quinta-feira, 4 de novembro de 2021

O Caso do Algodão de Seda.

                                                                  J. B. Pessoa

(Primeiro capítulo do livro não publicado “As Aventuras de Um Catingueiro”. de J. B. Pessoa.)

Seu moço se achegue e pegue esse tamborete e se assente com a gente. A chocolateira já está fervendo e um cafezinho quente, torrado e pilado por este proseador que é amigo de vocês, já está saindo. O frio desse ano está de matar e nem parece que estamos na terra do sol. Tal acontecimento não é muito comum por estas bandas e, se não me falha a memória, foi numa noite fria como essa, que sucedeu o caso que vou lhes contar, pedindo aos santos de Nosso Senhor que a minha narrativa seja bem próxima da verdade, já que nos, proseadores, temos a mania de enfeitar o sucedido dando uma conotação mais atraente à estória.

Alguns anos atrás, eu morava na vila de Iguatemi, distrito do município de Livramento do Brumado. Eu tinha uma venda que vendia de tudo!... De cachaça a carne de sol e de seda a casimira! Era uma venda muito surtida e eu tinha muitos fregueses, sendo que, às vezes, eu fornecia mercadorias a alguns pequenos comerciantes daquelas cercanias. Aliás, ao bem da verdade, eu era um verdadeiro mascate. Muita gente me pedia artigos dos mais diversos e eu mandava vir tudo da Bahia. Sendo possuidor de uma pequena tropa, eu recebia as mercadorias na Estação Ferroviária de Jequié e com a ajuda de meu compadre Zezinho Matos, tropeiro de primeira linha, e de alguns afilhados dele, a gente trazia tudo no lombo dos burros! A Cidade Sol, como hoje é chamada esta encantadora cidade, que me acolheu de braços abertos, era conhecida como o “Porto da Terra”, pois, por aqui chegavam tropas de toda a redondeza, até do norte de Minas Gerais para pegar mercadorias na Estação de Ferro de Jequié. A gente vinha de Iguatemi por uma trilha de boiadas e tropas, que passava na cidade de Brumado, depois em Suçuarana, seguindo pelas terras de Ituaçu, chegando a Contendas do Sincorá. De lá, a gente ia até Pé de Serra, subindo e descendo morros até chegar a Jequié. Naquela época não tinha ainda sido construída a estrada de rodagem, que a gente conhece como BR-116

Eu me recordo bem, como se fosse ontem, da primeira vez que estive nesta praça!... Vim com meu tio Abílio Pessoa, que era comerciante aqui. Seu moço, eu nunca tinha visto na minha vida, tanta moça bonita! Eu era um rapaz de dezessete anos, nascido e criado na roça; tabaréu mesmo! Mas era um moço formoso e tinha instrução. Algumas daquelas lindezas fizeram olho de flerte comigo, me deixando escabreado. Fiz algumas amizades, pois era bom sanfoneiro! Mas, besta como era, não cheguei a namorar nenhuma moça, naquele tempo. Pois bem: conversando sobre idas e vindas a Jequié, vamos ao caso que eu quero contar: Um dia chega ao meu estabelecimento o coronel Salustiano de Souza Freire que me disse o seguinte: “Manuel, meu filho! Eu queria que você me encomendasse lá em Jequié, na firma de Seu Vicente Grillo, uma caixa de um vinho fino, chamado champanhe. Depois você traz pra mim e a gente acerta as contas”. O coronel Salu, como era assim tratado, estava casando uma afilhada de sua mulher, dona Rosa Lizzarda Rizzerio, que, segundo as “más línguas”, era filha ilegítima dele. A moça estava noiva do filho de uns

fidalgos de Caetité e Dona Rosa queria fazer boa figura, para aquela gente de boa estampa, que era tão rica, que não sabia o que possuía.

No dia seguinte, mandei chamar meu compadre, ajeitamos a tropa e rumamos pra aqui. A gente já tava de viagem marcada, pois a tropa ia levar um carregamento de rapadura e couro de bode e na volta agente ia trazer umas arrobas de bacalhau e outras mercadorias pra minha venda. Chegando aqui, tratei de ver essa tal de champanhe! Ajeitei meus negócios e voltamos pra Iguatemi. Na viagem de volta encontramos o meu tio Abílio, que ia levando um carregamento de tecidos para a vila de Curralinho, hoje uma cidade chamada de Dom Basílio. A gente veio alegre, proseando a viagem toda! Chegando a Iguatemi descarregamos a tropa e colocamos os burros e mulas numa manga que eu tinha perto da vila. Como era ainda cedo, estava em bom sol, achei que deveria levar a encomenda do coronel Salu, naquela tarde, mesmo! Na verdade eu estava com o corpo todo moído, pois a canseira da jornada era por demais doídas! Mas, como eu não sou homem de deixar pra amanhã, o que posso fazer hoje, tomei em tino o meu intento! Areei o meu cavalo e coloquei a encomenda do coronel em cima de um jegue bom de cangalha! Tomei um bom banho e vesti um terno domingueiro! Montei em meu cavalo e puxando o jegue pela mão direita, rumei pra fazenda do coronel que ficava a quatro léguas de distância.

