J. B. Pessoa
Meus
camaradas! Vocês estão rindo porque a pimenta ardeu no rabo alheio! Na verdade,
o doutor mereceu o enxovalho recebido. Chegou ao nosso Sertão cantando de galo
e fugiu com o rabo sujo entre as pernas. Já vi muito macho negar fogo na hora
do “pega pra capar” e fugir que nem galinha choca. Em compensação, todo mofino
pode ser brabo quando a precisão chega, pois Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo é
Pai e não padrasto. Por acreditar nisso, eu vou contar pros amigos, um caso que
sucedeu comigo, há algum tempo atrás.
Seu
moço! Meus amigos aqui presentes! Quando eu me lembro do sucedido, fico com o
corpo todo arrepiado. Eu sempre tive medo de onças, porque sei que a “bicha” é
treiteira. Para o início de conversa é preciso ter muito colhão para caçar uma
onça! Sabem por quê?!... A danada é viciada em carne de gente! O povo diz que
quando uma onça pintada vê um vaqueiro no mato, tocando um garrote, ela dá o
bote no sujeito e deixa o animal fugir. Não posso jurar pra os amigos se isso é
devera ou não. É o que o povo diz. Já com a suçuarana é o contrário! Dizem que
ela tem fama de ser medrosa e foge quando vê gente, porque detesta carne
humana. O meu primo Armindo Matos me disse que a suçuarana não é mofina e que
em certa ocasião, ele viu uma briga dela com uma onça. Não me pergunte quem
ganhou a briga, porque o meu compadre estava desarmado e não era besta de
esperar o final. Deu no pé. Outra coisa que o “cabra” precisa para pegar uma
onça é de um bom cachorro, pois é o animal mais valente que Deus botou no
mundo. Ele nunca deixa o dono sozinho e, muitas vezes, o “cabra” se salva
quando erra o tiro é porque o seu cachorro faz frente à danada, dando a
oportunidade do sujeito fugir, ou matar a fera no facão, conforme a sua sorte e
valentia, sacrificando, às vezes, o seu cão.
Não
vou mentir pra vocês, dizendo que não tive medo, pois tive e muito. Quando eu
comecei a acompanhar meu compadre Golino nas caçadas, tremia que nem vara
verde. Se não me falha a memória, foi na época da revolta de São Paulo, que eu
fui pela primeira vez a uma caçada. Eu tinha dezenove anos e o meu compadre
mais de trinta. Ele caçoava de mim, pois todas as vezes que os cachorros
latiam, eu sentia vontade danada de urinar. Com o tempo fui me acostumando,
devido à confiança que aquele valente caçador de onças me inspirava. Meus
amigos, justiça deve ser feita e eu vou explicar pra vocês: Compreendi muito
bem o que sucedeu com o Doutor Durval, pois a mesma coisa quase aconteceu
comigo. Não tem um ditado popular que diz que: “quem tem cu, tem medo?!” Pois é!
Seu
moço! Quando vi pela primeira vez uma onça acuada, me deu uma tremedeira e uma
dor de barriga, vinda do nada. Tranquei o “Zé de Quincas” que não passou nem
pensamento. Se eu não fosse uma pessoa sadia, ia passar uma vergonha danada.
Além disso, eu não tinha o costume de beber, como aconteceu com o coitado do
doutor, que bebeu a noite inteira e no dia seguinte foi caçar uma onça. Vê se
pode?!
Pois
bem: voltando ao caso que quero contar para os amigos, eu me lembro como se
fosse ontem! Eu já era um homem feito, de 35 anos, casado, pai de um menino que
ia fazer dois anos e minha mulher esperando nosso segundo nenê. Eu
morava
na roça, em nossa pequena propriedade, afastada das demais, chamada de Três
Umbuzeiros, onde eu tinha uma plantação de algodão. Ficava a três léguas
distantes da Lagoa Grande, onde eu tinha outro pedaço de terra, com uma boa
manga e criava uns bois. Na Lagoa Grande havia várias pequenas propriedades,
desmembradas da grande fazenda chamada Santo Inácio, numa espécie de reforma
agrária natural, herdadas pelos descendentes de Aureliano Fernandes Amorim. Era
o lugar onde vivia Golino e outros parentes nosso, além dos filhos de
alforriados do Santo Inácio, que foram beneficiados com seus pedaços de terras.
