J. B. Pessoa
Eu nunca vi nenhuma dessas
coisas, que dizem existir nas matas e caatingas desses sertões do Nosso Senhor
Jesus Cristo. Se dissesse que vi, estaria mentindo. Porém, como muita gente boa
disse que já viu, e o compadre Zé do Barulho afirmou que ele botou pra correr o
danado do caipora que lhe desrespeitou, eu acredito. Na verdade, sempre tive
medo de me embrenhar nas matas fechadas, principalmente as mais distantes, onde
vivem a suçuarana, o caititu e a temível onça pintada. Além disso, sou um
modesto caçador, apesar de ser excelente atirador. Quando eu me atrevia a
entrar em matas inóspitas, era na companhia do meu compadre João Golino, o qual
era o maior caçador que conheci, até os dias de hoje. De resto, só pelas
redondezas; umas codornas aqui, algumas perdizes ali; bastantes mocós e preás e
nada mais do que isso. Aliás, deixei de caçar quando fui alertado pelo padre
Climério Andrade que, o único animal que mata pelo prazer de matar é o homem!
Além disso, nos dias de hoje, existe muito caçador para pouca caça, o que torna
a prática dessa distração uma coisa muito perigosa.
Por falar em perigo, algum
tempo atrás quando eu vivia em Iguatemi, conheci um cidadão de Feira de
Santana, chamado João Durval da Silva Quadros. Era advogado e tinha sido
vereador em sua terra. Ele apareceu em nossa vila, querendo caçar “onça braba”
e estava à procura do famoso João Golino. Era um rapaz alto, moreno, elegante e
jeito de fidalgo, o qual aparentava uns vinte e cinco anos de idade. Vestia um
terno de linho branco e usava um chapéu estranho, desses que a gente vê nos
filmes de selva africana. Era tirado a bonito, pois olhava para as moças com
trejeitos dos galãs de filmes românticos, e falava com voz adocicada dos atores
de rádio-novela. Pediu a uma delas que lhe indicasse o melhor hotel da “cidade”
e ficou hospedado na pensão do meu tio Quincas Pessoa, a única existente na
vila.
O doutor Durval, como gostava
de ser chamado, foi apresentado ao pessoal do lugar, pelo meu tio Abílio
Pessoa, como um grande caçador. Depois do jantar, ele compareceu à minha venda,
na companhia de Golino e Quincas. Ficamos conversando, juntos a de outros
catingueiros, até altas horas. Em meio dos tragos de uísque, da última garrafa
que eu dispunha, contou pra gente que já tinha caçado na Floresta Amazônica e
nas Savanas Africanas. Enquanto o sujeito dissertava suas aventuras, Golino
desconfiando de sua prosa esnobe e, saboreando a sua destilada, me disse ao pé
do ouvido: “Né, esse aí tem jeito de caçador de araque!... Vai ver que os
bichos que ele pegou saíram da carochinha!” Falei pra Golino, que os animais
africanos que o doutor dizia ter abatido, eram realmente grandes. Ele então
olhou para mim, balançando a cabeça negativamente, e disse com desdém: “Vamos
ver, como ele se sai, aqui na caatinga”.
O doutor era bom de prosa e,
entre mentiras e verdades, fiquei gostando dele. Afinal, como já disse a vocês,
se o pescador não aumentar o tamanho do peixe, a estória fica sem graça. Aqui
mesmo, nesse momento dessa noite fria, tomando um cafezinho quente e pitando
nossos cigarros e tiberos, estamos nos divertindo, contando os nossos “causos”.
Acredite neles quem quiser ou então vai para casa dormir. Voltando ao caso do
doutor Durval, ele foi o primeiro caçador a relatar pra mim, a existências de
bichos, os quais eu viria a conhecer, tempos depois, no cinema aqui em Jequié.
O doutor Durval tirou de uma
caixa comprida de couro, forrada de veludo, o rifle mais bonito que eu já tinha
visto. Aliás, eu só, não! A peãozada que estava proseando na minha venda ficou
abestalhada ao ver uma arma daquele porte. Era um rifle americano de repetição
e de grosso calibre. Olhando para a velha espingarda de Golino e verificando
que era uma arma antiga, das que se carrega pela boca, comentou orgulhoso a
respeito da sua. “Essa é uma arma moderna! Se o caçador errar o tiro, engatilha
outra bala na hora!” Golino sorriu com desprezo e despejando outro gole de
pinga goela abaixo, olhou bem dentro dos olhos do doutor e disse: “Se a onça
deixar, meu camarada!... Se a onça deixar!” Depois fingindo temor, disse em tom
de preocupação: “Se o “cabra” errar o tiro, ela, que é danada de ligeira, não
dá chance ao caçador engatilhar! É um bicho treiteiro e danado de tinhoso, que
não tem medo de nada. Nesse momento, todo mundo ficou calado e ele explicou:
“Todo caçador sabe, que quando está caçando uma pintada, é também uma caça”! A
única vantagem que o cristão leva da fera é quando ele tem um bom cachorro!”
