Arte recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Iphan
Publicado domingo, 31 de julho de 2022 às
06:00 h | Atualizado em 30/07/2022, 16:20 | Autor: Vinícius Marques
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Creusa
Meira, que se descobriu cordelista no começo dos anos 2000 e agora é uma das
figuras na nova geração de mulheres cordelistas - Foto: Raphael Muller |
Ag. A TARDE
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Da vida comum aos mundos
fantasiosos, da comédia aos fatos diários, passando por biografias e outras
homenagens. Tudo isso faz parte da literatura de cordel, que abraça vários
mundos em seus versos, impressos em folhetos e pendurados por feiras em todo o
mundo, ou apenas publicados em blogs e redes sociais.
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As estrofes em décimas,
sextilhas, setilhas, martelo agalopado e galope à beira-mar fazem parte do
imaginário popular há muito tempo, tendo recebido o título de Patrimônio
Cultural Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) em 1º de agosto de 2018, data do Dia Nacional do
Cordel.
O marco desse bem cultural no
Brasil data de 1893, de acordo com especialistas. Foi o paraibano Leandro Gomes
de Barros quem teria publicado os primeiros versos no país. A literatura de
cordel conjuga oralidade, poesia e prosa na sua origem e hoje é parte
intrínseca da identidade e cultura brasileiras.
Associados às xilogravuras, que
são as ilustrações das histórias estampadas nas capas dos folhetos, os textos
são marcados por três elementos principais: a métrica, a rima e a oração.
Na Bahia, o cordel possui muitos
mestres e ainda hoje se atualiza e agrega novos poetas. Bule-Bule é uma figura
indissociável quando se fala em literatura de cordel em qualquer parte do
Brasil.
Aos 75 anos, o poeta, repentista,
músico e cordelista está em atividade e não pensa em parar tão cedo. Em 2019,
Bule-Bule lançou o projeto musical Tertúlia Visceral, ao lado do artista gaúcho
Pedro Ortaça. Agora, ele se prepara para o relançamento do livro Orixás em
Cordel, que chega numa versão ampliada e com capa dura. A obra será lançada no
próximo dia 6, na Festa Literária Internacional da Praia do Forte (Flipf) , que
também marca o primeiro evento presencial de Bule-Bule desde o início da
pandemia.
Mas a intimidade com o cordel vem
desde muito cedo na vida de Antônio Ribeiro da Conceição, o Bule-Bule. Apesar
de não saber ler, o pai do cordelista sabia muitas histórias de cabeça, além de
conhecer o universo da literatura de cordel, das pelejas, dos reinos encantados
e do ciclo do cangaço. “Meu pai era um conhecedor da literatura de cordel e em
toda feira que ia procurava por títulos novos”, lembra o mestre.
Quando começou a ler, Bule-Bule
também já sabia de cabeça diversas histórias que ouvia do seu pai, mas conta
que passou a ter mais intimidade quando ainda criança conheceu dona Helena
Aragão, uma consultora e pesquisadora que arquivava muitos cordéis em casa.
Esse contato fez com que ele
conhecesse outros cordelistas como Rodolfo Coelho Cavalcanti, Minelvino
Francisco Silva e Erotides Miranda. Mas foi somente em 1977, aos 30 anos, que
Bule-Bule publicou seu primeiro Cordel.
“Já escrevia, mas não tinha
coragem de publicar. Motivado por Rodolfo Cavalcanti, eu escrevi e publiquei a
primeira história”, explica o cordelista.
Daí em diante, ele não parou
mais. Hoje Bule-Bule já conta com centenas de publicações, além de seus outros
trabalhos como cantador de repente, tocando viola e cantando seus versos –
reconhecido por todo o Brasil.
O mestre baiano vê com bons olhos
a evolução da literatura de cordel. “Hoje temos ‘jovens vovós’ contando essas
histórias porque é um universo que está mantido na pesquisa, está sempre tendo
o universo mais buscado e rebuscado”, diz, sobre a nova geração. Segundo ele,
não só o cordel, mas a ilustração, através de xilogravura, também tem sido
muito valorizada.
Para Bule-Bule, muito desse
reconhecimento que o cordel recebe hoje vem por conta dos pesquisadores, a que
ele se refere como uma “linha de crédito”, de credencial mesmo. Ele conta que a
partir do momento em que as universidades começaram a pesquisar melhor o
assunto e abrir essa linha de crédito, o cordel passou a ser mais respeitado.
