J. B. Pessoa
Seu
moço! Meus amigos aqui presentes! Não quero que vocês achem que eu seja um
“cabra” corajoso, só porque matei uma onça! Como eu disse anteriormente: não
tive alternativa. Além disso, a ajuda de Mãe Luzia foi primordial, pois foi ela
quem acalmou os meus nervos, com aquele bendito chá; porque, se não fosse isso,
eu não sei não! O pior poderia ter acontecido e esse proseador, que é amigo de
vocês, não estaria aqui pra contar a história. Na verdade, eu fiquei um pouco
triste pelo sucedido e não tenho nenhum orgulho em ter abatido um animal tão
bonito que, cada dia, está mais raro em nossos sertões.
Por
falar em sentimento de culpa, certa ocasião, quando eu era ainda um homem
solteiro, eu cometi um pecado contra uma pequena criatura de Deus. Mas isso é
outra história, por sinal muito engraçada, que eu vou contar pra vocês, após a
gente tomar um cafezinho com este queijo sertanejo, que eu acho bem melhor do
que aqueles, que vendem nos armazéns e mercearias de luxo, aqui em Jequié.
Meu
compadre!... Tem coisas inesperadas que acontecem a um cidadão, que ele clama
pela falta de sorte. Porém, quando tudo parece haver sido perdido, vem o
“revertério”. De repente a coisa muda de figura, parecendo que a Providência o
está ajudando. Pois bem: numa certa ocasião, eu perdi um carregamento de finas
mercadorias, em virtude de um desastre acontecido com um caminhão que ia daqui
de Jequié para Livramento, via Vitória da Conquista e Brumado. Chovia muito na
época e um grande temporal entre Conquista e Brumado provocou um acidente,
fazendo com que o veículo derrapasse e capotasse fora da estrada, perdendo todo
o carregamento. O prejuízo foi enorme. Da minha parte, eu perdi no bruto e fora
o lucro, mais de três contos de reis, que naquela época representava um bom
dinheiro. Eram mercadorias, que o pessoal das redondezas encomendava em minha
venda e eu fazia o pedido para Salvador, que as enviava aqui em Jequié, pela
Estrada de Ferro de Nazaré. Daqui os tropeiros levavam em seus burros para
Iguatemi, pela antiga rota Contendas, Suçuarana e Brumado. Só que dessa vez
tinha um caminhão, que ia pra Livramento pela nova rodovia chamada de Rio -
Bahia, a qual passava em Conquista. De lá ia para Livramento via Brumado por
outra estrada e meu tio Abílio Pessoa, homem moderno e amante do progresso,
embarcou as mercadorias nesse carro, dizendo que, tropas de burros eram coisas do
passado e, deu no que deu!
Fazer
o quê?! Como diz o povo: “O que não tem remédio, remediado está!” Pensando
assim, toquei minha vida pra frente, na intenção de vender algumas rezes que eu
criava no meu sítio, ao redor de um pequeno lago, chamado Lagoa Grande. Para
poder cobrir o prejuízo e entregar as mercadorias, um pouco atrasadas, aos meus
fregueses, eu teria que vender uma parte considerável de meu do meu rebanho.
Naquele
tempo, a minha pequena vila de Iguatemi tinha um dinamismo muito grande, que acabou
desaparecendo com o tempo, em razão das migrações de seus habitantes para os
grandes centros urbanos. Todos os anos, a vila comemorava o dia de Santa Rita,
padroeira do lugar, com uma grande festa, a qual atraia visitantes de diversas
paragens. A comunidade escolhia, entre seus cidadãos, alguém que administrasse
as festividades e arcasse com as despesas do evento. O escolhido daquele ano
foi o meu tio Joaquim Pessoa, o qual ficou
sendo
o festeiro oficial; encargo que constituía uma grande honra, para qualquer
cidadão que se prezasse. Ele administrou muito bem a festa, elaborando uma
série de eventos, religiosos e folclóricos; hospedando com distinção, o vigário
e os demais componentes ilustres, convidados para o grande acontecimento. O meu
tio Joaquim, também conhecido como Quincas, era um festeiro muito maroto. Ele
acrescentou uma série de novidades engraçadas às brincadeiras tradicionais, que
ficou marcada na memória da vila e, até hoje, os mais velhos relembram com
saudades.
O
ponto máximo da festa era o leilão. Como os festeiros arcam o custeio da festa
com o dinheiro do seu próprio bolso, detêm o direito de leiloar os artigos e
presentes, que os comerciantes e cidadãos ofertam para abater as suas despesas.