O sol estava se escondendo por entre os morros, quando passei pela porteira da fazenda. O coronel me recebeu com festas e disse com alegria: “Manuel, meu filho! Você é mesmo um “cabra aretado”! Não esperava que você viesse tão cedo!” Então eu disse para o coronel: “Quando o senhor fez a encomenda, eu já estava com a tropa pronta! Fiquei pouco tempo em Jequié, chegando hoje pelas duas horas da tarde! Como estava com saudades do meu grande amigo, fiz questão de vir hoje mesmo!” O coronel me deu um forte abraço e mandou a negra Filomena, cozinheira de mão cheia, preparar um ensopado de galinha e me convidou para a janta.

O coronel Salustiano de Souza Freire era português de nascimento e tinha mais ou menos uns oitenta anos. Ele era casado com uma italiana chamada Maria Rosa Lizarda Rizzerio. Tinha vários filhos, netos e bisnetos! Em sua casa se falava uma mistura do português de Portugal com a língua italiana. Um dia eu vi uma neta sua, ralhar com um moleque, assim: “Sai do sole bambino que está pio quente e coloque teu pião nas algibeiras!” Um dos netos do coronel, era meu melhor amigo. Era um vistoso rapaz de pele rosada, cabelos louros sedosos e de olhos azuis, que tinha o apelido de “Nêgo”! Pois bem: Voltando ao assunto da minha visita, o coronel me convidou para as bodas e disse que fazia muito gosto do casório da afilhada de Dona Rosa! Depois da janta, ficamos conversando na varanda, me fez mais encomendas de tecidos que eu tinha na venda, pois queria ver todos da família muito lordes na festa!

Eram, mais ou menos, umas nove horas da noite, quando deixei a casa do coronel. Apesar de sua gentileza me pedindo para pernoitar em sua fazenda, eu fiz questão de ir embora, pois tinha muita coisa pra fazer no dia seguinte. Meus camaradas: o que vou contar aqui pra vocês parece mentira!... Não vou jurar que é verdade, porque um homem de brio não jura! Quem não acreditar que fique calado! Pois em boca fechada não entra mosca!

Deixei o jegue na fazenda do coronel, pois ele voltaria no dia seguinte com um dos moleques de casa, carregado de milho. Era mês de julho e noite de lua cheia. Caía um sereno frio que deixava o luar cinzento. Fui trotando no meu alazão mais depressa do que o costume, pois o frio estava de lascar. Eu já estava perto de Várzea D’ água, um

povoado a pouca distância de Iguatemi, quando passei pelo velho cemitério abandonado! Foi aí que me lembrei do boato que corria na época! Um lobisomem aparecia toda noite de lua cheia!... Não sou um homem valente, porém mofino, não sou; e também, na verdade, nunca tive medo de assombração. Se tiver de ter medo, eu tenho dos vivos, pois esses é que não prestam e os mortos estão na companhia do Criador. Sou católico e nunca acreditei em lobisomem ou alma penada. Ajeitei o meu “trinta e oito” na cintura, depois de verificar se o tambor estava carregado! Esporeei meu cavalo forçando um curto galope, olhando para os quatro cantos pra ver se aparecia alguma coisa! Meus amigos, eu não vi nada; nadinha mesmo! Continuei no trote normal, já mais calmo e aliviado. Quando eu passava por uma capoeira, já perto de Iguatemi, o cavalo refugou!... Nisso vi uma moça formosa, toda de branco que acenava para mim! Apeei do cavalo, que estava muito nervoso e amarrei em um pé de pau. Alisei meu revólver, pois, “Seguro morreu de velho” e fui ao encontro daquela moça, que foi a mais bonita que eu já vi! Quando cheguei perto e perguntei se eu podia ajudar em alguma coisa, ela desapareceu! E em seu lugar apareceu um pé de algodão de seda!... Tirei o chapéu pra coçar a cabeça e verifiquei que meus cabelos estavam arrepiados! Voltei para o meu cavalo e, quando olhei para trás, lá estava a moça de novo! O cavalo refugou novamente e quis empinar!... Voltei novamente e a moça se transformou no pé de algodão de seda! Por três vezes o fato aconteceu! Seu moço: não vou lhe dizer que não tive medo, pois tive! Montei em meu cavalo e tratei de dar o fora dali. Quando estava um pouco distante, eu virei e olhei de novo; vi a moça que já não acenava, e sim estendia seus braços para mim, com um olhar suplicante!... Em nenhum momento, eu ouvi a moça dizer nada! Só olhava para mim com as mãos estendidas. Esporeei o meu cavalo, saindo dali em disparada e só parei, quando cheguei à vila. Desarreei o cavalo e o coloquei na manga. Entrando em casa, eu notei que meu cabelo, ainda estava todo arrepiado!... Não preguei os olhos, à noite inteira! Pela manhã, a negra Dolores, minha mãe de leite, foi até a venda e me disse: “Aconteceu alguma coisa com você, meu filho?” Eu disse que não, que tinha viajado a noite inteira. Ela então me disse: “Teu cavalo viu coisa do outro mundo, meu filho! Alma penada!” Não falei nada, pois não queria ser motivo de chacota de ninguém. Durante muito tempo, eu guardei isso pra mim mesmo! Só estou contando isso pra vocês agora, porque numa noite fria como essa, uma boa prosa não faz mal a ninguém! Não estou afirmando, que vi uma visagem. Minha sobrinha Eva Marli, que é uma moça muito inteligente e estudiosa, me disse que o acontecido era produto da minha imaginação, devido o meu cansaço na labuta. Pelo sim ou pelo não, “Macaco velho não põe a mão em cumbuca”. Agora vamos tomar um cafezinho com cuscuz, que seu Manequito vai contar pra gente, como ele montou e domou uma mula sem cabeça.

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