J. B. Pessoa
Pelo
amor de Deus! Quem sou eu para cometer uma façanha dessas! Eu nem sei como foi
que um boato desses apareceu. Meus amigos, eu sempre afirmei para vocês, que eu
não sou um homem corajoso. Apenas um sujeito que morreria de vergonha se algum
dia vier se acovardar. Como sou orgulhoso, prefiro enfrentar o capeta, a correr
dele e ficar conhecido como um cabra mofino. Eu gostaria de ser como o Seu
Manequito, que não tem medo de nada, nem de anjo e nem de lobisomem. Aliás,
valentia e covardia são versos opostos da mesma moeda, que todo o mundo carrega
em seu destino. Eu estou dizendo isso porque, corre por aí um boato, que eu
enfrentei um touro furioso e o nocauteei com um murro. Seu Benigno, aqui
presente, me disse que ouviu isso no sábado passado, lá no Curral do Conselho.
Então, sou obrigado a esclarecer aos amigos o assunto e colocar os pingos nos
is, em questão.
Seu
moço, como diz o povo: “Onde há fumaça, há fogo!” Por isso eu vou contar prá
vocês como sucedeu esse caso. No ano de 1952, a cidade de Jequié recebeu a
imagem da Virgem de Fátima, vinda de Portugal. Naquela época houve muitas
missas e procissões na cidade, atraindo pessoas de toda a região para os atos
religiosos. Com todo esse movimento de pessoas vindo de fora, a cidade atraiu,
também, empresas de entretenimento, como circos e parques itinerantes, entre
eles um famoso circo de touradas.
Como
vocês devem saber, a tourada praticada no Brasil é diferente das touradas
clássicas dos países hispânicos. Aqui ela é cômica com palhaços e toureiros, os
quais pegam o touro a unha; na mão grande mesmo, e pelos chifres. Há quem diga
que existe muita marmelada nessas touradas, pois os bois são fracos e mansos. O
povo se diverte assim mesmo, principalmente com as estripulias dos palhaços.
Como?!... Isso não é verdade Seu Manequito? Os touros são realmente brabos? Eu
acredito no senhor, pois já assisti muitas touradas. Concordo com o Seu João do
Osso aí, quando diz que essa gente gosta mesmo é de desfazer das nossas
tradições!
Pois
bem: em um sábado à noite daquele memorável ano, a Paróquia de Santo Antonio
fez uma procissão em louvor às almas do Santo Purgatório. Era uma procissão
diferente, pois apenas homens poderiam participar daquele préstito religioso.
Foi uma bela procissão, na qual compareceu quase toda a população masculina da
cidade, assim como os seus visitantes. Quem comandou o cortejo foi um padre
estrangeiro, o qual misturava os artigos femininos aos substantivos masculinos,
em seu sotaque engraçado. Eu acompanhava a procissão, na companhia do meu cunhado
José Leolino e Silva e do meu irmão Elias Pessoa, o qual morria de rir, com os
termos usados pelo referido padre.
O
cortejo começou pela meia noite, passando pelas principais ruas e praças do
centro da cidade, terminando lá pelas duas horas da madrugada. Foi uma coisa
bonita de se ver. Uma quantidade significativa de homens, com suas vozes
graves, cantando hinos e benditos, louvando as almas do Santo Purgatório. Eu,
meu irmão e o meu cunhado seguimos juntos, próximos ao padre, o qual alertava
aos pecadores, do inevitável, da única coisa que todos tinham certeza que
viria: mais cedo ou mais tarde, e que as benditas almas que a procissão
louvava, nos recebessem com um divino amor.
A
procissão encontrava-se perto do seu final, passando pela Praça Ruy Barbosa,
quando o alarma aconteceu: Meus amigos, de repente, um enorme boi preto
apareceu na frente do cortejo, avançando contra o povo. O padre foi o
primeiro
a alertar os fiéis, com o seu inconfundível sotaque: “Cuidado, a boi danada vai
atacar!” Seu Moço!... A coisa foi engraçada e, ao mesmo tempo, perigosa demais!
No momento em que o boi se arremeteu na multidão, o pessoal que acompanhava a
procissão debandou para os quatro cantos da praça, deixando o padre e o andor
desprotegidos. Eu nunca vi tanto homem barbudo correndo feito menino. A maioria
subiu nas árvores do jardim, enquanto a molecada atiçava o boi, deixando o
animal mais raivoso ainda. Eu fiquei junto a Elias e José e resolvemos
permanecer no mesmo local, perto da pista de patins, próximos do padre e
sacristão, os quais procuraram proteger o andor caído. Nesse ínterim, o boi
resolveu investir no pequeno grupo em volta do padre. Seu moço, a coisa que
estava engraçada, virou encrenca para nós. Nesse momento, todo o grupo que
estava conosco, inclusive José e Elias, deu o fora dali imediatamente; ficando
só eu, sozinho, na espera do touro! O que seu Firmino?!... O senhor acha que
foi muita coragem minha?!... Ledo engano, meu amigo! Foi medo mesmo. O meu
temor foi tanto que as pernas não me obedeceram. Na medida em que o boi se
aproximava de mim, o medo aumentava e eu permanecia com as pernas paralisadas.