Golino pegou a sua espingarda e, acariciando a arma, mostrou ao doutor e disse:
“Meu avô, que era italiano a trouxe da Itália e eu herdei dele. Só tem um cano
e bem grosso! Carrego com bastante pólvora e coloco como bala um rolimã de aço,
do tamanho de uma bola de gude e vou atrás da comedora de gente!... Aí seu
doutor: sou eu ou ela!”
O doutor ficou pasmo com o
relato de Golino. Com os olhos arregalados tomou mais um trago de uísque e,
disfarçando o seu receio, disse que nunca tinha errado um tiro. Como em toda
conversa de caçadas, aparecem os heróis que já tinham abatido várias onças, o
doutor ficou mais animado. Lá pelas onze horas da noite, quando a gente estava
na maior animação, chega um vaqueiro do povoado de Várzea d’Água, procurando
por Golino. Ele disse, na maior inquietação, que uma onça braba rondava o
lugar, ameaçando os moradores daquela localidade e ele veio pedir ajuda dos
caçadores da redondeza. Golino serviu para o homem uma dose de cachaça e,
olhando para todos, disse sorrindo: “Meu camarada, você esta com sorte!... Aqui
na venda do meu compadre, Manoel Pessoa, estão reunidos os maiores caçadores de
onça da região!” João Golino começou a apresentar para o vaqueiro os fanfarrões
da noite, que logo foram tirando o seu corpo fora! Uns diziam que tinha roça
para cuidar, outros que a mulher estava doente e todos inventaram uma desculpa
qualquer, indo embora, porque já era tarde. O vaqueiro ficou sem entender nada.
Golino serviu ao homem mais uma dose, que ele tomou de um gole só. A seguir,
tomou a sua e, sorrindo, apresentou o doutor ao vaqueiro dizendo: “Este
distinto cavalheiro é o Doutor João Durval da Silva Quadros, que veio para
nossa terra à procura de uma onça bem grande, pra tirar o couro e dar de
presente à noiva dele!” E depois, virando-se para a cara assustada do doutor,
lhe disse olhando nos olhos: “Homem!... Quero ver você, depois me dizer, que já
abateu um bicho mais arretado do que essa onça lá da Várzea D’Água”.
Seu moço!... Meus amigos, aqui
presentes! Olhei para o doutor e não vi nenhuma animação por parte dele. Pensei
comigo mesmo: “Será que esse homem é também um engodo?!” Senti que o “cabra”
estava com medo! Golino olhou para mim e me disse à surdina: “Né, esse aí de
caçador não tem nada! Vamos ver amanhã!”
Tranqüilizamos o vaqueiro que
pernoitou com a gente e marcamos a caçada para a manhã seguinte. Fomos todos
dormir lá pela meia noite, depois de deixar o doutor na pensão. Pela manhã, bem
cedinho, eu e Golino fomos acordar o caçador, que dizia estar sofrendo de uma
enorme enxaqueca, a qual o
deixava de corpo mole. Pedi a
Dona Idalina, cozinheira da pensão, que preparasse um dos seus famosos chás, os
quais levantavam até defuntos, e dei ao doutor para curar a sua dor de cabeça.
O doutor recusou o chá, dizendo que era um homem esclarecido e só tomava
remédio de farmácia. Nesse momento notei que o sujeito estava com medo. O doutor
estava fazendo corpo mole, para não ir atrás da onça. Percebendo a manha do
grã-fino, e querendo caçoar do coitado, Golino disse ao doutor com voz firme:
“Se você quer mesmo um couro de onça, a hora é essa! Vai ter um bocado de
vaqueiros, com seus cachorros, que vão ajudar a gente pegar o bicho!” Golino,
querendo tranquilizar aquele caçador mofino, disse em tom paternal: “O doutor
só vai ter o trabalho de atirar com essa lindeza de arma que carrega consigo; e
o resto a gente faz!” Nesse momento, eu senti uma animação repentina por parte
do doutor, que levantou da cama e disse se desculpando: “Eu não devia ter
bebido tanto, ontem à noite!”
