sábado, 6 de agosto de 2022

A ESTANTE E O RÁDIO

                                               Por Carlos Eden Meira


Aquilo era uma rotina. Chegava do trabalho as dezoito e trinta, jantava uma aborrecida sopa de verduras seguida de um café ousadamente forte e fervente, o qual insistia em ser bebido num pequeno quarto  onde havia  uma velha poltrona e uma antiga estante de madeira, caoticamente abarrotada de livros. Havia ali, algumas obras clássicas como “A Divina Comédia” de Dante Alighieri, “Macbeth” de William Shakespeare, uma biografia de Dostoievski encadernada em couro, com título em alto-relevo dourado; coleções de Machado de Assis e outros mestres da literatura nacional e estrangeira, tudo isto promiscuamente convivendo com livros e revistas medíocres, ou mesmo de péssima qualidade literária. Nada ali era arrumado pela ordem de estilos, autores, temas abordados, ou qualquer critério que orientasse possíveis leitores.
Tudo começou a mudar numa noite, após o jantar, quando antes de pegar algum livro na estante, ligou o rádio que tocava uma dessas aberrações, que insistem em chamar de música. Distraidamente, sem prestar atenção ao que o rádio tocava, folheava um volume qualquer quando notou na estante à sua frente, uma biografia de Ludwig Van Beethoven, cujo retrato na capa olhava para ele com uma expressão de ódio, como se fosse saltar da estante, apanhar o rádio e arrebentá-lo atirando-o ao chão, o que talvez, não fosse uma má idéia. Teve a impressão, (ou foi a certeza?) de que o retrato do grande compositor se mexia, dizendo-lhe alguns desaforos em alemão, idioma que  sempre lhe pareceu  o mais apropriado para dizer desaforos. Durante algum tempo, pensou até em fazer um curso de línguas, só para berrar alguns desaforos em alemão, quando alguém o aborrecesse.
Naquele momento, nem sequer lhe passou pela cabeça a idéia de mudar de estação ou desligar o coitado do rádio, que era obrigado a transmitir aquela enxurrada de lixo sonoro, materializando-se e derramando-se aos borbotões por todo o ambiente, subindo pelas paredes, penetrando em todas as frestas e aberturas. Quando no programa radiofônico, um pretensioso comentarista interferiu sem um mínimo senso crítico para fazer comentários, maltratando impiedosamente a linguagem, dois volumes na estante, um de Machado de Assis e outro de Eça de Queiroz estremeceram-se, e caíram ruidosamente da prateleira. Pareceu-lhe ter visto o vulto de um dicionário de Aurélio tentando suicidar-se, querendo pular da janela aberta do pequeno quarto. Numa das prateleiras, antigos discos de vinil, clássicos da música popular e erudita, agitaram-se nervosamente começando a voar por todos os lados, tentando desesperadamente atingir o rádio, e também, seu perplexo e boquiaberto ouvinte. No dia seguinte, tomou a séria decisão de colocar a estante em ordem e ouvir rádio criteriosamente, com mais atenção.

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