segunda-feira, 24 de agosto de 2020

POLARIZAÇÃO

                                                    Carlos Eden Meira

Elas estavam ali, no passeio. Era um comprido passeio alto, cuja extremidade ficava mais ou menos a um metro e meio do chão. Eram duas adolescentes que trabalhavam como babás, num tempo em que ainda era permitido o trabalho de menores. Da janela do meu quarto, ouvia a conversa das duas enquanto um garotinho que estava sob a guarda de uma delas corria pelo passeio, e, em certo momento, quase caia da extremidade do alto passeio. Uma das garotas gritou: “Cuidado! O menino quase cai! Você não viu”? A outra respondeu: “Deixa cair, ué! Este pestinha enche a minha paciência o dia todo”! E a mãe dele é uma chata, metida a merda! Deixa esta peste cair e quebrar a cara”! A amiga a recriminou e ficaram discutindo, quando resolvi me meter na discussão.

Eu disse: “Sua amiga tem razão! Você devia ter cuidado com a criança! Não desconte nela, a antipatia que você tem de sua patroa. Você pode ser responsabilizada por qualquer acidente que acontecer com a criança e perder seu emprego”! “Além disso, - disse a amiga – você não é obrigada a permanecer nesse emprego”! É claro que era uma época em que muitas patroas tratavam suas empregadas como escravas, no entanto, uma criança não deveria sofrer represálias pelas maldades da mãe. Fiquei impressionado com a diferença de atitudes entre duas garotas na mesma condição social, mas cuja sensibilidade diante dos fatos era completamente oposta. Anos mais tarde, nos chamados “anos de chumbo”, princípio dos anos setenta, houve outro acontecimento emblemático o qual achei de importância considerável, dentro do momento institucional pelo qual passava o País. Dirigia-me ao colégio (IERP), onde cursava o primeiro ano do curso Científico, quando vi duas garotas estudantes primárias do Grupo Escolar Castro Alves, paradas em frente a um estabelecimento comercial, onde havia nas paredes, cartazes com fotos estampadas de pessoas na maioria jovens, com as seguintes advertências: “ATENÇÃO! ESTAS PESSOAS SÃO ASSASSINAS, MATARAM PAIS DE FAMILIA E SÃO PERIGOSAS! SE VOCÊ RECONHECER ALGUMAS DELAS, DENUNCIE ÀS AUTORIDADES POLICIAIS LOCAIS”.

Não me lembro se as palavras dos cartazes eram exatamente estas, mas eram muito semelhantes e o sentido era exatamente este. As duas garotas paradas ali observavam as fotos, curiosas. Uma delas disse: “Tá vendo? São assassinos! Mataram pessoas! Se eu reconhecer alguns, vou denunciar! E você”? Fiquei ali, curioso a observar aquela conversa. A outra garota, questionada pela amiguinha mais ou menos da mesma idade respondeu: “Eu não! Se eles forem presos, vão apanhar muito! Podem até morrer de apanhar na cadeia! Eu fico com pena deles”! Ficaram ali, discutindo, mas eu não sei o resultado daquela conversa, já que estava atrasado para minha aula, porém caminhei todo o meu trajeto avaliando aquele diálogo. As duas meninas, ainda tão jovens e já tinham cada uma, opiniões diferentes sobre um tema que elas não tinham maturidade suficiente para julgar. Muito me impressionou a maneira como cada uma delas viam aqueles cartazes. Fácil entender que uma delas queria denunciar, já que os avisos diziam que se tratava de assassinos perigosos. Mas, o que levava a outra a se preocupar com o que aconteceria com aquelas pessoas se fossem presas? Uma obviamente tinha medo da violência que poderia colocar em risco sua família, e pensava em segurança. A outra pensava também na violência, porém, na violência institucional do autoritarismo, ainda que não tivesse um mínimo de consciência politica nem ideológica, já que era apenas uma criança. Na sua visão infantil tinha medo, mas, inexplicavelmente parecia não acreditar que aquelas pessoas fossem assassinas, e não queria que ninguém sofresse. Apenas isso. Atualmente, diante dessa polarização gerada pela crise politica mundial nota-se que certas pessoas escancaram suas convicções, as quais podem estar inseridas em suas personalidades desde a infância, evidenciando a empatia de algumas diante do sofrimento e das injustiças, e a intolerância exacerbada de outras, cujas atitudes demonstram egoísmo e insensibilidade.

As crianças, no entanto, obviamente não devem ser julgadas por suas atitudes, já que podem estar apenas agindo conforme a influência e a educação que recebem, no meio em que vivem.

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