Todos os dias pela manhã faço minha caminhada. O percurso começa no Alto do Funil no Bairro do Jequiezinho e termina no Bairro do Campo do América, próximo ao Hospital Prado Valadares, onde fica a casa da minha mãe Maria Letícia. Ali chegando bato na porta e na maioria das vezes sou recebido por ela. Sempre sorridente logo fala: “pela batida sabia que era você”. Brinco com ele e digo que é mentira. Levanta a mão como se fosse me bater e com outro belo sorriso diz: “entra logo menino”. Benção mãe, um beijo, um cheiro e um abraço bem apertado e uma resposta imediata: “Deus te abençoe”. Em seguida peço que ela calce o sapato, pintei o cabelo e passe o batom, para saímos rapidamente para andar, pois o sol já está lá em cima. “você não esquece o batom”, fala sorrindo. Pergunto também se fez xixi, tomou café, o remédio, confiro se a roupa está adequada, estando tudo correto, saímos para andar. Segurando na sua mão descemos os degraus existentes depois da porta. Antes de iniciar a caminhada pergunto se Marli sua sobrinha e filha de criação estiveram na noite anterior com ela, se Regina sua sobrinha, Darcy sua prima e Tomaz seu filho ligaram. O destino da caminhada é indicado naquele momento, com um gesto feito por ela com as mãos. Escolho o local, porque sempre Letícia quer visitar Marli e Darcy.
A
primeira caminhada da semana é feita para o lado do antigo Instituto de
Educação Régis Pacheco, próximo da casa de Marli. Mainha vai reclamando que
Marli tem muito tempo que aparece na sua casa. Provoco dizendo que ela não vai
falar e ela diz: “você vai ver se eu não falo”. Fala mesmo, e a senhora não
deve ir mais lá. Tudo isso acontece porque ela foi diagnosticada com o mal de
Alzheimer. Quando atravessamos cuidadosamente a Avenida Rio Branco, Letícia
queixa que o sol está quente e passamos para o lado que tinha sombra. Na sombra
diz que estava fazendo frio e reclama da falta do capote. Quando chegamos à
Praça Miguel Bahiense ela admira uma planta que brota flores amarela e que dei
o nome de Letícia em sua homenagem. Perto do Posto de Saúde reclama que a casa
de Marli é muito longe e aquela é a última vez que vai visitá-la.
Na
praça no fundo do posto pede para descansar por alguns minutos. Chegando à casa
de Marli, local que gosta de ir porque toma um café reforçado. Quanto a a
reclamação da demora da sobrinha de ir visitá-la, esquece de falar. Fica pouco
tempo, logo quer ir para sua casa. No retorno queixa do sol, da ladeira e do
cansaço. Chegando em casa fala que o coração está batendo muito, senta e pede
água. Em seguida tira o sapato, calça a sandália e vai tomar um cafezinho,
reclamando não ter comido nada na casa de Marli. Depois toca violão e canta a
música: “Deus é tão bom, Deus é tão bom para mim”. Quando digo que vou sair,
faz questão de me levar na porta e diz: “dê lembrança para Zé soldado”. Um
ditado antigo. Risada. Beijo e abraço e ela com carinho diz que o sol está
quente e pede para ficar para o almoço. Digo que preciso resolver algumas
coisas e ela pede que eu vá pela sombra. Com uma das mãos joga beijos para mim
e eu peço para ela entrar para não cair. Saio em direção ao Restaurante Espeto
de Ouro e quando atravesso a avenida ouço os seus gritos, agora da janela
novamente acenando e jogando beijos. Aceno também e sigo minha caminhada de
retorno para minha casa.