Foi em
um dia de domingo que tudo aconteceu. Logo depois do café da manhã, notei que
Petí, meu cachorro, latia demais. Minha mulher conversava com Mãe Luzia, que
nos visitava naquele memento, e com mãe Ana, nossa parteira. Petí, meu
cachorro, um perdigueiro bom de caça, que estava amarrado no mourão da casa,
latia muito alto, olhando para o lado de um caldeirão, que ficava em uma
pedreira no fundo da casa. Tina, minha mulher, foi verificar o que estava
acontecendo e voltou correndo para dentro de casa, trazendo o cachorro consigo,
fechando as portas e todas as janelas de casa, clamando: “Valha-me Deus! Uma
onça está bebendo água no caldeirão!” Seu moço! Meus camaradas de prosas! Sei
que pode parecer mentira, mas não é. Era uma onça pintada, mesmo! A maior onça
que já vi na vida! Do tamanho de um cavalo! Bem: eu exagerei um pouco, mas era
bem grande mesmo! Maior do que a do Doutor Durval. Pois é: naquele momento a
velha tremedeira voltou e o medo tomou conta de mim. Pensei no Compadre Golino,
mas ele estava longe dali. A dor de barriga voltou e a vontade enorme de urinar
também. Respirei forte e dominei o medo, porque o meu orgulho é muito maior do
que qualquer medo que eu um dia eu tiver. Pensei ficar em casa esperando que a
danada fosse embora. Quem disse que foi?!... Saiu do caldeirão e ficou passeando
pelo terreiro em frente da casa, parecendo adivinhar que naquele lugar vivia um
mofino. As mulheres foram para sala do oratório e ficaram rezando o tempo todo.
Mãe Luzia era a única dentro de casa que estava tranqüila. Olhei para meu
filho, que estava sentado numa esteira e percebi que ele estava assustado,
parecendo que estava consciente do que acontecia. Mãe Luzia pegou o menino no
colo, cantou uma cantiga de ninar e ele adormeceu chupando o seu dedo polegar.
O
cachorro parou de latir por algum tempo, mas continuava rosnando, arranhando a
porta, querendo sair. A seguir fui até a janela e fiquei olhando pela brecha
para ver se a onça tinha ido embora. Parecia que sim. Fui até a dispensa da
casa e peguei uma espingarda antiga, que tinha um cano comprido e grosso,
daquelas que se carrega pela boca. Era uma arma muito especial, trabalhada com
afinco, de fabricação alemã, que herdei do meu avô materno, Anacleto Rosa da
Silva Matos. Coloquei nela uma dose reforçada de pólvora, uma grossa bolinha de
rolimã, uma bucha de sisal e soquei forte com a vareta. Depois de colocar a
espoleta, eu peguei meu cachorro e abri a porta, olhando com muito cuidado,
para verificar se a onça, ainda estava pelas imediações. Eu estava com medo,
mas não tinha alternativa. Não podia deixar uma fera daquelas passeando no meu
terreiro. Se eu tivesse alguma criação no lugar, talvez a onça se contentasse
com uma cabra ou algum porco. Naquela propriedade eu cultivava algodão e tinha
uma roça de feijão e milho e nela plantava algumas melancias. As poucas cabeças
de gado que eu criava, ficava na Lagoa Grande. Sempre acompanhei Golino nas
caçadas, mas nunca tinha dado um só tiro numa onça. Minha mulher quando viu que
eu ia sair, gritou desesperada:
“Pelo
amor de Deus, Manoel, não saia! A onça pode lhe pegar!” Mãe Ana começou a
chorar e apelou para mim: “Sai não, meu fio, senão a onça vai comer ocê!” O
cachorro latia sem parar, numa excitação fora do comum. Eu, que já estava com
medo, naquele momento fiquei apavorado. Foi aí, então, que Mãe Luzia percebendo
que eu estava determinado a sair, chegou para mim e disse: “Se avexe não, meu
filho, que eu vou lhe dar um chá pros nervos”. Logo após, ela tirou do seu
embornal uma raiz de certa planta e botou para ferver numa panela de barro.
