J. B. Pessoa
Pinga
não!... Se o senhor quiser um cafezinho, eu lhe sirvo nesse momento e, se
quiser esperar um pouco, tem um cuscuz no fogo, que não vai demorar muito para
ficar pronto. Como o amigo pode constatar, a minha venda aqui fica aberta até
altas horas da noite, numa espécie de confraria, para eu receber os amigos,
contar os nossos causos e pôr em dia, os assuntos que correm aí pelo mundo. O
senhor é bem vindo, pois é cunhado do Seu Abdias, nosso amigo aqui presente...
Como?!... Ele é como se fosse seu irmão, Seu Abdias?!... Parabéns seu moço!
Como é mesmo a sua graça?... Otonho?!... Então se achegue, pegue um tamborete e
sente conosco, Seu Otonho. O senhor me desculpe; porém, as reuniões na base da
bebida sempre terminam mal. Ademais, tem pessoas aqui que, por motivos
religiosos, detestam bebidas. Afirmo para todos, que não é o meu caso. Eu
sempre tomo alguns cálices de licor nas noites de São João, quando estou
proseando com os amigos em volta da fogueira e, às vezes, uma boa destilada que
não sou nenhum santo. Costumo beber, também, nas Boas Festas de Natal, Ano Novo
e Dia de Reis. Afora isso, eu prefiro evitar. Não é por preconceito, pois tenho
respeito pela maneira de ser de cada um. Afinal, o Todo Poderoso nos deu livre
arbítrio.
Por
falar em pingas, um pouco antes da chegada dos dois amigos, o compadre
Belarmindo nos contou um causo de uma farra que ele participou. Pois bem: no
meio da festa apareceu o capeta querendo beber também! Foi um “deusnosacuda”
com todo mundo correndo, saindo pelas portas e janelas do bar, deixando o
compadre sozinho para encarar o coisa-ruim. Verdade?!... Você está vendo seu
moço, o compadre botou o demo prá fora do botequim puxando suas orelhas, o qual
saiu com o rabo entre as pernas! Êta homem valente sô!... Estou pra ver outro igual!
Vamos nos sentar e deixar o compadre contar esse causo, novamente! Ora, por que
compadre?... O senhor não conta, na mesma noite, o mesmo caso, duas vezes?!
Bom!... Não faltará ocasião, pois todos aqui vão querer ouvir de novo essa
inusitada aventura do meu compadre Belarmindo. Em certa ocasião o seu
Manequito, aqui presente, também encarou uma coisa semelhante. Ah!... Foi uma
aposta?!... Com quem seu Manequito? Com um caipora?!... A gente se lembra
disso, não é verdade seu João do Osso? O caipora desafiou o seu Manequito para
uma extraordinária competição. Os dois começaram a tomar doses de cachaça, no
próprio alambique do seu Manequito. Se ele caísse embriagado, o caipora levava
consigo toda a produção do seu alambique. O seu Manequito, como é muito esperto,
colocou o sumo de uma raiz poderosa na bebida do bicho e o caipora não passou
dos três copos. Foi embora com as pernas bambas, exigindo revanche na primeira
oportunidade. Não foi assim que aconteceu Seu Manequito?... Benza-te Deus!
Pois
é!... Como ele mesmo pode confirmar, o seu Manequito tratou de vender o
alambique, pois ele não é otário de encarar o caipora pela segunda vez. Com
certeza o bicho ficou sabendo que foi ludibriado pelo esperto proseador e
quer
vingança! É por essas e outras que eu não quero saber de cachaça. Além disso,
eu li em um livro espiritualista, que nos locais onde está apinhado de
beberrões, o Mal está por perto.
Como o
senhor pode ver seu Otonho, aqui tem causos de toda a natureza, para se ouvir
ou contar! Acredita quem quiser! Só não pode chamar o proseador de mentiroso;
porque, além de ofender o cidadão é uma grande falta de educação. Os ouvintes
podem dar um pequeno desconto e tirar os noves fora, Et Cetera e tal. Afinal
todo bom proseador enfeita o seu causo, para a estória ficar mais atraente.