Raramente um leilão cobre totalmente as despesas. Por isso, só os homens de
posses de uma comunidade se candidatam como festeiros.
Pois
bem! Nesse ano a coisa foi diferente: Quincas, que era um excelente negociante,
acrescentou às doações, artigos mais caros e fez propaganda da festa nas
localidades circunvizinhas, visando com isso, atrair o pessoal de dinheiro à
festa. Num lance de esperteza, criou o título de “cavalheiro do ano” o qual
seria aquele que mais arrematasse artigos do leilão, para oferecer as moças.
Uma
saraivada de foguetes marcou a alvorada do dia de Santa Rita, acordando os
catingueiros de Iguatemi. Havia muita gente de fora, inclusive das cidades de
Livramento, Caetité e Brumado, favorecendo os negócios do festeiro, que era
dono de uma pensão, uma loja, uma venda, um bar e do único restaurante do
lugar. Muitos dos filhos da terra, que haviam migrado para outros estados,
aproveitavam aquela festividade, para visitarem a terra natal. A farra da noite
anterior acabou com o estoque de vermute do bar, fazendo com que Quincas
precisasse buscar algumas garrafas, na venda de seu irmão Gonçalo Pessoa, na
Várzea D’água, localidade próxima de Iguatemi, pois o “rabo de galo” estava
muito em moda na época.
Pela
manhã houve duas missas e a celebração de 32 casamentos. Seu moço, eu fiquei
com pena do padre, que terminou tudo lá pelas duas horas da tarde. Os noivos,
na maioria, chegavam montados em seus cavalos, com as noivas na garupa. Era uma
coisa bonita de se ver. Esses pobres roceiros aproveitavam a vinda de algum
vigário, coisa rara na época, para sacramentar a união deles com suas
namoradas, pois na maior parte do ano, apenas algumas senhoras abriam a igreja
no domingo, para rezarem o rosário e cantar os hinos sagrados da liturgia
católica. Missa mesmo, com padre e tudo, só no dia da padroeira, Natal, Dia de
Reis, Sexta Feira da Paixão e Dia de Finados.
Às
três horas da tarde começou a parte cômica da festa. Seu moço! Meu compadre! Eu
nunca ri tanto na minha vida! Começou pelo pau-de-sebo, que era mais alto do
que o padrão da região; porém, com prêmios que justificavam o esforço da moçada
naquela empreitada. Depois de várias tentativas e muita hilaridade, foi
conquistado por três irmãos num esforço conjunto, o qual o mais forte foi
sustentando o mais fraco até atingirem o objetivo. Após a brincadeira do
pau-de-sebo, veio a vez do quebra-pote. Vocês conhecem a brincadeira. Os olhos
são vendados com um pano qualquer, aí rodopia o sujeito e o larga com um pau na
mão, com a intenção de quebrar um pote. Só que nesse dia pegaram um bêbado, que
passou longe do pote e saiu dando pauladas a torto e direito em todo mundo que
passava perto dele. Seu moço, eu ri tanto, que me deu dor de barriga. Foi aí,
então, que o delegado Adolfo Pessoa, meu pai, que também era o vereador que
representava o distrito de Iguatemi no legislativo de Livramento, pegou o
sujeito e o levou pra o xilindró, pra ele descansar um pouco, deixando
as
grades abertas, para ele ir embora quando melhorasse da carraspana. Em seguida,
um esperto garoto quebrou o primeiro pote e dele saíram caixas de bombons,
bastões de chocolates, maços de cigarros, pares de meias e várias coisas
luxuosas, de primeira linha.
O
segundo pote foi mais engraçado ainda. Os rapazes quando viram o luxo do
primeiro pote, posicionaram o garoto na direção certa e ficaram de expectativa
para avançar no pote quebrado e agarrar os seus conteúdos. Seu moço, meu
compadre! Eu nunca vi tanta gente correndo pra longe de um pote quebrado. O
maroto do Quincas botou dento do pote, sabem o quê?!... Uma colméia de abelhas
silvestres, daquelas que têm raiva de gente! Meus camaradas, eu ri tanto que
perdi o fôlego. No momento em que o garoto se preparava para exercer seu
objetivo, chega o bêbado, que cansou de ficar descansando na cela aberta, toma
o porrete do moleque, exigindo o seu direito de quebrar o pote e deu tino ao
seu intento. As abelhas quando viram o borrachão com o cacete na mão,
perceberam que foi ele o impertinente, que havia bulido com elas. Resultado: as
abelhas partiram para cima do sujeito que, quando percebeu a fria que estava se
metendo, largou o pau e deu o fora, correndo numa velocidade de quem estava
sendo perseguido pela morte. As furiosas abelhas aplicaram tantas ferroadas no
sujeito que o curou da bebedeira em poucos segundos. A seguir ele foi novamente
para o bar do Quincas e se encharcou de pinga para se curar das picadas
daquelas abelhas zangadas.