Verificando que a onça estava por perto, voltei pra dentro de casa e fechei a
porta. Depois do chá pronto, Mãe Luzia encheu um copo, dos grandes, pedindo
para eu beber todo o conteúdo, ainda quente. Seu moço!... Foi uma questão de
segundos: No instante em que eu acabei de tomar aquele bendito chá, senti uma
quentura invadir todo o meu corpo me deixando leve, completamente calmo. Seu
moço!... Meus velhos amigos, aqui presentes!... Podem acreditar nesse velho
proseador, que aumenta o tamanho do peixe, mas não mente. O medo que eu sentia
foi pras “cucuias!” Ali, naquela hora, eu encarava qualquer bicho: caipora,
mula sem cabeça, lobisomem e até alma penada. Abri novamente a porta, soltei o
meu cachorro e saí com a arma em punho, à procura da danada, deixando minha mulher
e Mãe Ana, clamando e rezando no oratório. Sustento para vocês que eu não
estava com um pingo de medo! Meus amigos: será que é assim que se sentem os
grandes homens de coragem? Essa confiança toda? Sei não! O que sei é que
naquela hora eu me sentia o sujeito mais corajoso do mundo, devido o preparo de
Mãe Luzia. Será que é por isso que se diz: “Você precisa tomar um chá de
coragem!”, quando uma pessoa mofina não reage quando é necessário?... Sei não!
Pois bem, voltando á conversa: O cachorro correu e fui ao seu rastro, acoitando
a danada em cima de um lajedo. O cachorro latia sem parar e, antes que a onça
desse o bote, eu mirei na cabeça da felina e puxei o gatilho. Não deu outra
coisa: a onça caiu mortinha aos meus pés. Nessa hora eu ouvi o clamor de minha
mulher gritando: “Valei-me, minha Santa Bárbara Virgem”! No mesmo instante ela
saiu correndo de casa e foi ao meu encontro, respirando aliviada ao ver a onça
abatida no chão. Abraçou-me, chorando e disse que nunca sentiu tanto medo na
vida!
Seu
moço! Eu fiquei encafifado com uma coisa: Enquanto sucedia o acontecido,
parecia que eu me movia numa lerdeza danada. Fiquei surdo, sem ouvir nada,
inclusive os latidos do cachorro. A onça também parecia se mover bem devagar
até o momento de cair morta; e a coisa só voltou ao normal em minha cabeça,
depois que ouvi a voz de Tina, minha mulher. Ela veio acompanhada de Mãe Luzia,
que olhou para mim, sorrindo e disse: “Agora está tudo bem meu filho”. Depois
me chamou em particular e me sussurrou ao ouvido: “Não diga pra ninguém, que
lhe dei aquele chá. Eu não quero ser aporrinhada com gente atrás de mim,
querendo a mesma coisa, pois é um remédio perigoso e não é qualquer um que pode
tomar. Uma porção mal preparada ou tomada por quem não deve, pode levar o
sujeito para a cidade de pé junto!” Ela se despediu de mim com um abraço e foi
embora. Até parecia, que ela veio me visitar naquele domingo, de propósito,
como se tivesse adivinhado, o que viria acontecer!... Sei não! O que eu sei, é
que ela tem uma medicina muito forte, e já curou muita gente desenganada por
médicos.
Não
tardou muito e logo apareceram os amigos da Lagoa Grande, transformando o
terreiro dos Três Umbuzeiros numa festa. Golino foi o primeiro a chegar.
Examinando o felino, chegou à conclusão de que eu fui preciso e tive muita
sorte,
pois atirei no momento em que a onça ia dar o seu bote. A bala atingiu a onça
entre os olhos e isso só seria possível se ela estivesse de frente para mim.
Ele me abraçou e disse: “Compadre Manoel, meus parabéns! Foi um tiro de mestre.”
A seguir chegaram alguns vaqueiros e um deles esfolou o animal, esticando o
couro no quintal para secar ao sol. O Outro destrinchou a carne e Mãe Ana
preparou vários churrascos, temperados com sal, alho, pimenta do reino e
açafrão, que foram assados numa fogueira que preparei no terreiro. Como foram
chegando mais gente, fui até a minha dispensa, peguei um garrafão de destilada
e a farra começou, com pessoal fundando dentro do churrasco de onça. Meus
camaradas vocês já comeram carne de onça? Não?!... O gosto é um pouco parecido
com carne de porco. Pois é!... Tomei uns goles da destilada e comi o churrasco,
pensando nas ironias da vida. Era uma vez uma onça que queria comer e foi
comida! Peguei a minha harmônica e toquei a valer. Naquela hora eu estava
orgulhoso de mim, pois vivia o meu dia de glória, como um valente caçador de
onças.
Sexto capítulo do livro não publicado, “As Aventuras de um Catingueiro.”
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