Montamos em nossos cavalos e
rumamos para a Várzea D’Água. O vaqueiro começou a relatar casos de onças e
caçadas da região, nos afirmando que aquela era a maior onça que ele já tinha
visto. Virando-se para o doutor, disse animado: “É do tamanho de um jumento! O
doutor vai possuir uma lindeza de couro de onça!” Chegamos ao povoado às oito
horas e fomos à venda do meu primo Armindo Matos, para encontrar os capiaus do
lugar. Havia muita gente e o reboliço era enorme. Outro vaqueiro, que também
dizia ter visto a onça, jurou pelo “creio em Deus Padre” dizendo que a pintada
era a maior onça que ele já tinha visto na vida. Olhou para a cara assustada do
Doutor João Durval e disse animado: “É maior do que um boi!” Seu moço!... O
doutor João Durval quando ouviu aquilo, engoliu seco e, engasgando, disse que
estava indisposto devido à sua enxaqueca. Golino alertou ao doutor, que a hora
era aquela, e se ele não fosse atrás da onça, o povo do lugar iria alardear que
ele era medroso. O doutor respirou fundo, procurando coragem e depois, numa
curta animação, falou grosso: “É isso aí, pessoal. Vamos atrás da “bicha!”
Golino me chamou e disse: ”Né, pegue o seu cachorro que os meus estão prontos.”
Naquela ocasião, eu tinha um perdigueiro que era chamado de Petí. Nunca conheci
um cachorro mais valente do que aquele. Morreu de velho e até hoje tenho
saudades dele. Golino tinha dois, que não eram “raçados” mas também eram
valentes. Depois de um bom café e uma deliciosa farofa de ovos feita pela negra
Maria, nos despedimos da peãozada, tomando um “rabo de galo” para dar coragem.
O doutor recusou a bebida, pois achava extravagante aquele mistura de vermute
com cachaça, muito aquém do seu refinado gosto e lamentou não ter trazido de
Feira de Santana o seu “scotch”.
O sol estava alto quando nos
despedimos do pessoal da Várzea D’Água e nos embrenhamos pela caatinga adentro,
seguindo o rastro da onça. A cachorrada latia animada e o doutor Durval suava
dentro de um elegante terno de linho branco, usando o chapéu estranho, dizendo
serem trajes típicos dos caçadores que se prezam. Golino olhava o sujeito com
certa antipatia, pois o doutor era daquele tipo urbano, metido à besta, o qual
achava que todo sertanejo era tabaréu. Seguimos numa trilha que ia dar no velho
cemitério, o qual estava abandonado, pois os catingueiros do lugar diziam que
nele, morava um lobisomem. Resolvi caçoar do doutor e disse para Golino: “A
gente precisa voltar antes do escurecer, pois naquele cemitério mora um
lobisomem!”. Golino olhou para mim, piscando o olho e disse fingindo medo:
“Né!... Sei não!... Pelo tamanho que dizem ter a onça, eu desconfio que seja o
danado! E aí, meu amigo, só bala de prata e nós não temos nenhuma!”.
Seu moço!... Meu compadre!...
Meus amigos aqui presentes! Pasmem: O semblante do doutor mudou radicalmente.
De moreno que era, ficou branco de medo! À medida que a gente entrava pela
capoeira, o doutor ia ficando mais nervoso ainda, e se derretia dentro daquele
terno de fidalgos. De repente os cachorros farejaram alguma coisa e começaram a
latir. Nesse momento encontramos um recente rastro de onça, que dava para uma
parte da caatinga, onde a mata era mais rala, devido à existência rochedos e
imensos solos rochosos, cujas fendas acumulavam água, as quais eram denominadas
de caldeirões pelos catingueiros. Golino cochichou comigo, tramando suas
zombarias e, com a minha ajuda, começou a caçoar do doutor: “Né, olha aqui o
volume desse rastro! Pela dimensão da pata se conhece o tamanho da onça! Se o
doutor não estivesse aqui com a sua experiência internacional, eu dava o fora!”
Nesse momento clamei como se estivesse morrendo de medo: “Valei-me meu bom
Jesus da Lapa, que sou muito moço pra morrer!” Seu moço!... O doutor não disse
nada! Calado estava e calado ficou tremendo de medo, com seus olhos
arregalados, olhando para todos os lados, segurando o seu belo rifle em posição
de combate. A essa altura comecei a ficar com pena do sujeito, enquanto o
sorriso de satisfação estava estampado na cara de Golino.