Eu
estava assistindo a tudo aquilo da minha venda, pois abri para uma rapaziada
especial que queria tomar uísque. Eram uns parentes meus de São Paulo, que
tinham saído do lugar, ainda pequenos, na companhia dos pais e estavam
visitando a terra natal. Eles estavam reclamando da falta de uma cerveja
gelada, pois o único refrigerador da vila era uma geladeira do bar de Quincas,
que funcionava a querosene e não estava dando para suprir o consumo daquele
dia. Naquele tempo, energia elétrica era um privilégio de poucas cidades e
mesmo assim, funcionava precariamente. Eu era o único da vila que tinha uísque;
pois, na época, o povo só tomava vermute e cachaça. A maioria das pessoas
detestava uísque. Achava que tinha gosto de madeira podre!
Como
eu estava dizendo: da porta da minha venda eu esperava curioso à quebra do
último pote. Como diz um ditado popular, “gato escaldado tem medo de água
fria”, a rapaziada receosa de uma nova estripulia por parte do festeiro, ficou
sem querer se ariscar na empreitada. Foi aí então, que apareceu certo cidadão
de Livramento, candidato a vereador, que gritou em alto e bom som: “Em
homenagem a Santa Rita e ao povo maravilhoso desta terra, eu coloquei, do meu
próprio bolso, dentro daquele pote, três notas de mil cruzeiros, luzindo de
novas!”
Seu
moço, até eu, que não gostava me meter em brincadeiras daquele tipo, fiquei
interessado. Afinal, três mil cruzeiros era uma pequena fortuna, que dava para
cobrir meus prejuízos no acidente do caminhão. Eu ainda não tinha visto uma
cédula de mil cruzeiros, lançada naquele ano, que ficou conhecida como a
“abobrinha”.
Fiquei
atento aos acontecimentos. A garotada de São Paulo saiu da venda e se prostrou
perto do pote, na perspectiva de agarrar aquele dinheirão. Aliás, a notícia de
que dentro do pote tinha três contos de réis, atraiu muita gente ao local, na
esperança de agarrar aquela riqueza. O bêbado voltou novamente, reivindicando o
seu direito de quebrar o pote, ameaçando processar todo mundo pelo desacato,
pois ele era um guarda municipal muito conceituado em Livramento. O político o
apoiou naquele instante e, vendando seus olhos, deu-
lhe o
porrete e o empurrou na direção certa. Dessa vez o emborrachado acertou de
primeira e a multidão se atirou ao pote quebrado, do qual saiu um gato
assustado, que se escafedeu para longe dali. A rapaziada quando viu o pote
vazio, ficou sem entender nada. Nesse instante Quincas apareceu e gritou: “O
dinheiro está dentro de uma bolceta amarrada no pescoço do gato!”. Meus amigos,
coitados dos gatos do lugar! Ninguém sabia ao certo, qual foi o gato que saiu
apavorado de dentro do pote quebrado e começaram a perseguir toda a gataria das
imediações. O pior é que alguns entenderam que o dinheiro estava dentro do
órgão genital de uma gata! A maioria da moçada que estava embriagada, não
querendo trocar gato por lebre, desistiu do gato e foi atrás das “gatas”, no
linguajar de hoje. Os que persistiram no intento passaram o resto da festa à procura
do singular bichano.
Fechei
a minha venda às oito horas e, depois de tomar um bom banho, vesti o meu melhor
terno e fui dar umas voltas pela praça, para apreciar as moças de fora, que
vieram para festa. Fiquei conhecendo uma formosura, que era colega das minhas
irmãs na Escola Normal de Caetité e acabei fazendo amizade com uma turma de
normalistas. Durante o leilão arrematei alguns presentes, que ofereci as moças
que eu acompanhava. O leilão foi muito animado e foi um verdadeiro sucesso. Um
rapaz que se prezasse, tinha que arrematar qualquer coisa e ofertar a alguém.
