sábado, 14 de agosto de 2021

O Enrolado.

                                                   João B. Pessoa

Ninguém nunca soube de onde ele tinha vindo e nem mesmo quem era aquele sujeito de ar misterioso e de idade indefinida, apesar de aparentemente jovem. Era um individuo magro, de tez morena, altura mediana, cabelos lisos, feições regulares e bom porte. Surgiu entre a rapaziada numa festa de São João, elegantemente vestido com um terno de linho branco, usando um chapéu panamá e sapatos de luxo. Não demorou muito e foi logo se enturmando com os jovens da elite jequieense. Era bem falante e extrovertido. Embora demonstrasse pouca cultura, estava sempre ciente dos assuntos do dia. Apresentou-se à moçada local como caixeiro viajante e ficou hospedado em uma elegante pensão, onde moravam estudantes colegiais, filhos dos fazendeiros da região. Ficou sabendo por um malandro local, que Jequié era a cidade ideal para um desafortunado da vida se arrumar em um bom casamento. Necessitava, apenas, andar com as pessoas certas e nas horas corretas.

Certa noite, ele foi convidado a um famoso caruru, no qual compareciam as melhores famílias da cidade. Vestiu o seu melhor terno e, na companhia dos amigos, para lá se dirigiu. Chegando a festa, cumprimentou os conhecidos e examinou as moças casadoiras do local, não se interessando por nenhuma. Embora algumas fossem ricas, a maioria era remediada e nenhuma delas possuía a beleza especial que ele apreciava. Na verdade, o sujeito estava admirado com sua própria atitude, pois não ele não costumava rejeitar ninguém De repente, como se um raio o tivesse atingido, o seu olhar foi de encontro com a menina mais bonita que ele tinha visto em toda sua vida. Era uma belíssima garota de dezesseis anos, de pele alva e tez rosada. Tinha os cabelos castanhos, quase louros e belos olhos azuis. A moça era filha de um famigerado coronel da região do cacau, o qual, a sua fama de rico só era superada pela a da sua ignorância. O malandro se apresentou à garota, tecendo-lhe mil elogios, procurando valorar a si mesmo de maneira muito sutil. A menina se encantou com o sujeito, pois sua lábia era de primeira qualidade. Ficou na companhia dela a noite inteira, dançando de rosto colado, ao som de uma vitrola, que tocava as canções românticas de uma estreante cantora chamada Ângela Maria. Sua exótica figura chamou a atenção do coronel que logo procurou saber quem era aquele cidadão que dançava com sua única filha Para isso chamou Justino, seu capanga, homem de sua inteira confiança. Justino era um jovem mulato, atarracado, mais ignorante do que o patrão, o qual só tinha medo de uma coisa: Alma doutro mundo.

- Justino meu filho, procure saber quem é aquele cavalheiro moreno que está dançando com Nininha!

Justino olhou para o coronel espantado com sua polidez e tratou de averiguar quem era, de fato, aquele candidato a defunto. Voltando a seguir depois de alguns minutos, disse secamente:

- Ninguém, meu coroné!

O coronel cofiou a barba, resmungou alguma coisa e disse para seu capanga:

- Deixe estar! Deixe estar!

Depois de terminar a festa, o sujeito voltou com seus amigos, vangloriando de sua conquista, sendo alertado por todos do perigo que ele estava correndo. Começou a namorar a moça, escondido, pois não era nenhum otário para botar a cabeça na boca do leão, como alardeava aos seus camaradas. Nas festas do fim de ano os encontros tornaram-se mais freqüentes e menos furtivos; havendo várias desculpas para a menina sair com mais freqüência, pois do natal até o dia de reis, o terno das pastorinhas, do qual a menina fazia parte, saia todas as noites. O malandro conseguiu a cumplicidade da velha tia solteirona, que achou romântico o amor proibido dos dois. Num desses encontros, o malandro burlou a vigilância da velha e o inevitável aconteceu.

