Capítulo - 02 do livro “Guris e Gibis”.
O trem
seguia vagarosamente pela estrada em declive, soltando grossas baforadas de
fumaças, deixando atrás de si as veredas, ainda molhadas, pela fina e escassa
chuva da tarde. A luz tênue do ocaso penetrava pelos vagões, salpicando seus
raios dourados nos rostos adormecidos dos passageiros, que cochilavam
serenamente em suas poltronas. O sibilar da locomotiva acordou, subitamente, um
garoto que havia adormecido, lendo uma revista em quadrinhos. A maioria dos
viajantes despertou naquele momento, quando o condutor anunciou que a próxima
parada seria breve. Luis Augusto apanhou a revista que havia caído de suas mãos
e voltou para seus pais, que estavam acomodados numa poltrona atrás da sua. Seu
pai acendeu o cachimbo e o aroma agradável do fumo inglês penetrou em suas
narinas, deixando-o relaxado, no momento em que emitia um profundo suspiro. Sua
mãe procurou saber como ele se sentia, compôs o seu cabelo e perguntou se ele
queria merendar. O garoto não quis comer nada, alegando estar sem fome. Pegou a
sua revista e foi ler a história em quadrinhos, recomeçando na pagina de onde
havia adormecido. Não conseguia se concentrar na leitura, pois estava chateado
com a mudança da família para o interior. Naquele momento tinha deixado a “civilização”
em sua encantadora Salvador, a “Cidade Presépio” e estava viajando para ir
morar num lugar, onde provavelmente, segundo a discriminação de sua mãe, só
existiam tabaréus. Ela também estava aborrecida por ser forçada a se afastar do
convívio das amigas. Doma Amélia Gonçalves da Cunha Viana estava acompanhando
seu marido, o Sr. Gustavo Pereira Viana, que fora nomeado gerente do Banco da
Lavoura de Minas Gerais, na agência de Jequié, onde a família iria residir, a
partir do momento em que ele tomasse posse do seu novo cargo.
O trem
apitou novamente quando o cair da tarde havia chegado ao fim. O Sr. Gustavo
apagou o seu cachimbo e retirou as cinzas, batendo-o levemente na janela,
jogando o resto de fumo para fora do vagão. Lá fora a escuridão começava a
tomar conta da paisagem, enquanto a lua nascia esplendorosa por entre as
montanhas. Dona Amélia recostou a cabeça no ombro do marido para melhor
contemplar aquela maravilhosa cena. Nesse momento o condutor apareceu e
anunciou que dentro de dez minutos o trem chegaria à estação.
Era
noite fechada quando a locomotiva chegou ao seu destino. O atraso de praxe
deixou aborrecidos os passageiros que ainda não estavam acostumados com a
situação. A estação estava repleta de pessoas, ávidas de novidades, que naquele
momento esperavam parentes ou amigos vindos da capital. Carregadores abordavam
os passageiros, a todo o momento, oferecendo seus serviços e era grande o
número de vendedores ambulantes, que naquela hora anunciavam os seus produtos a
viva voz. Crianças e adolescentes transitavam por toda a estação, oferecendo
aos transeuntes, pipocas, rolete de cana, bolinhos de tapioca, queimados de
mel, mingaus, cocadas e pirulitos. Um garoto de cor parda, muito esquisito,
chamou a atenção de Luis Augusto. Tinha uma barriga
saliente,
olhar sonolento e jeito preguiçoso de ser. Bocejava a todo o momento e depois
gritava, sem nenhum ânimo, oferecendo o seu produto:
- Olha
o mingau baiano!... Quem vai querer! Quem vai querer!
O
garoto às vezes bocejava e tentava gritar ao mesmo tempo, produzindo um som
totalmente incompreensível. O Sr. Gustavo e Dona Amélia foram conferir suas
bagagens, deixando Luis junto a um carrinho de mão, que vendia roletes de cana.
Luis comprou uma penca e começou a chupar os roletes, olhando com curiosidade
tudo que estava ao seu redor. Seus olhos foram parar no garoto de ar sonolento,
que nesse momento se aproximou e o abordou, perguntando:
-
Quanto quer pela revista?