“A literatura de cordel passou a
ser muito utilizada em Trabalhos de Conclusão de Cursos (TCC) e, por isso, mais
pesquisada, mais vendida, e hoje está presente nas grandes bienais”, afirma o
cordelista. “Temos no Brasil grandes estudiosos dessa literatura de cordel,
desse universo da pesquisa que tem nos favorecido bastante”.
O editor e pesquisador baiano
Marco Haurélio, atualmente mestrando em literatura na Unicamp, estuda a
classificação tipológica e sistemática do cordel.
Ele tem forte ligação com o
cordel desde a infância, e em 2017 foi finalista do Prêmio Jabuti com o livro
Cordéis de Arrepiar: Europa. Atualmente, o pesquisador possui mais de 50 obras
publicadas, e a grande maioria é de cordel.
Mesmo distante, Haurélio continua
em contato com os cordelistas da Bahia e ainda acompanha os lançamentos
realizados por aqui. Para ele, o estado está “num momento muito iluminado”. Ele
conta que tem visto muita gente, tanto na capital como no interior, abordando
temas dos mais diversos.
“Acompanho um pouco mais à
distância por hoje estar em São Paulo, mas fico muito feliz quando vejo essa
movimentação e essa diversidade. São muitas vozes, e essas vozes dão ao cordel
esse sentido de mosaico, caleidoscópio, polifonia”, destaca.
Ele conta que essa polifonia é interessante do ponto de vista de que se todos esses autores fossem abordar os mesmos temas, logo o leitor iria ficar enfastiado e o interesse seria perdido. “O melhor mesmo é a gente ter diversidade tanto de autor como de temas”, afirma o pesquisador.
Editor e pesquisador Marco Haurélio estuda a classificação tipológica e sistemática do cordel| Foto: Divulgação
Outro grande nome da
pesquisa de cordel no Brasil é a também baiana Edilene Dias Matos, da Academia
de Letras da Bahia, que criou e foi coordenadora do Núcleo de Pesquisa e
Cultura da Literatura de Cordel da Fundação Cultural do Estado da Bahia.
O núcleo foi um projeto
fundamental para dar início a toda essa linha de crédito que Bule-Bule
menciona. Foi a partir do projeto de Edilene que um acervo foi montado para que
estudantes e pesquisadores pudessem ter acesso aos mais diversos tipos de
produção sobre essa literatura.
“Nós constituímos um acervo muito
importante. Depois conseguimos adquirir livros, uma discografia, porque tinha
discos de cantorias de repente, que é também uma outra manifestação da chamada
Poética Oral”, explica Matos. “Depois, junto com os poetas, conseguimos montar
uma banca de trovadores e repentistas, ali nas imediações do Mercado Modelo.
Fizemos uma bela inauguração. Eles tinham ali um espaço para, além de
publicizar sua obra, de vender sua mercadoria”, acrescenta.
Feminino
Apesar da diversidade de vozes, o
cordel também guarda suas origens conservadoras. É muito comum associar essa
literatura ao mundo masculino. No entanto, Edilene conta que existe um debate
grande sobre o cordel feminino.
“Hoje há um movimento forte
de mulheres escritoras de cordel e elas estão se impondo, fazendo um trabalho
bonito. As cantadeiras também estão circulando por aí, de viola em punho,
fazendo experimentações com uma espécie de um novo cordel”, afirma a imortal.
Uma dessas vozes é a da baiana de
Dom Basílio, Creusa Meira, que só começou a escrever cordel em 2005. Apesar de
sempre gostar de poesia e escrever alguns versos, ela conta que não conhecia a
literatura de cordel.
“Quando comecei a acessar a internet, tive contato com outros poetas e foi quando aprendi a técnica, a métrica, toda a teoria do cordel, e comecei a escrever. Meu primeiro cordel foi na internet, em 2005, mas meu primeiro folheto foi publicado em 2008”, lembra.
Edilene Matos, imortal da Academia de Letras da Bahia, criou Núcleo de Pesquisa e Cultura da Literatura de Cordel| Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE
Internet
Creusa é um exemplo dessa geração
de cordelistas que utilizam a internet para divulgar suas obras. No caso dela,
a internet é também parte importante da criação. Ela recorda que eram nas
comunidades da antiga rede social Orkut que realizava pelejas com outros
cordelistas, além de participar de concursos.
“Participei do Concordel, em que
lancei meu primeiro cordel, um cordel inteiro mesmo. Houve um festival, o
Festiverso, quando lancei uma peleja com outro cordelista, Nildo Barbosa, de
Vitória da Conquista. Tudo isso através do Orkut”, conta.