Os que queriam aparecer como bons partidos concorriam com outros, para
mostrarem suas importâncias na localidade. Um finório conhecido como
Miguelzinho Bittencourt, afamado na região como moço fidalgo, foi o que mais
prendas ofereceu as moças; principalmente para a beldade de Caetité que estava
comigo, ganhando o título de cavalheiro do ano. Contudo, no baile que aconteceu
depois do leilão, a moça só dançou comigo.
Enquanto
o leilão acontecia, um bando de marotos liderados pelo bêbado de Livramento,
ainda perseguia os gatos do lugar, na procura das famosas notas de mil
cruzeiros. O baile acabou às três horas da manhã e ainda se via um bando de
marmanjos perseguindo os gatos da vila, não deixando os mais velhos dormirem em
paz. Depois de acompanhar as moças até a casa onde estavam hospedadas, fui para
casa dormir um pouco, pois eu tinha que ir à minha roça, na manhã seguinte,
para fiscalizar minha plantação de algodão.
Descansei
apenas três horas, pois acordei bem cedo naquela manhã. Às sete horas eu já
estava cavalgando no meu alazão em direção aos Três Umbuzeiros, onde ficava a
minha lavoura. Fui num trote apressado, pois eu tinha um encontro com os
funcionários do banco que havia financiado a minha plantação. Ao atravessar um
riacho, parei para acender o meu cigarro de palha, enquanto meu cavalo bebia
água. Amigos!... Vocês não imaginam o que eu encontrei pelo caminho!... Seu
moço, lá estava o danado do gato com a bolceta amarrada ao pescoço, em cima de
um pé de pau, olhando para mim, preparando-se para fugir. Não pensei duas
vezes: saquei o meu revolver e atirei no pobre gato, que tombou morto ao chão.
Abri a bolceta, que era usada para colocar tabaco, e lá estava às três
abobrinhas com o retrato de Pedro Álvares Cabral. Coloquei o dinheiro na minha
carteira, bastante contente com o achado. Contudo, um sentimento de culpa me
acompanhou o resto do dia. Eu, que adoro animais, fui cruel com um bichinho
inocente, que nunca fez mal a ninguém.
Enterrei
o bichano no mato, debaixo de um juazeiro, pois não queria deixar rasto da
minha sorte. Eu não pretendia contar a ninguém a minha façanha. Só fiz isso,
quando acusaram o político de mentiroso, dizendo que ele tinha feito o povo de
Iguatemi de besta. O pessoal da vila não acreditou que, no
gato
havia uma bolsa com três contos de réis. Seu moço, meus amigos, aqui pra nós:
só mesmo um imbecil teria uma idéia de jerico daquelas. Se não fosse a minha
sorte, o dinheiro estaria perdido para sempre. Para fazer justiça ao candidato
a vereador, mostrei para todo o mundo as três notas de mil cruzeiros, mas não
revelei que havia matado o pobre gatinho.
A
festa de Santa Rita daquele ano ficou na memória dos catingueiros da região,
por muito tempo. Quincas e alguns dos cidadãos respeitáveis da vila deram os
seus testemunhos a respeito da veracidade do fato: No pescoço de um gato havia
uma bolceta de fumo, com três mil cruzeiros, capturado pelo esperto Manoel
Pessoa. Quincas fez um excelente negócio com a festa e outros comerciantes
também tiveram seus lucros.
Aqueles
três mil cruzeiros me salvaram do prejuízo, com a mercadoria perdida no
desastre. Porém, eu nunca me esqueci do gatinho que matei. Com o tempo me
convenci de que tinha feito a coisa certa, ao me lembrar de um ditado popular,
hilário e cínico ao mesmo tempo, que diz: “Morreu?!... Antes ele do que eu!”
Pensando assim toquei minha vida pra frente. Naquele ano, a safra foi boa e
ganhei bastante dinheiro com a minha lavoura, pois o preço do algodão subiu
depois da entrada dos americanos na Segunda Grande Guerra.
Pois é
isso aí meu compadre! Como diz o povo: “Não há mal que dure para sempre!” ou
então: “Deus dá o cobertor conforme o frio!” Agora vamos dormir que já é tarde
e o frio está de rachar! Amanhã é outro dia e o compadre Guilhermino vai nos
contar o caso da onça que correu atrás do Doutor Celi de Freitas, no lugar,
onde hoje é a Rua do Jequié Tênis Clube.
Sétimo capítulo do livro não publicado, “As Aventuras de um Catingueiro”
Uma história absolutamente fantástica no estilo raconteur.Amei os personagens da história e o periodo cerca do lumiar da Segunda Guerra Mundial. Uma jóia de literatura no gênero. Parabéns mais uma vez,.João Batista Pessoa!
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