Seu
moço, meus amigos aqui presentes. Eu também participei de uma aposta semelhante
a do Seu Manequito. Não foi com uma entidade poderosa que nem o Caipora. Foi
com um mequetrefe que andava azoando a minha paciência. Não sei se vocês se
lembram de um sujeito que tinha um enorme despeito da minha pessoa, o qual eu
relatei quando contei para vocês o Caso do Fantasma de Iguatemi. Éramos da
mesma idade e isso foi na nossa juventude. O nome dele é Luis Weisderland
Amorim, que por sinal, ele é primo em segundo grau da minha mulher. Pois bem:
Esse sujeito resolveu aprontar comigo, novamente. Morria de ciúmes, pois era
apaixonado por uma moça que era minha amiga e não ligava para ele. Ele andou
espalhando pela vila inteira, que eu era um moleirão, que não bebia porque não
aguentava o tranco. Eu refutava a sua alegação, dizendo que, quem vende cachaça
e bebe vai à falência.
Pois
bem: Em certa ocasião, num dia de festa na vila, ele apareceu em minha venda,
na companhia de um grupo de rapazes de um povoado chamado Sitio Novo.
Geralmente eu fecho o meu estabelecimento em dias de festa, pois nele
funcionava a venda, o bar, e uma pequena loja de miudezas. Na verdade, eu só
abria a minha venda numa segunda-feira, que era o dia da feira livre em Iguatemi,
pois no resto da semana, quando não viajava, eu cuidava do meu gado e das
minhas roças de feijão e algodão. Como os moços eram meus parentes, abri a casa
e comecei a servi-los doses de aguardente. Luis Weisderland começou a mangar a
minha pessoa em relação a bebidas, fazendo a rapaziada rir de mim. Seu moço,
meus amigos aqui presentes!... De repente eu me aborreci e desafiei todos eles,
para um duelo de pingas. Cada um de nós teria que beber uma dose de cachaça e
repetir a façanha seguidamente. Quem desistisse ou caísse embriagado, ficava
fora da contenda. O que tomasse a última dose seria o vencedor. Pois bem: Havia
pouco tempo, que tinha começado a circular as notas novas do cruzeiro,
substituindo as antigas cédulas do “mil reis”. Luís tirou uma nota, novinha em
folha, de cem cruzeiros, a qual era uma considerável quantia na época, e jogou
em cima do balcão, desafiando a todos para uma grande aposta.
O
moleque sabia que a garotada não dispunha de uma quantia como aquela. Seu moço,
para o senhor ter uma ideia, cem mil reis, ou seja, cem cruzeiros dava para um
cidadão adquirir um terno de casimira. Olhei para o sujeito e me deu uma
vontade danada de passar a perna nele; pois eu tinha um trunfo nas mãos e não
queria roubar o bestalhão. Sorri e disse para ele que seria
sem
dinheiro e o que estaria em jogo era a honra de quem quisesse entrar na
disputa. A rapaziada do Sítio Novo gostou da ideia. Eram quatro rapazes entre
os 18 a 21 anos, que torciam por Luís e não queriam perder dinheiro. Na época,
eu tinha 29 anos e Luís mesma coisa. Tentei deixar os rapazes de fora da
contenda, mais como eles insistiram, pensei comigo mesmo: “Meus camaradas: já
que vocês querem, irão sentir o gosto da derrota!”
