Eu já havia concluído, está
no prelo, a redação de um romance histórico tratando de um tema importante,
porém pouco estudado e conhecido – os cangaceiros do cacau, ou mais
precisamente: Os clavinoteiros de
Belmonte – quando, numa viagem a Salvador, perambulando numa livraria – êta
coisa gostosa... – encontrei um livro sobre tema que sempre me instigou, já fiz
várias leituras, mas valia mais aquela: Apagando
o Lampião do historiador Frederico Pernambuco de Mello. Comecei a ler e me
embeveci com a qualidade do texto, seja em termos literários, seja pela
rigorosa pesquisa histórica, revelando importantes pormenores até então
inéditos da vida e morte do “rei do cangaço”.
De Salvador fui para o Rio
de Janeiro, onde tinha o lançamento de meu último romance O mercador de livros na Livraria da Travessa-Botafogo. Lá,
conversando sobre o tema do cangaço com o meu editor, depois dele remexer em
seu mundo de livros, me ofertou o Bandidos,
de Eric Hobsbawm. Li em seguida, um após o outro, enveredando pelo tema do
banditismo social.
Já tinha visto referências ao termo “banditismo social” ou “bandido social”. Mas não conhecia o conceito por quem o formulou originalmente. É natural que o historiador marxista inglês tenha começado pela lenda de seu país, símbolo do “ladrão nobre”, o que roubava dos ricos para dar aos pobres: Robin Hood. Mas sua pesquisa abrange todos os continentes, desde a Ásia até nossa América que percorre de sul a norte, retratando lendárias figuras como Lampião, Pancho Villa, Jesse James e muitas outras. Mas antes de me aprofundar no conceito, devo revelar: ao longo da leitura que ia fazendo, constatava que mesmo sem saber, havia criado a lenda de um “bandido social”. A lenda de Argemiro, o clavinoteiro que imaginei ao tempo em que conto a história dos clavinoteiros de Belmonte, cabe como a mão na luva no conceito de Hobsbawm. E não se diga que o conceito de banditismo social decorre apenas e tão somente da história, da pesquisa histórica. Tem uma grande parte assentada em lendas e mitos sobre bandidos, como o próprio Robin Hood, cuja existência real até hoje não foi comprovada, combinada com muitas outras lendas e mitos, as quais, juntamente com os exemplos reais, permitiram a formulação do conceito. Em alguns países como na Alemanha, chegou a ser criado um verdadeiro gênero literário: “romances de bandidos”. E sem imaginar, dei uma contribuição ao gênero literário e à figura do banditismo social no Brasil.
O CONCEITO DE HOBSBAWM
O
conceito desenvolvido por Hobsbawm parte de uma realidade precisa: a economia
rural dos lavradores e pastores, anteriores ao período de transição ao
capitalismo. Mas de início, é necessário conhecer a própria origem da expressão
bandido: “... a palavra bandido
provém do italiano bandito que
significa um homem ‘banido’, ‘posto fora da lei’ seja por que razão for, ainda
que não surpreenda que os proscritos se transformassem facilmente em ladrões.”
(26).
Os camponeses pelas próprias características de sua atividade, são apegados à terra, possuem pouca liberdade e durante todo o período feudal foram dominado pelos senhores. Na verdade eram servos da gleba. Assim, quando por alguma razão algum camponês se rebelava e se tornava proscrito, adquiria liberdade, passava a ser homem livre, ia viver nas matas ou nas montanhas onde o Estado ou os senhores não o alcançavam, mas ainda assim, eram parte da sociedade camponesa e considerados por estes como seus heróis, seus defensores, seus paladinos.
Hobsbawm resume o conceito:
O
principal com relação aos bandidos sociais é que são proscritos rurais que o
senhor e o Estado encaram como criminosos, mas que continuam a fazer parte da
sociedade camponesa, que os considera heróis, campeões, vingadores, pessoas que
lutam por justiça, talvez até vistos como líderes da libertação e, sempre, como
homens a serem admirados, ajudados, apoiados. (36) E logo mais:
Visto por outro ângulo, o
banditismo social constitui um fenômeno universal, encontrado em todas as
sociedades baseadas na agricultura (inclusive nas economias pastoris) e
compostas principalmente de camponeses e trabalhadores sem terras, governados,
oprimidos e explorados por alguém: por senhores, cidades, governos, advogados
ou até mesmo bancos. É encontrado em uma ou outras das suas três formas
principais, cada uma das quais será discutida num capítulo próprio: o ladrão nobre, ou Robin Hood; o
combatente que encarna uma forma primitiva de resistência ou o grupo daqueles
que chamarei de haiducks, e,
possivelmente, também o vingador que semeia o terror. (39).