- Não
está a venda. – Respondeu, secamente, Luis. O garoto, não se conformando com a
recusa, olhou bem para a revista e disse:
- Dou
dois copos de mingau por ela!... Quer?
Luis,
aborrecido com a insistência do garoto, perguntou:
-
Quanto custa um copo de mingau?
-
Quinhentos reis meio copo e dez tões o copo inteiro.
Luis
olhou para o garoto, sem entender se ele era um espertalhão ou um simples débil
mental e explicou pacientemente:
- Esta
revista é um Almanaque do Cavaleiro Negro, novinho em folha, que custou treze
cruzeiros ou, como dizem vocês, treze mil reis! E você me oferece dois míseros
cruzeiros? Isto é, supondo que dez tões sejam um cruzeiro, não? Ainda em
mingau? Você pensa que sou um necessitado? O que é que há rapaz?
O
garoto olhou com desdém para Luis e deu de ombros. Resmungou alguma coisa e foi
tratar de vender seu produto a outros passageiros interessados no seu mingau. A
seguir Luis foi ao encontro de seus pais, que no momento conversavam com um
carregador a procura de informações sobre o paradeiro de uma pessoa, que
deveria estar ali para recebê-los. Logo depois apareceu um jovem que se
apresentou como funcionário do banco e depois de uma curta conversa, acomodou a
família num carro de praça e a conduziu ao hotel, onde iria pernoitar.
O
carro saiu da estação ferroviária, que situava próxima ao centro e entrou na
artéria principal da cidade, uma comprida avenida denominada de Rio Branco.
Logo, após parou em frente de um prédio muito bonito, onde funcionava uma
escola primaria por nome de Grupo Escolar Castro Alves, cuja arquitetura
encantou Dona Amélia. Ela gostou da fachada da Igreja Matriz, a qual viu de
longe e achou o cinema colossal. Procurou saber a respeito de um palacete
branco, em estilo neoclássico, e ficou sabendo que era a residência do prefeito
da cidade.
Dona
Amélia ficou animada e seu entusiasmo foi crescendo na medida em que ia
conhecendo a cidade. O rapaz pediu ao motorista que desse uma volta pela
igreja, mostrando todo esplendor de uma arquitetura neo gótica. A igreja estava
aberta naquele momento, pois nessa noite ia ser rezada uma novena.
Havia
muita gente circulando pelas ruas e praças do centro, pois era noite da festa
dos Santos Reis. O povo se preparava para ver os inúmeros ternos de reisados,
bumba-meu-boi e os cantadores de reis, que saíam todos os anos, do dia 24 de
dezembro até o dia de reis em seis de janeiro. Luis Augusto observava tudo
aquilo, encantado com a dinâmica da cidade e compartilhava do recente
entusiasmo de sua mãe. Verificou que na porta do majestoso cinema estava cheio
de pessoas e havia muita gente nas filas das bilheterias. Quando quis ir até a
calçada onde estava o cartaz, seu pai o chamou para seguirem ao hotel. Estavam
todos cansados da viagem.
Entraram
novamente no carro que seguiu em direção à praça principal da cidade, a qual
possuía um esplendoroso jardim. A belíssima Praça Ruy Barbosa estava
magnificamente iluminada e decorada com motivos natalinos, deixando os
habitantes da cidade maravilhados e orgulhosos com o que via. Estacionando o
carro na porta do Rex Hotel, o rapaz conduziu a família até a recepção, onde as
reservas foram confirmadas. Deixando os hóspedes instalados, ele se despediu de
todos e foi embora. Depois da ceia a família foi até a sala de estar do hotel
para ouvir um pouco de música. O rádio estava sintonizado numa emissora da
capital baiana, que naquele momento transmitia uma linda canção na voz de Dalva
de Oliveira, chamada “Sertão de Jequié”. O Sr. Gustavo acendeu o seu cachimbo e
comentou com sua família a respeito da canção que homenageava a cidade, onde
eles iriam viver.