Entre os temas abordados por ela
estão as questões ambientais, direitos humanos e a luta das mulheres. “A gente
vê que a era da internet favoreceu muito porque antes era mais difícil
encontrar cordelista mulher, mas com a internet isso mudou. Ainda hoje existe
uma certa resistência da participação da mulher no cordel, eles aceitam, mas a
gente ainda encontra dificuldades com os cordelistas”, afirma Meira.
Dessa nova geração também está o
professor, poeta e cordelista Elton Magalhães, que somente em 2011 descobriu,
em sala de aula, que poderia produzir literatura de Cordel. Isso aconteceu
quando ele construiu um texto em Cordel a respeito dos temas que utilizava
sobre barroco e arcadismo literário, como uma ferramenta didática de apoio para
os alunos.
O professor do Instituto Federal
Baiano (Ifbaiano), do campus Itaberaba, já publicou três livros: 2014: O Ano da
Copa no País do Futebol (2014), Festas Populares da Bahia (2018) e Épico
Esquadrão (2021). Magalhães conta que, coincidentemente, dois dos três livros
dele são sobre futebol, pela paixão que ele tem pelo esporte – o mais recente,
inclusive, é em homenagem aos 90 anos de fundação do Esporte Clube Bahia – mas
ele costuma dizer que é possível falar sobre tudo no Cordel.
“Meus primeiros folhetos de
cordel foram aulas. É um livro em formato didático. É para além da questão das
características de um texto de cordel, que são a rima e a métrica, o texto tem
esse peso muito forte do caráter didático”, explica o professor. “Já escrevi
sobre política, recentemente escrevi sobre a chegada de Moraes Moreira no céu,
um multiartista que se tornou cordelista no final da carreira”, acrescenta.
Contemporâneos
Como um cordelista novo, ele
também tem forte contato com seus contemporâneos e diz que problemas atuais
permeiam os escritos de seus colegas, como questões de gênero, raça e
desconstrução do preconceito, que ele destaca que “querendo ou não era consideravelmente
presente no Cordel”.
“Esses cordelistas mais jovens
vêm tratando disso. E vêm utilizado bastante de ferramentas mais acessíveis do
momento, que é a internet, as redes sociais. Isso tem sido muito importante,
não só para a manutenção, como para a atualização e divulgação em massa da
literatura de cordel”, afirma Magalhães. “Acredito que não só nos meus textos,
mas na maioria dos cordelistas, há uma heterogeneidade muito forte em relação à
temática”.
Com a utilização da internet como
importante meio de divulgação dos cordéis nos dias atuais, surgem também novos
empreendimentos, como é o caso da Nordestina Editora. A empresa, que nasceu em
2016, do também cordelista Zeca Pereira, da cidade de Barreiras, é uma vitrine
do que se tem feito hoje em dia na região em termos de produção.
“Os temas abordados tratam de
sátiras, biografias e muita coisa ligada à ficção. Tenho muitos trabalhos
também com temas atuais como o da vacina, a exemplo de O Homem que Tomou a
Vacina e virou Jacaré, um cordel educativo e engraçado ao mesmo tempo, que conscientiza”,
exemplifica.
Produção
Para ele, o fato de se ter uma
editora que enfoque nesse tipo de produção na cidade e no estado ajuda a
fortalecer a própria literatura de cordel, que, para ele, está num ótimo estado
de produção.
“Apareceram mais autores para
editar com a gente, principalmente na região. Posso dizer que conheço quase
todos os cordelistas do Brasil”, afirma o editor.
Entre os cordéis mais vendidos na
Nordestina Editora estão os de humor, em seguida uma surpresa: os cordéis de
terror. “O cordel de terror tem encantado muito, principalmente o público mais
jovem que tem a curiosidade quando vê aquelas capas com zumbis, caveiras.
Desperta a curiosidade porque é algo diferente na literatura de cordel, que foi
pouco explorada no passado”, conta Pereira.
De acordo com ele, essas novidades fazem o público se renovar e isso acaba criando uma longevidade ainda maior para a literatura de cordel, que a cada dia se aproxima de temas mais atuais e de um público que deseja a novidade, mas que também não se esquece do que já foi feito.
Bule-Bule é uma figura indissociável quando se fala em literatura de cordel em qualquer parte do Brasil| Foto: Luciano da Matta | (Ag. A TARDE)
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