João B. Pessoa
Ninguém nunca soube de onde ele
tinha vindo e nem mesmo quem era aquele sujeito de ar misterioso e de idade
indefinida, apesar de aparentemente jovem. Era um individuo magro, de tez
morena, altura mediana, cabelos lisos, feições regulares e bom porte. Surgiu
entre a rapaziada numa festa de São João, elegantemente vestido com um terno de
linho branco, usando um chapéu panamá e sapatos de luxo. Não demorou muito e
foi logo se enturmando com os jovens da elite jequieense. Era bem falante e
extrovertido. Embora demonstrasse pouca cultura, estava sempre ciente dos
assuntos do dia. Apresentou-se à moçada local como caixeiro viajante e ficou
hospedado em uma elegante pensão, onde moravam estudantes colegiais, filhos dos
fazendeiros da região. Ficou sabendo por um malandro local, que Jequié era a
cidade ideal para um desafortunado da vida se arrumar em um bom casamento.
Necessitava, apenas, andar com as pessoas certas e nas horas corretas.
Certa noite, ele foi convidado
a um famoso caruru, no qual compareciam as melhores famílias da cidade. Vestiu
o seu melhor terno e, na companhia dos amigos, para lá se dirigiu. Chegando a
festa, cumprimentou os conhecidos e examinou as moças casadoiras do local, não
se interessando por nenhuma. Embora algumas fossem ricas, a maioria era
remediada e nenhuma delas possuía a beleza especial que ele apreciava. Na
verdade, o sujeito estava admirado com sua própria atitude, pois não ele não
costumava rejeitar ninguém De repente, como se um raio o tivesse atingido, o
seu olhar foi de encontro com a menina mais bonita que ele tinha visto em toda
sua vida. Era uma belíssima garota de dezesseis anos, de pele alva e tez
rosada. Tinha os cabelos castanhos, quase louros e belos olhos azuis. A moça
era filha de um famigerado coronel da região do cacau, o qual, a sua fama de
rico só era superada pela a da sua ignorância. O malandro se apresentou à
garota, tecendo-lhe mil elogios, procurando valorar a si mesmo de maneira muito
sutil. A menina se encantou com o sujeito, pois sua lábia era de primeira qualidade.
Ficou na companhia dela a noite inteira, dançando de rosto colado, ao som de
uma vitrola, que tocava as canções românticas de uma estreante cantora chamada
Ângela Maria. Sua exótica figura chamou a atenção do coronel que logo procurou
saber quem era aquele cidadão que dançava com sua única filha Para isso chamou
Justino, seu capanga, homem de sua inteira confiança. Justino era um jovem
mulato, atarracado, mais ignorante do que o patrão, o qual só tinha medo de uma
coisa: Alma doutro mundo.
- Justino meu filho, procure
saber quem é aquele cavalheiro moreno que está dançando com Nininha!
Justino olhou para o coronel
espantado com sua polidez e tratou de averiguar quem era, de fato, aquele
candidato a defunto. Voltando a seguir depois de alguns minutos, disse
secamente:
- Ninguém, meu coroné!
O coronel cofiou a barba,
resmungou alguma coisa e disse para seu capanga:
- Deixe estar! Deixe estar!
Depois de terminar a festa, o
sujeito voltou com seus amigos, vangloriando de sua conquista, sendo alertado
por todos do perigo que ele estava correndo. Começou a namorar a moça,
escondido, pois não era nenhum otário para botar a cabeça na boca do leão, como
alardeava aos seus camaradas. Nas festas do fim de ano os encontros tornaram-se
mais freqüentes e menos furtivos; havendo várias desculpas para a menina sair
com mais freqüência, pois do natal até o dia de reis, o terno das pastorinhas,
do qual a menina fazia parte, saia todas as noites. O malandro conseguiu a
cumplicidade da velha tia solteirona, que achou romântico o amor proibido dos
dois. Num desses encontros, o malandro burlou a vigilância da velha e o
inevitável aconteceu.