Seu
moço, meus amigos aqui presentes nessa noite abençoada por Deus! Eu sabia que
Luís Weisderland era um beberrão de primeira qualidade. Pelo menos, ele se
gabava disso e por isso mesmo eu resolvi jogar pesado com aquele pulha. Eu fui
à parte da venda, onde ficavam as miudezas, e peguei vários lenços de algodão e
espalhei pelos bolsos da calça e do paletó. Fiquei do lado de dentro do balcão
e Luís com os quatros marotos do lado de fora. Coloquei em cima do balcão, uma
garrafa de uma fina aguardente e seis pequenos copos, daqueles de fundo grosso,
típicos de tomar bebidas destiladas. Enchi os copos e juntos os erguemos,
brindando a nossa querida Vila de Iguatemi. Todo mundo bebeu os conteúdos dos
copos com satisfação. Todo mundo, não!... O proseador que aqui vos fala,
continuou com a bebida na boca e, rapidamente, tirou um dos lenços do bolso;
depois, fingindo limpar os lábios, despejou todo o líquido no lenço que, sendo
de algodão o absorveu na hora. Aparentei colocar o lenço no bolso e joguei-o
ligeiramente num cesto embaixo do balcão. Olhei para todos e notei que ninguém
tinha percebido a minha esperteza. Um dos meus parentes do Sítio Novo chegou
até a estalar a língua de satisfação, dizendo: “Esta aqui é da boa!” Sorri
satisfeito e pensei com os meus botões: “tá todo o mundo no papo!” Repetimos as
doses várias vezes, brindando sempre uma coisa diferente. Seu moço, meus
diletos amigos, secamos três garrafas de cachaça e, em nenhum momento, eles
perceberam a minha artimanha. Também pudera! Eu simulava estar mais bêbado do
que eles! Evidentemente que fiquei um tanto embriagado, porque, sempre que
levava o lenço à boca, eu não conseguia jogar fora toda a bebida, engolindo uma
pequena parte dela. Agora um pergunta para vocês, meus camaradas de prosas:
adivinha quem foi o primeiro a cair?!... Isso mesmo Seu Otonho, o senhor acertou!
O capiau do Luís Weisderland caiu igual uma jaca podre, diante das gargalhadas
dos meus parentes, os quais faziam apologias aos Nunes Dourados, nossos
antepassados. Como?! ... Concordo com o senhor, seu Abdias: o contador de
vantagens sempre apanha! Agora, vejam vocês: a minha grande surpresa foi com o
garoto de 18 anos, que não caiu! Ele chegou prá mim e disse: “Né, eu estou
enjoado... Vou para a pensão descansar um pouco, que não quero perder a missa
das quatro horas!” Saiu andando, um pouco descompassado, porém com certa
elegância, deixando o amigo e os primos dormindo em cima dos sacos de feijão da
venda. Eram quase onze horas da manhã, quando deixei Zé Preto, um garoto que
trabalhava comigo, tomando conta da venda, até os marotos acordarem e irem embora.
A seguir fui encontrar com Tina, minha noiva, que hoje é minha mulher e mãe dos
meus filhos, a qual ralhou comigo, pois eu estava fedendo a cachaça. Acompanhei
Tina e seus irmãos e fomos almoçar na casa da tia prima deles Leonídia Alves de
Oliveira,
que é
casada com o meu tio Joaquim Ferreira Pessoa. Logo depois do almoço me despedi
de Tina e fui tirar um bom cochilo. Acordei às duas horas da tarde, com Zé
Preto me entregando as chaves da venda, dizendo que os beberrões tinham ido
embora e que o capiau do Luís Weisderland ficou contando a todos, que eu corri
do pau, deixando ele e os rapazes do Sítio Novo, sozinhos na venda! Vê quem
pode com um sujeito desses?!... O senhor acha isso seu Manequito? Que eu
deveria ter ficado com os cem cruzeiros do otário?!... Sei não! Sei bem que o
sacana merecia isso! Pelo sim ou pelo não, tempos depois contei tudo aos meus
primos, pedindo desculpas a eles. Eles riram muito e elogiaram a minha astúcia.
Agora, meus camaradas, vamos tomar um cafezinho, que o Seu Belmiro, que é
guarda municipal, vai nos contar, como foi que ele deu uma carreira no famoso
pegador de meninos.
Décimo primeiro capítulo do livro não publicado: “ As Aventuras de um Catingueiro”.
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