J. B. Pessoa
Seu
moço, às vezes eu fico encafifado com certas coisas que acontecem a um cristão.
Mãe Luzia e o meu tio avó João Velho, sempre me diziam pra não se ter medo de
alma penada, pois é dos vivos que devemos ter receio. Eu sempre segui esses
conselhos, pois todos nós sabemos que, quem vê cara, não vê coração!
Justamente, por isso, eu sempre andei armado.
Naqueles
velhos tempos, andar armado era um costume do povo. Uma pistola na cintura
fazia parte da moda nos sertões de antigamente. Nos dias festivos, os mais
ricos vestiam seus melhores ternos, não se esquecendo de por na cintura, o seu
cinturão de balas e revólver do lado. Alguns ainda colocavam um bonito punhal
de prata à vista, entre a calça e a camisa. Os mais pobres, também, vestiam
seus ternos, e não dispensavam suas pistolas e punhais. O negócio é que a
moçada não se sentia bem vestida, sem suas armas à mostra. Naquela época, um
homem respeitava o outro e os bandidos não tinham vez. De repente tudo mudou.
Veio e Revolução de 1930 e, com ela, o desarmamento geral da população
sertaneja. Era a civilização que estava chegando ao Sertão. Depois da chamada
“desarma”, o povo foi se acostumando com as novas leis. Não se podiam andar com
armas as vistas nas cidades. Entretanto eram permitidas em viagens a cavalo,
tropas de burros ou boiadas.
Seu
moço, meus amigos aqui presente nessa noite de prosas, eu estou dizendo tudo
isso, porque o Seu Manequito me perguntou, se eu tinha coragem de matar um
homem. Eu respondo com uma frase, muito conhecida no Sertão. “Sou incapaz de
matar uma mosca, mas sou capaz de matar um homem”! Contudo, peço a ajuda de
Deus, para que isso nunca aconteça. Porém, se for preciso, peço pra Ele me
ajudar a não me amofinar. Porque é feio um homem correr com uma arma na mão!
Eu vou
contar para os amigos, um caso que sucedeu comigo, quando eu tinha apenas
dezesseis anos. Foi no ano anterior à revolução getulista. Como essa noite o
frio está de doer, vou coar um cafezinho para a gente prosear melhor. Por falar
em frio, já estão botando a culpa disso, nos militares que acabaram de tomar o
poder! Vê se pode?!...
Seu
moço, meu compadre!... Tem gente que é tão ruim, que não merece viver! A gente
vive fugindo do “Coisa Ruim” , mas parece que ele sempre nos alcança. Pois bem:
Certa vez, eu fui numa festa em um lugarejo, perto de Caetité. Era o casamento
de uma moça da região, com um primo da minha madrasta. Foi uma bonita festa de
fidalgos, que duraram três dias. Começou numa sexta-feira pela manhã e só
terminou no domingo à noite. O pai da noiva não economizou dinheiro, para as
bodas de sua filha. Abateu um boi, cinco carneiros, quatro leitoas e quinze
capões, para receber os convidados daquela festança. Não faltaram bebidas! Da
cachaça ao vermute, passando pelo vinho e o conhaque e, também, muitas
cervejas. E não eram geladas, não!... Os catingueiros tomaram as cervejas
naturais, pois não havia energia elétrica no
arraial,
onde aconteceu a festa. Aliás, naquela época, gelo era um produto de luxo, que
só existia nas grandes cidades.
Voltando
ao assunto, que eu estava contando para vocês: eu não fiquei muito tempo na
festa, pois eu tinha muita coisa para cuidar na roça, como também, da minha
venda, a qual era um negócio recente. Na madrugada de sábado , quando eu
preparava a minha volta para casa, fui incumbido pelo meu tio Quincas Pessoa, a
levar uma criança e entregar a seus pais em Iguatemi. Era uma linda menina de
quatro anos, tão bonita que parecia um bibelô. Estava na companhia dos avós, os
quais eram padrinhos de casamento da noiva. A criança nunca havia se separado
da mãe e, naquele momento, estava num calundu danado, querendo voltar para
casa. A menininha gostava muito de mim e aceitou de bom grado a minha
companhia. Estava acostumada comigo, pois era sobrinha da minha madrasta e do
do meu melhor amigo. Depois de muitas recomendações dos avós, eu prometi aos
dois, de tomar muito cuidado e entregar a menina, ainda naquele dia, antes do
entardecer. Eu tinha certeza disso, pois meu cavalo era forte e muito bom de
trote, o qual daria conta do recado.
Acomodei
a criança sentada em um coxim, na parte dianteira da minha sela, devidamente
agasalhada, pois a menina era branquinha como a neve e eu sabia que, depois das
dez horas, o sol iria castigar. Era época de estio e a caatinga estava muito
ressecada. Providenciei duas cabaças de água e cruzei na parte traseira da
sela, prevendo que os caldeirões naturais das rochas, poderiam estar secos.