A minha salvação foi que, naquele momento apareceu o bando de moleques,
desviando a atenção do boi, o qual resolveu atacar aquela alegre molecada.
Respirei forte, ficando aliviado e o temor desapareceu. Olhei para a correria
do pessoal fugindo do boi e não achei aquilo nada engraçado; pois, como diz o
povo: “Pimenta no cu dos outros é refresco!”
Meus
amigos: parece mentira o que eu vou contar pra vocês, mas não é! De repente, o
danado do boi parou de correr atrás de toda aquela gente e empacou no meio da
praça. Ficou olhando para mim com a sua cara feia e parecia indignado com a
minha postura. Na certa estava perguntando a si mesmo: “Como é que um tabaréu desses
se atreve a não fugir de mim?!” Pois é!... O safado do boi cismou comigo! Lá
estava ele arrastando as patas prá trás, fazendo poeira e olhando para minha
cara, bufando de raiva! Senti naquele momento, que o sacana ia me atacar
novamente e, subitamente, meus colhões começaram a doer, me deixando com raiva
daquele maldito boi, que havia estragado a nossa bela procissão. Embora, eu não
tivesse experiência alguma na coisa, eu já tinha assistido a muitas touradas e
sabia do jeito certo de pegar um boi pelos chifres. Como eu havia previsto, o
bicho partiu na minha direção em posição de combate. Na hora em que o boi
arremeteu o seu bote, eu abri os meus braços e, dando alguns passos pra trás,
para amortecer o impacto, me joguei entre os seus chifres, agarrando com
vontade o seu pescoço. Seu moço, meus companheiros de prosa, nessa noite fria e
escura de agosto, a coisa foi feia. Enquanto o boi balançava a sua cabeça, eu
ia junto com os meus cento e noventa e um centímetros de altura e quase cem
quilos de músculos. Segurei o boi e segurei forte, enquanto Elias tentava
derrubar o bicho pelo rabo, assim com fazem os vaqueiros nas vaquejadas. Os
segundos foram passando e os meus braços se enfraquecendo com os movimentos do
boi. Nesse andamento, ele me deu uma arrematada com tanta força, que me fez
voar por sobre ele, me esparramando todo pelo chão. Foi aí então, que José
Leolino apareceu com um pedaço de pau e bateu bem forte na testa do boi,
derrubando o bicho na hora. Foi o meu cunhado e compadre José Leolino e Silva,
marido da minha irmã Maria Pessoa, quem nocauteou o famoso touro dos circos de
touradas, naquela noite, com um acha de lenha. De qualquer maneira, fomos nós
três quem acabou com a festa do coitado, o qual voltou para a arena, com as
pernas
bambas
e muita dor de cabeça, sendo levado por um vaqueiro, que sorria dizendo: “Era
uma vez um touro valente!”
Terminando
aquele alarido, a procissão completou o seu percurso, finalizando na porta da
igreja, com o padre agradecendo a todos os presentes pelo comparecimento e,
louvando as almas do Santo Purgatório, afirmou que foram as mesmas que nos
defenderam “da boi danada”!
Não
presenciei o final da procissão, porque o meu irmão ficou preocupado com o
tombo que eu sofri, na hora em que o boi me atirou ao chão. Elias me levou para
sua casa, na companhia de José Leolino, onde ele estava hospedado. Eu estava
com o corpo inteiro dolorido, pelos arremetes do touro furioso e Elias me
convenceu a tomar um remédio catingueiro, o qual era um chá bem forte,
especialidade de Augusta, sua mulher. Por isso mesmo, não podemos confirmar, o
que muita gente comentou depois, sobre os agradecimentos do padre estrangeiro.
Entre tantas palavras erradas, as quais dão um sentido diferente para quem está
ouvindo, ele finalizou o seu discurso, dizendo em alto e bom som: “Quero
agradecer a maior prefeito da baia, Lomanto Júmento! Eu monto satisfeito!” Não
ri não, pessoal. A coisa foi séria.
Décimo capítulo do livro não publicado: “As Aventuras de um Catingueiro”.
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