Hobsbawm chama a atenção,
que embora muitas vezes bandidos sociais se transformam e aderem a movimentos
revolucionários, eles não são, em si, revolucionários, mas reformadores. Eles
não lutam pela destruição do sistema de exploração, mas apenas pela manutenção
de seus limites éticos e tradicionais. Admitem o senhor, mas que o senhor
respeite os direitos camponeses tradicionais; admitem que os senhores se
apoderem das moças aldeãs, mas que sejam responsáveis pela manutenção e
educação de seus filhos. Não são poucos os que aderem aos movimento
revolucionários. Na China, grande número de bandoleiros aderem ao exército
revolucionário popular de Mao Tsê Tung; no México, o bandoleiro Pancho Vila se
torna um general de revolução recrutado por Madero; na Indonésia muitos
bandidos aderem ao nacionalismo revolucionário de Sukarno.
Sobre a origem dos bandidos
sociais Hobsbawm dedica um capítulo aos haiducks,
um tipo de bandido social do sudeste europeu, em especial dos Balcãs e de toda
a vasta região que vai da Grécia até a Ucrânia, que tudo faziam em busca da
liberdade individual. E até, “podiam, como em certas partes da Hungria
tornar-se combatentes a serviço de senhores rurais, em troca do reconhecimento
como homens livres.” (100).
Entre as causas, destaca a que levou o futuro general revolucionário mexicano: “Um Pancho Villa, que defende a honra de uma irmã violada, constitui a exceção em sociedades em que os senhores e seus asseclas fazem o que querem com as moças aldeãs.” (59)
O BANDITISMO SOCIAL NO BRASIL
O principal exemplo de
bandido social no Brasil é Lampião. Hobsbawm o cita ao lado de outro: “Dos dois
bandidos mais célebres, Silvino ganhou fama de “ladrão nobre” em vida, e
jornalistas e outros reforçaram esse mito para contrastá-lo com a reputação,
grande, mas não benévola, de Lampião, seu sucessor, como ‘rei do cangaço’.”
(191) A reputação de Lampião é muito discutida, os crimes que ele cometeu com
as próprias mãos, são inúmeros e os mais brutais. Mas qual a causa de Lampião
ter entrado no cangaço? Há ou não uma causa social?
É preciso primeiro entender
a época e suas leis: leis legais, dos parlamentos e tribunais, e leis
consuetudinárias, que os povos sempre aplicaram. O Estado brasileiro em fins do
império e início da república, maninha-se no litoral, tradição herdada dos
portugueses colonizadores. Os sertões se autogovernavam pelas leis dos mais
fortes, sendo a garrucha e a peixeira os instrumentos maiores a garantir a vida
e a propriedade das famílias. O desaforo não era tolerado e aquele que fosse
humilhado, tinha de vingar-se se era homem. E que houve com Virgulino Ferreira?
Desde jovem afeiçoou-se ao trabalho, sendo um bom profissional do couro. Sua
família vivia de uma pequena propriedade rural em Serra Talhada, Pernambuco.
Mas conflitos com a família Nogueira, mais poderosa, levou à expulsão dos
Ferreira que foram refugiar-se nas Alagoas.
Em Alagoas ele trabalhou
inclusive com o pioneiro da industrialização do Nordeste, Delmiro Gouveia (que
foi assassinado), e depois se fez tropeiro, n época em que o fenómeno do
cangaço era comum e mais aumentava quando das grandes secas que atingiam a
região, como a famosa de 1872-1878 e teve sua grande elevação com a de 1919;
com esta coincide pouco depois, em 1921, com a entrada de Lampião no cangaço:
em 18 de maio, teve seu pai, João Ferreira, assassinado gratuitamente pela
polícia de Alagoas. Que fazer? Que outra opção ele tinha? Era um homem ou um
rato? Juntou-se com seus irmãos ao bando do Sinhô Pereira, o qual mais tarde
vem a suceder como líder do bando com a aposentadoria deste. A mãe e irmão
menor são enviados para o Ceará, aos cuidados do Padim Ciço. Era quem Lampião
respeitava, tanto que nunca estendeu sua ação ao Ceará.