Terminando as “boas festas”, o
coronel voltou para sua fazenda, que ficava no município de Ipiaú, levando
consigo sua preciosa filha. O sujeito ficou na cidade. Sentindo que a sorte
iria lhe favorecer, esperava pacientemente, o desfecho dos acontecimentos.
Meses depois, num belo dia, foi abordado por Justino, que enfiou o cano de um
“trinta e oito” em suas costelas e o meteu dentro de um Hudson, gritando para o
motorista:
- Ruma pra Rio Novo!
O sujeito entrou no carro,
cumprimentou o motorista e sorriu para o capanga, que parecia mais enfezado do
que um cão louco. Acendeu um cigarro e a viagem seguiu adiante. Chegando à
fazenda, o malandro encontrou o pai da moça bufando de raiva. O coronel não
conseguia entender, como a sua filha, menina de tão fino trato, pudesse estar
envolvida com um tipo daquele. Descendo do carro o sujeito foi levado a um
galpão onde era estocado o cacau que seria levado à venda. O capanga jogou-o ao
chão e com uma peixeira em seu pescoço o obrigou a ajoelhar e a encarar o
coronel, que berrou em seguida:
- Então seu “cabra safado”! Fio
duma égua! Como é que um bosta como tu se atreve a tirar de casa uma filha
minha e deixar ela prenha?
- Deixa eu capar ele meu Coroné
e dar as bolas dele prós cachorros!
- Não! – Bradou o coronel e em
seguida explicou:
- Nininha deu a ele porque
quis! Não foi obrigada a nada! Afinal de contas homem não se capa!... Mata-se!
O capanga ficou calado, pois o
coronel tinha seu senso peculiar de justiça e Justino acatava-o de todas as
maneiras. Diziam as más línguas que ele era filho do coronel com uma mulata
cozinheira da fazenda. O capanga sabia disso e, portanto, no seu parecer, a
menina deflorada e embuchada era sua irmã e, irmã de homem não se bole!
Os dois se preparavam para dar
cabo do sujeito, quando ele tirou de dentro da camisa, atado a seu pescoço, um
amuleto, beijando-o em seguida, disse para o coronel:
- Eu sei que estou errado
Coronel! Eu em seu lugar faria a mesma coisa! Não tem perdão! As coisas
acontecem quando têm que acontecer! Eu sei que vou morrer! Vou deixar um
filho... Neto seu! – Esboçando uma furtiva lágrima ele apelou ao coronel:
- Eu queria lhe fazer um último
pedido! Me deixa casar com Nininha. Assim meu filho não seria um bastardo e a
sua filha, a quem tanto amo, não seria mãe solteira! Logo depois do casamento o
senhor acaba comigo e eu parto dessa em paz, deixando Nininha na condição de
viúva.
O coronel pensou por alguns
segundos e, olhando para Justino, disse calmamente:
- Correto, muito correto.
O coronel fez o casamento em
sua fazenda com uma bela festa, tendo como convidados às famílias mais
distintas de Jequié e Ipiaú. A noiva, apesar de seu estado interessante, estava
vestida de branco e o sujeito esnobando um elegante terno de casimira, sendo
admirado e invejado por todos os malandros das duas cidades.
Dois meses após o casamento,
ainda em plena lua de mel, o sujeito, vivendo na melhor das mordomias, foi
novamente seqüestrado pelo capanga, que desta vez o levou para o meio da mata,
onde o coronel o esperava de arma na mão.
- Então seu cabra!... Preparado
pra morrer?
- Preparado ninguém está
coronel! Mas trato é trato! Se esta é minha hora, só Deus sabe! Contudo, eu lhe
queria lhe fazer mais um pedido: Deixe o menino nascer, pra ele conhecer o pai!
Depois disso, o senhor pode acabar comigo!
O coronel olhou para o sujeito
de baixo para cima e com a raiva contida acabou concordando.