Eram mais ou menos umas quatro
horas da tarde, quando paramos para descansar e tomar um gole d’água. Logo
após, os cachorros ficaram mais agitados, latindo muito alto. Nesse momento
soltamos os três e corremos atrás deles, no rastro da onça. Pouco depois eles
acossaram o felino em cima de uma grande pedra, bem perto da gente. Colocamos
nossas espingardas em punho, ao passo que o doutor João Durval ficou parado,
imóvel como uma estátua. Golino olhou para o sujeito e gritou com vontade,
enquanto a onça permanecia em cima da pedra, prestes a dar seu bote: “A onça tá
aí, vai que ela é sua doutor!” Seu moço, eu não quero nem contar! Pois, até eu,
que estava acostumado a ir a caçadas com meu compadre João Golino, naquele
instante fiquei com medo! Quando a onça deu aquele urro pavoroso e pulou em
cima da gente, Golino atirou com aquele canhão, que ele chama de espingarda,
acertando um grosso rolimã na cabeça da “bicha”, enquanto ela pairava no ar!
Passando o susto, olhei para a
onça que jazia no chão, verificando que a pintada era realmente grande. Nesse
exato momento, enquanto Golino recarregava a sua arma, sentimos um fedor de
latrina suja e olhamos para o doutor, que permanecia imóvel branco como uma
figura de cera. Então notamos que o sujeito tinha se borrado todo!... Cagou nas
calças! A cena foi trágica e cômica ao mesmo tempo. Golino sorriu com
satisfação, enquanto eu fui levar o doutor para tomar um banho num dos
caldeirões daquele lajedo. Golino, que continuava se divertindo com a má sorte
do doutor, gritou para mim: “Né!... Toma cuidado para não sujar a água do
caldeirão! O povo precisa dela!”
Depois de um bom tempo se
banhando e lavando sua roupa sem sabão, o doutor, visivelmente envergonhado, se
recompôs, dizendo com uma voz abatida: “Eu não devia ter bebido tanto, ontem à
noite!” Golino pegou o seu facão e tirou um galho de uma árvore, fazendo dele
um grande bastão. Ele amarrou as patas da onça, uma na outra, introduzindo o
bastão por entre elas e carregamos a finada até a Várzea D’Água. O doutor
Durval ia seguindo a gente, todo cabisbaixo, murmurando: “Eu não devia ter
bebido tanto!”.
O sol estava entrando por entre
os morros, quando chegamos à estrada de rodagens e avistamos um caminhão que
vinha de Livramento e ia pra Brumado. O doutor Durval fez um sinal com a mão e
o motorista parou. Ele acertou a viagem e partiu naquele caminhão, depois de
pagar a Golino o acerto
prometido. Parou em Iguatemi e
pegou as suas coisas na pensão, acertando as suas contas. Despediu-se de Dona
Idalina, dizendo que estava adoentado e disse se desculpando: “Eu não devia ter
bebido tanto, antes de uma caçada como aquela!” E balançando a cabeça,
contrariado, entrou na cabina do caminhão, partindo da caatinga para sempre.
Lá na Várzea D’Água a gozação
foi geral. À tardinha, os capiaus do lugar se reuniram na venda do meu primo
Armindo Matos, para mangar daquele janota metido a galã. Confesso para vocês,
que fiquei com pena do doutor. Como diz um velho ditado: “Quem tem cu, tem
medo” O que aconteceu com ele, poderia ter acontecido com qualquer um. Foi puro
azar. Eu mesmo quase defeco nas calças, naquela aventura do Fantasma Lenhador,
em São Paulo. O doutor Durval era um bom sujeito; um tanto esnobe, mas era bom
de prosa. Apenas mentia mais do que outros prosadores. Quando alguém se
lembrava do caso, tempos depois, se referia a ele pelo apelido de “João
Caganeira”. Dizem que hoje, ele é uma pessoa muito importante na sociedade
soteropolitana.
Pois é, meus amigos!... Como
diz a sabedoria popular: “Com boi brabo, onça pintada e mulher fuxiquenta, só
se metem quem quer encrenca!” Agora vamos tomar um cafezinho quente e pitar um
gostoso cigarro de palha, feito com o fumo que Seu Fulô trouxe Brotas de Macaúbas
e ouvir do meu compadre Manequito, contar mais um caso de onças.
Quinto capítulo do livro não
publicado, “As Aventuras de um Catingueiro”.
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