Não cabe aqui analisar as
atividades do bando de Lampião desde aquele início até o ano de 1938 quando ele
foi assassinado pela polícia alagoana na Gruta do Angico, em Sergipe. Foram
anos de muitas atrocidades, maldades, crimes; mas também de muito acerto de
contas com os tomadores de suas terras e os assassinos de seu pai, muita
justiça, muita ajuda aos que precisavam, além de alianças com coronéis e até
com o governador de Sergipe; e simbolizou o heroísmo sertanejo. O que cabe aqui
é analisar as causas de sua adesão ao cangaço e à formação de seu bando: foram
causas sociais, a defesa não só de seus bens (da família) mas também de sua
honra e de seu sangue! O fato de ter sido mais ou menos violento, aqui pouco
importa, pois usava os mesmos métodos da polícia que o perseguia. Era a lei do
mais forte, a lei do sertão! Bem dizia o famoso jornalista Bastos Tigre naquele
início do século XX:
“Para o Brasil, o banditismo e a seca são males necessários”. (In: Pernambuco de Mello, 14). O sertão do Nordeste vivia das duas “indústrias”: da seca e do banditismo, elas alimentavam os coronéis de armas, dinheiro e direito de manter seus exércitos de jagunços. E para estes, valem os versos de José Rodrigues de Carvalho (Cancioneiros do Norte, Fortaleza, 1902, Idem, 9):
Há quatro coisas
no mundo
Que alegra um
cabra-macho:
Dinheiro e moça
bonita,
Cavalo
estradeiro-baixo,
Clavinote e
cartucheira
Pra quem anda no cangaço.
O BANDITISMO SOCIAL NA REGIÃO DO CACAU
Não cheguei a pesquisar de
forma mais profunda o fenômeno do banditismo social na região cacaueira. Mas as
premissas são as mesmas do agreste nordestino: o coronelismo, suas disputas,
seus exércitos de jagunços, e a opressão sobre todos os mais fracos. Neste
sentido, o mais expressivo exemplos são os “caxixes” tão bem descritos na
literatura do cacau especialmente em Jorge Amado: o posseiro desbravava a mata,
ocupava uma pequena posse da terra devoluta, iniciava seu plantio de cacau, sua
burara. Então chegava o coronel com sua tropa, advogado do lado, acordos com
delegados e juízes, e tomava a terra após um rápido processo na justiça.
Durante todo o império, houve muita fuga de negros escravizados e a formação de
quilombos, além dos remanescentes indígenas sempre perseguidos e escorraçados.
Tudo isso formavam caldo de cultura favorável ao banditismo social. Portanto,
se aprofundarmos a pesquisa vamos encontrar muitos exemplos.
Um exemplo marcante que
devemos assinalar, é da família Cauaçu, pequenos comerciantes, fazendeiros e
pecuaristas que se transforma em bando de cangaço no sertão de Jequié, uma
região fronteiriça, onde se encontra a sul e sudeste a Mata Atlântica
cacaueira, com o norte e noroeste o agreste, típico do nosso seco Nordeste. O
bando Cauaçu, onde despontou a figura lendária de Anésia Cauaçu, a guerreira de
uma pontaria insuperável, cujo irmão José chefia o bando familiar, tem sua
origem numa vingança, fruto da luta entre os coronéis e chefes de jagunços do
sertão baiano, como nos informa o jornalista e escritor Wilson Midlej em Anésia Cauaçu. Lenda e História no sertão de
Jequié (214).
A entrada dos Cauaçus na
luta que se trava nos sertões dá-se devido ao assassinato a sangue frio (é
enforcado) de Augusto, um Cauaçu que recusa a alistar-se no bando de Zezinho
dos Laços, chefe jagunço ligado aos “rabudos” de Maracás, em luta conta os
“mocós”. Formado o bando familiar dos Cauaçus, Zezinho dos Laços é justiçado
numa tocaia e a luta entre os dois bandos, as duas numerosas famílias se
estende por anos na região de Jequié. Os Cauaçus são bem quistos,
principalmente pelos imigrantes italianos.
A história tem muitos
contadores. Um deles, bisneto de Zezinho dos Laços, o cronista, historiador e
cantor evangélico Charles Meira em Fazenda
Rochedo “A Tocaia”, procura desvendar detalhes da vida e morte de seu
bisavô. Outro que não pode deixar de ser referido ao tratar do assunto, é o
historiador Emerson Pinto de Araújo, em sua A
nova história de Jequié. O professor Emerson, de quem este articulista foi
aluno, é daqueles que entende o caráter social do banditismo:
O banditismo, termo
genérico que abanca vários tipos de criminalidade, é um fenômeno social sendo
objeto da Sociologia. Bandido ou bandoleiro é todo aquele que vide em bandos,
ataca em bandos, e não possui pouso fixo na maioria das vezes.... (263)
E nos conta muito das lutas
entre os bandos nos sertões de Jequié. Ora, os “rabudos” eram liderados pelo
influente coronel Marcionilio Antonio de Souza, que consegue da polícia baiana
o envio em 1916, de um contingente de 240 soldados, além dos oficiais, para
combater os Cauaçus. A polícia comete todo tipo de atrocidades, tornando extremamente
grave a situação na cidade e região, sucedendo-se as manifestações contra sua
presença, ao ponto duma reportagem no jornal A Tarde transmitir a mensagem da população jequieense: “Dr.