Terminando as “boas festas”, o coronel voltou para sua fazenda, que ficava no município de Ipiaú, levando consigo sua preciosa filha. O sujeito ficou na cidade. Sentindo que a sorte iria lhe favorecer, esperava pacientemente, o desfecho dos acontecimentos. Meses depois, num belo dia, foi abordado por Justino, que enfiou o cano de um “trinta e oito” em suas costelas e o meteu dentro de um Hudson, gritando para o motorista:

- Ruma pra Rio Novo!

O sujeito entrou no carro, cumprimentou o motorista e sorriu para o capanga, que parecia mais enfezado do que um cão louco. Acendeu um cigarro e a viagem seguiu adiante. Chegando à fazenda, o malandro encontrou o pai da moça bufando de raiva. O coronel não conseguia entender, como a sua filha, menina de tão fino trato, pudesse estar envolvida com um tipo daquele. Descendo do carro o sujeito foi levado a um galpão onde era estocado o cacau que seria levado à venda. O capanga jogou-o ao chão e com uma peixeira em seu pescoço o obrigou a ajoelhar e a encarar o coronel, que berrou em seguida:

- Então seu “cabra safado”! Fio duma égua! Como é que um bosta como tu se atreve a tirar de casa uma filha minha e deixar ela prenha?

- Deixa eu capar ele meu Coroné e dar as bolas dele prós cachorros!

- Não! – Bradou o coronel e em seguida explicou:

- Nininha deu a ele porque quis! Não foi obrigada a nada! Afinal de contas homem não se capa!... Mata-se!

O capanga ficou calado, pois o coronel tinha seu senso peculiar de justiça e Justino acatava-o de todas as maneiras. Diziam as más línguas que ele era filho do coronel com uma mulata cozinheira da fazenda. O capanga sabia disso e, portanto, no seu parecer, a menina deflorada e embuchada era sua irmã e, irmã de homem não se bole!

Os dois se preparavam para dar cabo do sujeito, quando ele tirou de dentro da camisa, atado a seu pescoço, um amuleto, beijando-o em seguida, disse para o coronel:

- Eu sei que estou errado Coronel! Eu em seu lugar faria a mesma coisa! Não tem perdão! As coisas acontecem quando têm que acontecer! Eu sei que vou morrer! Vou deixar um filho... Neto seu! – Esboçando uma furtiva lágrima ele apelou ao coronel:

- Eu queria lhe fazer um último pedido! Me deixa casar com Nininha. Assim meu filho não seria um bastardo e a sua filha, a quem tanto amo, não seria mãe solteira! Logo depois do casamento o senhor acaba comigo e eu parto dessa em paz, deixando Nininha na condição de viúva.

O coronel pensou por alguns segundos e, olhando para Justino, disse calmamente:

- Correto, muito correto.

O coronel fez o casamento em sua fazenda com uma bela festa, tendo como convidados às famílias mais distintas de Jequié e Ipiaú. A noiva, apesar de seu estado interessante, estava vestida de branco e o sujeito esnobando um elegante terno de casimira, sendo admirado e invejado por todos os malandros das duas cidades.

Dois meses após o casamento, ainda em plena lua de mel, o sujeito, vivendo na melhor das mordomias, foi novamente seqüestrado pelo capanga, que desta vez o levou para o meio da mata, onde o coronel o esperava de arma na mão.

- Então seu cabra!... Preparado pra morrer?

- Preparado ninguém está coronel! Mas trato é trato! Se esta é minha hora, só Deus sabe! Contudo, eu lhe queria lhe fazer mais um pedido: Deixe o menino nascer, pra ele conhecer o pai! Depois disso, o senhor pode acabar comigo!

O coronel olhou para o sujeito de baixo para cima e com a raiva contida acabou concordando.

O tempo foi passando calmamente e a criança nasceu. Era a cara do coronel. Lourinho, mas sem os seus olhos azuis. Três meses após o nascimento, o coronel já queria acertar as velhas contas com o sujeito, que vinha com os argumentos de sempre, sendo que desta vez pediu para que sua hora fosse depois do batizado. O coronel mais uma vez retrocedeu, enquanto Justino implorava!