O tempo foi passando calmamente
e a criança nasceu. Era a cara do coronel. Lourinho, mas sem os seus olhos
azuis. Três meses após o nascimento, o coronel já queria acertar as velhas
contas com o sujeito, que vinha com os argumentos de sempre, sendo que desta
vez pediu para que sua hora fosse depois do batizado. O coronel mais uma vez
retrocedeu, enquanto Justino implorava!
- Deixa eu sangrá ele meu
coroné!.
- Deixe estar que a hora dele
vai chegar meu filho! Vingança é uma fruta que, quanto mais madura, doce é!
Veio o batizado, festa cheia de
pompas, sendo o padrinho um deputado federal. Mas uma vez, as sociedades
jequieenses e ipiauenses reunidas, pois a família da falecida senhora do
coronel era de Jequié. O sujeito, cada dia mais invejado, cantava de galo a todo
o momento. Quando chegava à hora da verdade, ele inventava outra desculpa: Ora
era esperar o menino andar, ora era a sua dentição e até a primeira comunhão! O
coronel esperava pacientemente.
O sujeito torrava o seu
dinheiro com roupas, bebidas e mulheres, e o coronel paciente. Sua casa se
transformou num clube noturno, tal era o número de festas que o sujeito dava
todas as semanas, sempre apoiadas por Nininha. O pior de tudo era o mau gosto
do sujeito por tudo, principalmente por músicas, até que um dia, já muito tempo
depois, o sujeito apareceu com um disco de um ritmo novo, denominado rock
n’roll, que ele odiava tanto quanto o nefasto genro. O coronel atônito, não
podia compreender como uma garota tão jovem e tão bonita como sua filha podia
gostar dum sujeito reles daqueles.
O tempo continuava a passar e o
coronel se agastando, com o sujeito sempre lhe enrolando. “Deixe que um dia te
pego, sacana” pensava ele a todo o momento; até que um dia, num bate papo de
mesa de bar, ele soube por alguém, que o sujeito era dotado de uma “estrovenga”
sem precedentes na região. O coronel subiu pelas paredes: “a sua Nininha com um
jegue daqueles”! Pensava ele a todo o momento. Vivendo sempre contrariado na
espera da hora certa, sua saúde foi ficando debilitada, pois a raiva contida o
deixava doente. Ninguém sabia, a não ser Justino, do ódio que ele sentia pelo
genro. Em sociedade, a afabilidade era total; o coronel
dava sempre a impressão de uma
grande amizade com o malandro. Sua aversão aumentava na medida em que, sua saúde
diminuía, e no momento em que ele soube, que sua filha estava novamente
grávida, a novidade caiu com uma bomba em seu velho coração e ele gritou com
todos os seus pulmões:
- Porra, porra, porra! –
Caindo, em seguida, enfartado ao chão!
O coronel foi imediatamente
hospitalizado. No momento em que soube que o seu sogro estava moribundo, o
sujeito correu até o hospital, contente com a novidade. Quando chegou ao
recinto, ele encontrou vários parentes e amigos, solidários com aquele
infortúnio. Quando soube que o coronel tinha poucas horas de vida, foi logo
pensando na herança. Momentos depois, a enfermeira veio a seu encontro e lhe
informou que o coronel queria conversar consigo:
- Viu?!... Suas últimas
palavras são para o querido genro! – Comentou a velha tia solteirona. Entrando
no quarto, deparou com o sogro moribundo, que o encarou com um sádico sorriso,
falando com os dentes cerrados:
- Sabe?... Filho de uma
puta!... Cagado!... Cocô do diabo! A tua cama tá arrumada. Tu não tens como
fugir! Justino vai tirar teu couro, filho da égua!...
– Sabe? – Interrompeu
calmamente o sujeito:
– O senhor vai morrer coronel,
vai partir desta pra melhor! Eu tenho sido nos últimos tempos, o prego do seu
sapato! O senhor nunca foi com a minha cara. Portanto, eu acompanho a sua alma
pelo resto da eternidade, caso morra ao seu mando. Pense muito bem nisso!
O coronel arregalou os olhos em
estado de pânico total, gritando desesperadamente:
- Pelo amor de Deus!... Chame o
Justino.
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