Depois de tudo pronto, me despedi de todo mundo e segui viagem, na companhia
daquela fofa menininha.
Seu
moço, meus camaradas!... Foi aí que começou o meu drama. Achei melhor pegar um
caminho, fora da rota dos tropeiros. Era um bom atalho, mas tinha o
inconveniente de não haver nenhuma venda nas proximidades. No início da
jornada, a menina estava muito alegre e falava bastante. Perguntou pela minha
harmônica e começou a cantar umas modinhas, que eu havia lhe ensinado e,
juntos, seguimos a viagem cantarolando bastante. Seu moço! Meus amigos
pasmem!... De repente, quando eu seguia por uma área rochosa, uma jararaca
cruzou na minha frente! O meu alazão empinou e quase me joga ao chão. No
momento segurei a criança com uma mão e com a outra tratei de domar o cavalo
assustado. A danada da cobra só fez umas estripulias na minha frente e
desapareceu no mato. Com o cavalo mais calmo, eu segui uns metros à frente,
para depois verificar que as cabaças d’água, haviam caído da sela e se
espatifados naquele chão duro, perdendo quase todo o seu liquido. Fazer o quê?!
Pensei naquele momento. Era quase meio dia, pois o sol estava a pino! A criança
choramingava nervosa, atemorizada com o acontecido. Apeei do cavalo e tratei de
acalmar a menina. A minha sorte foi que, em uma das cabaças quebradas, sobrou
um pouco de água, quase um copo, que eu dei todinho para a menininha. Logo
depois, retornamos a viagem sob um sol causticante. Às duas horas da tarde, a
criança começou a sentir sede, me pedindo água. Expliquei para ela o sucedido,
prometendo que em breve a gente teria água, quando encontrasse
uma
casa, ou numa venda qualquer. Dizem os mais velhos, que no Sertão, todos os
caminhos levam a uma venda! Qual o quê?!... Não naquele maldito caminho! Foi aí
então que percebi, porque os tropeiros, que iam de Caetité a Livramento
evitavam aquele caminho. Eu mesmo só tinha percorrido aquela trilha uma vez e,
mesmo assim, sob outras circunstâncias. A menina chorava baixinho, dizendo a
todo o momento: “Manoel eu estou com sede!” Aquele choro sofrido partia meu
coração e doía em minha alma. Ela clamava a todo o momento, pedindo água.
Comecei a ficar preocupado e lamentar a minha escolha. Seu moço!... Eu, que já
era um “cabra” calejado pela caatinga, sofria com a sede; imagine aquela
inocente criança! Mesmo assim, com o coração amargurado, segui em frente,
tentando consolar a menina. Eram quase cinco horas da tarde, quando avistei uma
casa fora do caminho, um pouco distante. Esporeei o meu cavalo, forçando um
galope apressado, tentando chegar depressa àquela propriedade. Era uma casa
toda caiada de branco, com uma porta no meio de quatro janelas. Na calçada da
casa, que ficava contra o sol, estava sentado numa cadeira de balanço, um
sujeito branco, de cabelos e barbas grisalhas, que andava pela casa dos
quarenta anos. Tinha entre as pernas um Winchester Papo Amarelo e mostrava uma
cara de poucos amigos. Cumprimentei o homem e quando ia apear do meu cavalo, o
sujeito contestou zangado: “Não lhe convidei à minha casa e, portanto, não
apeie do seu cavalo!” Olhei para ele, e reconhecendo o homem, me lembrei de
que, aquele sujeito era conhecido e famoso na região como um “cabra” ruim, que
não gostava de ninguém! Muita gente dizia que o sujeito era um perigoso
pistoleiro, com muitas mortes nas costas. Fiquei com receio, mas mesmo assim,
apeei do meu cavalo, com a menina nos braços e lhe contei a minha história.