- Deixa eu sangrá ele meu coroné!.

- Deixe estar que a hora dele vai chegar meu filho! Vingança é uma fruta que, quanto mais madura, doce é!

Veio o batizado, festa cheia de pompas, sendo o padrinho um deputado federal. Mas uma vez, as sociedades jequieenses e ipiauenses reunidas, pois a família da falecida senhora do coronel era de Jequié. O sujeito, cada dia mais invejado, cantava de galo a todo o momento. Quando chegava à hora da verdade, ele inventava outra desculpa: Ora era esperar o menino andar, ora era a sua dentição e até a primeira comunhão! O coronel esperava pacientemente.

O sujeito torrava o seu dinheiro com roupas, bebidas e mulheres, e o coronel paciente. Sua casa se transformou num clube noturno, tal era o número de festas que o sujeito dava todas as semanas, sempre apoiadas por Nininha. O pior de tudo era o mau gosto do sujeito por tudo, principalmente por músicas, até que um dia, já muito tempo depois, o sujeito apareceu com um disco de um ritmo novo, denominado rock n’roll, que ele odiava tanto quanto o nefasto genro. O coronel atônito, não podia compreender como uma garota tão jovem e tão bonita como sua filha podia gostar dum sujeito reles daqueles.

O tempo continuava a passar e o coronel se agastando, com o sujeito sempre lhe enrolando. “Deixe que um dia te pego, sacana” pensava ele a todo o momento; até que um dia, num bate papo de mesa de bar, ele soube por alguém, que o sujeito era dotado de uma “estrovenga” sem precedentes na região. O coronel subiu pelas paredes: “a sua Nininha com um jegue daqueles”! Pensava ele a todo o momento. Vivendo sempre contrariado na espera da hora certa, sua saúde foi ficando debilitada, pois a raiva contida o deixava doente. Ninguém sabia, a não ser Justino, do ódio que ele sentia pelo genro. Em sociedade, a afabilidade era total; o coronel

dava sempre a impressão de uma grande amizade com o malandro. Sua aversão aumentava na medida em que, sua saúde diminuía, e no momento em que ele soube, que sua filha estava novamente grávida, a novidade caiu com uma bomba em seu velho coração e ele gritou com todos os seus pulmões:

- Porra, porra, porra! – Caindo, em seguida, enfartado ao chão!

O coronel foi imediatamente hospitalizado. No momento em que soube que o seu sogro estava moribundo, o sujeito correu até o hospital, contente com a novidade. Quando chegou ao recinto, ele encontrou vários parentes e amigos, solidários com aquele infortúnio. Quando soube que o coronel tinha poucas horas de vida, foi logo pensando na herança. Momentos depois, a enfermeira veio a seu encontro e lhe informou que o coronel queria conversar consigo:

- Viu?!... Suas últimas palavras são para o querido genro! – Comentou a velha tia solteirona. Entrando no quarto, deparou com o sogro moribundo, que o encarou com um sádico sorriso, falando com os dentes cerrados:

- Sabe?... Filho de uma puta!... Cagado!... Cocô do diabo! A tua cama tá arrumada. Tu não tens como fugir! Justino vai tirar teu couro, filho da égua!...

– Sabe? – Interrompeu calmamente o sujeito:

– O senhor vai morrer coronel, vai partir desta pra melhor! Eu tenho sido nos últimos tempos, o prego do seu sapato! O senhor nunca foi com a minha cara. Portanto, eu acompanho a sua alma pelo resto da eternidade, caso morra ao seu mando. Pense muito bem nisso!

O coronel arregalou os olhos em estado de pânico total, gritando desesperadamente:

- Pelo amor de Deus!... Chame o Justino.

Conto do Livro não publicado “Velhos Tempos Jequieenses”

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