Luis
Augusto pediu permissão aos pais para dar um passeio pelo jardim e ir até a
igreja. Sua mãe lhe recomendou para que não demorasse, pois estava muito
cansada e queria dormir cedo. O garoto percorreu o jardim e notou que havia
vários casais de namorados passeando naquele momento. As pessoas caminhavam num
vai-e-vem do jardim à igreja e, às vezes, pela Avenida Rio Branco, voltando em
seguida para a praça ou a igreja. Luis foi até ao parque infantil, que em dias
de festas funcionava até às vinte horas e foi barrado pelo vigia, que só permitia
a entrada de menores de dez anos. Logo depois foi até a pista de patins que
estava cheia de garotos patinando e outros brigando por um par deles. As
meninas que queriam patinar desistiam logo da idéia e seguiam em direção à
igreja. O menino entrou num bar bastante movimentado chamado de “Bar Joly”, que
ficava situado em um edifício muito bonito, de arquitetura eclética, chamado de
“Edifício Vicente Grillo”. Comprou um sorvete e seguiu saboreando-o em direção
a Igreja Matriz, para ver a novena, que naquele momento se encontrava próxima
ao seu final. A igreja estava repleta de pessoas de todas as idades, com a
maioria composta de moças e rapazes que se flertavam discretamente. O garoto
verificou que as pessoas que estavam naquele ambiente eram bastante elegantes.
O forte cheiro de incenso penetrou em suas narinas deixando-o enlevado,
momentaneamente. De repente o som de um órgão magistralmente executado, entoou
um cântico religioso, acompanhado por um coral de meninas, vestidas de branco,
deixando o garoto deslumbrado, que procurou se aproximar das encantadoras
garotas. Seu olhar parou na solista do coral. Era a menina mais bonita que ele
tinha visto em toda a sua vida. Luis
ficou
por algum tempo absorto diante de tanta beleza e voz maviosa. Na hora em que o
padre executava as preces finais, o menino tentou acercar-se do coral para ver
mais de perto tão encantadora visão. Quando pretendia estabelecer alguma
comunicação com as meninas do coral, foi esbarrado, desastrosamente, pelas
pessoas que procuravam deixar a igreja naquela ocasião. A seguir, depois de
instante de perplexidade, notou que as meninas estavam saindo pela porta da
sacristia. O garoto deu uma volta pela lateral, mas não conseguiu encontrá-las,
pois as meninas entraram em um carro, estacionado em frente à casa paroquial,
que as conduziu para suas residências.
Luis
Augusto desceu as escadarias da igreja, acompanhando as pessoas que tinham ido
rezar a novena. Estava um pouco aborrecido pelo fato de não ter tido a
oportunidade de conhecer a bela menina. “Afinal”, pensou ele: “Esta é uma
cidade pequena e logo a encontrarei!” Assim pensando, caminhou em direção à Rua
Dois de Julho que terminava na Praça Ruy Barbosa, onde ficava o hotel. Antes
disso, parou na porta do cinema e, ao verificar a programação da semana, ficou
bastante satisfeito. Naquela hora viu um grupo de moças que passou diante do
palacete branco conhecido como “Casa de Lomanto” e o resultado disso foram
dezenas de assovios marotos, da rapaziada que fazia do local seu ponto de
encontro. O garoto achou aquilo muito engraçado e seguiu em direção ao hotel,
no momento em que o relógio da matriz badalava as vinte e uma horas e trinta
minutos. Estava bastante cansado e, mesmo assim, acompanhou por algum tempo, um
grupo de cantadores de reis. Logo depois foi para o hotel, onde estava sendo
aguardado pelos seus pais, que o esperavam pacientemente.
Luis
Augusto pediu desculpas pelo atraso e após as bênçãos de seus pais entrou no
seu quarto para dormir. Foi até o banheiro, escovou os dentes e vestiu o seu
pijama, ficando algum tempo na janela de seu quarto, observando a cidade que
aos poucos ia ficando vazia com o passar das horas. Notou que as luzes que
ressaltavam as linhas arquitetônicas da igreja tinham sido apagadas e, nesse
momento a sessão de cinema tinha acabado, pois o numero de pessoas que havia
saído do prédio era enorme. Depois disso, fez as suas orações e deitou-se na
cama para dormir, pensando na linda menina que cantava no coro juvenil da
igreja.
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