Seu
moço, meu compadre, meus amigos aqui presentes nessa noite de frio, o que vou
contar pra vocês parece mentira, mas não é! O sujeito, com a cara mais
desavergonhada que já vi na vida, me disse que na casa dele não tinha água; e
disse isso, no mesmo momento em que apareceu a mulher dele, uma gorda, sorrindo
com os seus dentes podres, a qual parecia mais tola do que má, trazendo um copo
de água, que deu ao sujeito para beber. Nesse momento a menina começou a chorar
pedindo água. Eu disse para o sujeito que pagaria pelo copo de água. Ele então
me disse que não tinha água para vender! Eu lhe disse que pagaria pelo copo de
água, todo o dinheiro que trazia comigo que era vinte mil reis! O sujeito
alisou o seu rifle em sinal de ameaça e eu, coloquei a criança, ainda
choramingando, para sentar em sua calçada. O sujeito protestou, dizendo que não
queria estranhos sentados na calçada dele! Seu moço; nesse momento, os meus
culhões começaram a doer de raiva e, quando isso acontece, eu encaro qualquer
filho da égua! Eu peguei os vinte mil reis, que naquele tempo era um dinheirão
para uma boa farra e entreguei para ele, que recusou de imediato. Perguntei
para o sacana, se ele não tinha pena da criancinha sedenta e ele me respondeu
com deboche: “Quem tem pena é galinha”! Seu moço!... Companheiros aqui
presentes!... Quando ouvi aquilo, xinguei o cara de pirobo e joguei na cara
dele os vinte mil reis! Ele olhou para mim com raiva e
rapidamente
engatilhou o rifle! Não pensei duas vezes e lhe dei um pontapé no peito, no
momento em que ele apertava o gatilho. Seu moço!... Uma bala calibre 45 passou
raspando a minha orelha, me deixando com o diabo no corpo! O sujeito caiu no
terreiro, com cadeira e tudo e, quando ele se levantou, tentando engatilhar o
rifle pela segunda vez, eu lhe dei um violento murro na banda da cara, fazendo
o sacana comer terra pela segunda vez. Nesse momento saquei a minha pistola de
dois canos e enfiei no goela do filho da puta! A menina chorava espantada e a
mulher do sujeito gritava assombrada, clamando com medo: “Pelo amor de Deus,
não mata o meu marido!” Seu moço!... Eu engatilhei a pistola e por pouco não
apertei o gatilho! O meu Bom Jesus da Lapa segurou o meu dedo naquele momento!
Respirei forte e ordenei a mulher, que ela desse um copo com água para a menina
beber. Ela foi até o pote e trouxe uma caneca cheia e deu à criança, para
saciar a sua sede. Enquanto bebia a água, a menina me olhava, curiosa com
aqueles acontecimentos. Perguntei se ela estava bem, e se queria mais água. Ela
balançou a cabeça afirmativamente. Então tirei o cano da minha pistola da boca
do sujeito e peguei o seu rifle, mandando o sacana por as mãos na cabeça.
Naquele momento, ele já não me olhava com arrogância e notei que estava com
medo. Pedi à mulher que trouxesse uma caneca também para mim. Bebi bastante e a
menina também! Peguei o meu dinheiro e coloquei nas minhas algibeiras e, a
seguir, montei no meu cavalo, com a menina nos braços, colocando-a no coxim.
Peguei o rifle e, colocando em meu ombro, disse para o sujeito: “Eu vou levar a
sua arma e entregar ao delegado Adolfo Pessoa, em Iguatemi”! A mulher me olhou
serena, enquanto o sujeito ficou com os olhos baixos, evitando me encarar.
Esporei o meu cavalo e parti dali com a alma lavada.
Seu
moço!... Enquanto eu galopava, relembrava os acontecimentos. Por pouco eu não
levava uma morte nas costas e aquilo não me incomodava! Foi a primeira vez na
vida que vi “a cobra fumar”! Eu estava satisfeito porque a menina estava tão
tranquila, que começou a cantarolar. Enquanto eu cavalgava, comecei a cantar,
junto a ela, umas modinhas de cantiga de roda e, antes do por do sol, eu
entravava em Iguatemi.
Levei
a criança até a sua casa e a entreguei aos seus pais, os quais me agradeceram
os cuidados que tive com a menina. Logo depois, fui até a delegacia, relatar ao
meu pai os acontecimentos. Ele estava na companhia de João Velho, que atento,
ouviu ao meu relato. Meu pai ficou bastante indignado com o absurdo do
sucedido. Estava decidido a ir tomar satisfações com o sujeito, quando João
Velho lhe disse, tranquilamente: “Deixa comigo Adolfo, pois conheço o sujeito!
Amanhã vou entregar para ele o seu rifle e lhe dar um bom conselho”. Meu pai
acatou a decisão do velho amigo, pois sabia do seu poder de persuasão. Dito
isso, me despedi dos dois, pedindo suas bênçãos e fui para minha venda, cuidar
das minhas coisas.
Seu
moço, meus camaradas!... Se vocês me perguntarem que conselho João Velho deu ao
impertinente, eu não saberia dizer! Só sei que o sujeito desapareceu da região
e ninguém nunca mais o viu. Dizem que foi com a mulher
para
São Paulo, depois de vender a sua propriedade. Fiquei um pouco preocupado com
uma possível vingança do sujeito, mas João Velho me garantiu que ele tinha ido
embora!
Pois é
meus amigos! Acredito que agora respondi a pergunta de Seu Manequito. Tudo
depende da hora e ocasião! Ou seja: “Mexeu com o homem errado, na hora errada!”
Eu tenho certeza que, se não fosse pela criança, eu teria ido embora, sem
reagir. Afinal, nunca fui de brigas!
É isso
aí, Agora vou coar um cafezinho, pois Seu Manequito tem um caso parecido, que
sucedeu com ele, quando tinha doze anos.
Oitavo capítulo do livro não publicado: “As Aventuras de Um Catingueiro”.
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