Na
segunda caminhada da semana é feita seguindo na direção do antigo Cine
Auditórium, sempre de preferência no passeio. Inicialmente reclama de um pedaço
do passeio ainda com cascalho, dizendo que iria falar para o dono do terreno
concertar. Quando passávamos na frente do Ateliê da sua amiga Dalva Rebouças,
Letícia apertou varias vezes minha mão, mostrando uma mulher que vinha na nossa
direção com uma calça bem apertada e disfarçadamente falou: “não tem vergonha,
mostrando tudo”. Sempre que quer mostrar uma pessoa que ela acha gorda, magra,
feia, bonita faz este mesmo sinal. Prosseguimos a caminhada e próximo do antigo
Cine Auditórium novamente ela falou: “não gosto de passar perto desta casa” Fiz
de conta que não havia entendido e perguntei. Por quê? “Pessoas que gosto
bastante morava ali e morreram”. Quando falei as letras iniciais dos nomes ela
lembrou e disse: “há Hilário e Zizinha, fico muito triste, pois gostava muito
deles”. Brinquei e disse que eles tinham feito uma viagem. E Letícia perguntou:
“quando eles voltam”. Falei que voltariam em breve. Do lado da sombra seguimos
a caminhada, pois ela reclamava do calor. No Cine Auditórium estava sorrindo,
pois não lembrava mais do fato anterior. Quando passávamos na porta da Igreja
Católica Nossa Senhora Conceição pediu para entrar. Entrou, olhou e na saída
disse que era muito bonita. No retorno para casa pediu para sentar na escadaria
do antigo cinema. Em poucos minutos levantou e continuamos andando, parando
apenas na porta da casa de Juninho, filho de Tio Marialvo, porque estava
molhada e tivemos que desviar, pois Letícia não gosta de molhar o calçado.
Próximo da sua casa perguntou por que Cece tinha deixado de visitá-la. Disse
que não sabia o motivo.
Na
terceira, o caminho é para a Praça do Viveiro. Logo na descida da ladeira,
depois do cursinho Expert perguntou quem morava em uma casa. Tentei ajudá-la a
lembrar, porém não adiantou. Disse que era o senhor Astrolábio e dona Cacilda.
Ele disse: “já morreram”. Mais adiante falou que morava uma grande amiga dela.
Quando falei que era Lucinha ela disse: “não saía da minha casa, comia, dormia
e esqueceu-se de mim, acho que ela morreu” Tentei amenizar e falei que Lucinha
estava morando com a irmã em outra cidade, porém não concordou e disse: “ela é
muito ingrata”. Seguimos a caminhada e próximo da padaria Trigo Rei pediu para
sentar em um pedaço de madeira, que fica na porta de um Ateliê. Sem demora
seguimos até a Praça do Viveiro e retornamos pra casa.
Na
caminhada seguinte é para a casa de Darcy Nogueira, sua prima, que mora próximo
do Hospital Prado Valadares. Para a caminhada ficar maior vamos pela Avenida
Rio Branco e próximo da Biblioteca Central retornamos pela Rua São Cristovão.
Como o caminho é uma subida, quando em um desses dias chegávamos perto da Clinica
IORT, Letícia disse que estava cansada e usou a seguinte expressão: “já estou
quase arriando o saco com as rapaduras”. Dei muita risada e perguntei o
significado da frase. Disse que era usada, quando a pessoa estava muito
cansada. Em seguida chegamos à casa de Darcy sua prima querida, local que gosta
de ir, porque sai um cafezinho.
Em
outros dias vamos às residências de Maria Meira, Regina ou repetimos as
caminhadas anteriores. Esta sequencia pode mudar conforme os acontecimentos e a
disponibilidade das pessoas que visitamos.
Através
deste relato verdadeiro presto minha homenagem a minha mãe Maria Letícia da
Silva Meira, a pessoa mais importante da minha vida. E como reflexão segue um
texto de um autor desconhecido intitulado “Definição do Amor”.
Um
homem parou para comprar flores e pediu gentilmente urgência no atendimento,
pois tinha um compromisso. O vendedor, separando as flores perguntou o que
tinha de tão urgente pra fazer. O homem lhe disse que todas as manhãs ia
visitar sua mãe em tratamento numa clínica, com mal de Alzheimer em fase
avançada. O rapaz, entregando o pedido ao homem disse. “Então hoje ela ficará
muito preocupada com sua demora?” O homem respondeu. “Não, ela já não sabe quem
sou. Há quase cinco anos que não me reconhece mais”. O vendedor questionou:
“Mas então para que tanta pressa em vê-la todas as manhãs, se ela já não o
reconhece mais?” O homem então deu um sorriso e, batendo de leve no ombro do
rapaz, responde: “Ela não sabe quem eu sou... Mas eu sei muito bem quem ela é!”
O
vendedor teve que segurar suas lágrimas enquanto refletia.
O
verdadeiro AMOR não se resume na utilidade da pessoa, mas o que ela representou
na sua vida. O verdadeiro AMOR é a aceitação, é gratidão de tudo que foi um
dia... E do que não é mais.
Minha
Mãe faleceu ontem 12/04/2022, em Tatuí - São Paulo, aos 94 anos de idade, onde
morava a 2 anos com seu filho Tomaz.
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