Governador: por favor, não se lembre mais de nós. Deixe-nos com os Cauaçus e
não mande mais polícia para cá”. (269).
O chefe do bando, José, foi baleado em 28 de julho de 1916, numa grande batalha onde o bando foi disperso. Morreu dias depois sem tratamento. Alguns retiram-se para a Chapada; dois irmãos, Olímpio e Edwiges, escapam para o sul querendo chegar a Ilhéus; Anésia e o marido, que buscam o mesmo destino, são presos, traídos por um amigo que os acoitou, e entregue para receber a recompensa. Os irmãos Olímpio e Edwiges, conseguem sobreviver na região cacaueira e depois adentram para as gerais mineiras.
O MEU BANDIDO SOCIAL
Os assim chamados de
clavinoteiros de Belmonte, não podem ser classificados como bandidos sociais.
Foram mais agentes do coronelismo imperante, grupos armados a seu serviços,
apoiando quase sempre o partido no poder: ora conservadores, ora liberais. Em
Belmonte, o antro principal dos clavinoteiros era o Distrito da Ilha Grande,
onde o próprio juiz de paz, o capitão José Alves Leão, o Zeca Petisco, era o
maior chefe clavinoteiro, com larga influência não só no vale do Jequitinhonha,
mas estendo-a ao vale do rio Pardo, à Comarca de Canavieiras e, ao sul à de
Porto Seguro. Ele contava com grande apoio e cobertura do Intendente de
Belmonte, o coronel Gomes de Oliveira. Assim, não chegaram a se constituir em
bandidos sociais: achacavam a todos, grandes e pequenos, querem a “coleta”, o
dinheiro determinado.
Mas sem o saber, sem o
conhecimento do conceito, eis-se criando a figura de um bandido social, como
bem diz Hobsbawm à, página 170 de seu citado livro: “Em certo sentido, ainda o
fazem hoje. A redescoberta dos bandidos sociais em nossa época é trabalho de
intelectuais – de escritores, roteiristas de cinema, e até de historiadores.”
No romance histórico, ao contar a história dos clavinoteiros de Belmonte
inspirado no conto de Machado de Assis Canção
dos Piratas, criei a figura de um bandido social, romanceando a lenda do
clavinoteiro Argemiro.
Argemiro era o capataz e chefe dos clavinoteiros do coronel descendente de italianos José Cipião da Silva Meneghetti, conhecido como Zé Capião, que procura restabelecer o velho hábito feudal do jus primae noctis, ou direito à primeira noite, o direito da pernada, descabaçando todas as mocinhas casadoiras, desde suas escravas, de início, até as servas da gleba sua e das vizinhas. Sua lei era a de que, “em meu terreiro quem canta de galo sou eu!” Até quando estupra a filha de seu clavinoteiro chefe, causando sua revolta e o assassinato do coronel que tem seus colhões cortados. Daí só resta a Argemiro formar um bando clavinoteiro que perambula pelas matas de cacau fazendo justiça, defendendo os alugados escravizados pelo armazém dos coronéis, e cobrando pequenas coletas para viver. Sua fama é cantada nas feiras pelo cego Brexicó:
Coroné Zé Capião,
comeu fumo no buxo.
Nunca mais canta de galo,
perdeu todo antigo luxo.
Saco ficou pendurado,
no alto do jacarandá.
Espetado no punhal,
o que deu o que falá.
Clavina agora que canta,
respeitando a moça bela,
que escolhe o seu home,
pra viver sempre com ela.
A lei da mata implantada
pelo bando de Argemiro predomina amplamente nas roças de cacau atacando os
alcaguetas, os coronéis e capatazes que assassinam trabalhadores, defendendo o
direito a melhores pagamentos aos alugados e a honra das donzelas. O governo,
em contrapartida, envia sucessivas volantes que na maioria das vezes cometem
mais violência contra o povo. Também aqui, na lenda do Argemiro, o povo das
roças prefere os clavinoteiros de Argemiro aos policiais da Bahia.
Mas enfim, me senti inserido
no conceito do banditismo social de Eric Hobsbawm. Quanto a’Os clavinoteiros de Belmonte, breve na
praça.
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