segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

UM “CONDOR” NO QUINTAL

                                    Por Carlos Eden Meira

O professor Marcelino, inteligente, letrado, conhecedor dos idiomas Francês, Inglês e Latim, além de ciências e filosofia era tido por muita gente - não se sabe bem por que - como um gênio que aprendera tudo sozinho, um “verdadeiro autodidata”. Era casado com Sinhá Maria Donatella, mulher muito católica, filha de família rica da zona rural da caatinga baiana. O professor, no entanto, era também muito chegado a umas cachacinhas das boas, o que aborrecia demais a recatada e religiosa esposa, quando ele chegava embriagado a declamar versos, cuja linguagem às vezes pesada assustava a Sinhá Donatella.

Numa ocasião, quando se aproximavam os festejos do Natal, Sinhá Donatella mandou vir da fazenda, um grande e bonito peru para ser servido na ceia da festa, como era de costume. Esse bendito peru inexplicavelmente ganhou a amizade do professor que recitava versos para ele em altas madrugadas, recheadas de muita “água que passarinho não bebe” e poesias, no quintal da casa. O peru foi então promovido a condor, pois, o professor Marcelino nas suas viagens etílicas, achou enorme semelhança entre o peru e essa ave andina que inspirou uma classe de poetas, conhecidos como “condoreiros”. Comovido com o fatal destino do peru, ele dedicou ao animal agora transmutado em condor, uns versos nos quais dizia:

“Tu, ave de nobre porte,

Com asas de majestosa envergadura,

Quem selou a tua sorte

E te impôs tão ignóbil amargura?”

O peru era agora considerado o companheiro inseparável, o ouvinte principal e confidente do professor Marcelino. Pelas madrugadas adentro, ouviam-se vindos do quintal, os monólogos cheios de versos e frases espirituosas, intercalados de desaforos e xingamentos, quando o professor contestava e questionava Deus e o mundo, abraçado ao seu companheiro condor, coisas que evidentemente contrariavam a religiosidade de Sinhá Donatella.

Aconteceu então, que na véspera do Natal, Sinhá Donatella como costumava fazer todo ano, mandou que a empregada na hora de matar a ave, dar cachaça “para aliviar o sofrimento durante a degola, e para a carne ficar mais macia”. Para executar tal tarefa, a moça pegou justamente a garrafa de pinga do professor, a qual ficava guardada entre livros numa estante, chamando assim a atenção do Marcelino, que, aos berros correu para o quintal abraçando o peru e dizendo colérico: - No meu dileto amigo condor, ninguém toca! É uma questão de vida ou morte! Terão que passar por sobre meu cadáver! – E tomando ameaçadoramente a garrafa das mãos da empregada, passou todo o Natal ali no quintal, bebendo abraçado ao seu condor, recitando versos e soltando palavrões. Naquele ano não houve peru, na ceia de Natal.

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