, dizendo:
- Ninguém teve culpa de nada!... O que
deu para um, deu para todos.
Os garotos se limparam e verificaram
que não houve nenhum dano sério em seus corpos, a não serem alguns arranhões e
raladuras nos braços e pernas. Tõe Porcino explicou para Johnny que, o
antagonismo entre alguns moradores daquele bairro, com o resto da cidade vinha
de muito longe. Desde o tempo da grande enchente em 1914, que destruiu dois
terços da cidade. Após a catástrofe, Jequié, que havia nascido na confluência
do Rio Jequié com o Rio das Contas, renasceu nas partes mais altas, com
planejamento. Motivados por interesses econômicos, Alguns cidadãos preteriram
entre os dois lados, gerando adversidades, nos últimos quarenta anos.
- É por isso que eles querem se separar
e formar outro município! – Concluiu Porcino.
Os garotos seguiram para suas casas, passando pelo centro da cidade, onde havia mais movimento. Chegando ao largo do Maringá, Tõe Porcino despediu-se dos amigos e desceu a Rua Rio de Contas, que dava acesso ao alto da Lagoa Dourada, onde morava. Johnny, Géo e Pé de Pata seguiram pela longa Siqueira Campos, todos rindo, ao relembrar daquela aventura, naquela gélida noite de inverno.
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