J. B. Pessoa
A
tarde estava serena com uma temperatura razoável, sem o frio tenebroso dos
primeiros dias do mês. O céu estava límpido anunciando uma possível noite cheia
de estrelas. Johnny seguiu para o pátio esquerdo da igreja, encontrando nele,
Eduardo e Luísa conversando com Edgar e Neide, à espera dos demais amigos. Os
dois casais saudaram Johnny com alegria e depois das cortesias, o garoto
perguntou, disfarçando o seu real interesse:
- Vocês viram Luís Augusto por aí?
- Ele, Bill Elliott e Eva Marli estavam aqui, com a gente,
agorinha mesmo! Foram ao encontro de Berenice na casa paroquial! – Respondeu
Eduardo, olhando sério para Johnny, pois ainda pressentia, o interesse do
garoto pela menina.
Berenice estava ajudando a professora Beth Azevedo a organizar uma
ala de anjos, composta por meninas com a idade entre seis a oito anos, que iam
sair na procissão. Ela estava dando os últimos retoques em uma plataforma,
decorada com requinte; a qual, adaptada em um jipe, transportaria os anjinhos
pelo cortejo, sendo conduzido pelo velho Xavier, que estava muito contente com
a sua participação naquele evento religioso.
Johnny permaneceu no pátio, conversando alegremente com os felizes
garotos e suas namoradas, esperando o início da procissão. Todos estavam
elegantemente vestidos, principalmente Edgar que, trabalhando em uma grande
loja, pode adquirir um belo terno de panamá, o qual seria pago em suaves
prestações. Johnny felicitou o amigo pelo seu belo traje, e ouviu de Eduardo um
jocoso elogio:
- O rapaz está lorde pra chuchu!... Está até parecendo um artista
de cinema!
- Ele é o meu Cary Grant! – Disse Neide, abraçando o garoto com
ternura.
Edgar estava contente com o seu novo modo de vida. Entretanto uma
pequena inquietação fazia-lhe enrugar parte de sua testa e um olhar ansioso
demonstrava certa preocupação. Notando isso, Johnny chamou-o a parte e lhe
perguntou:
- O que é que há rapaz?!... Alguma coisa lhe incomoda?
- Não é nada não! Só uma cisma minha!
- Você está cismado com que? – Perguntou o garoto com curiosidade.
- Você viu a turma, hoje?
- Até a poucos instantes estive com os meninos. Assistimos a
matinê grátis hoje à tarde!
- Mipai estava com vocês?
- Sim, ele foi para o jardim, com a turma, pois eles não gostam de
procissão!
- Claro, são um bando de hereges! - Bradou Edgar com certa
irritação.
- E daí?!... Com exceção de Porcino e Mipai, todos são
protestantes! – Observou Johnny, ainda sem entender aquele agastamento em
relação aos meninos.
- Você está certo, pois minha cisma é só com Mipai!
- Ué, por que você está cismado com o cara?
Edgar olhou seriamente para Johnny e balançando a cabeça
negativamente, retrucou:
- Ah, deixa pra lá!
- Deixa pra lá, o quê rapaz? Você não confia em mim? – Perguntou
Johnny, já apreensivo com aquela situação.
Edgar ficou pensativo por alguns segundos e olhando para os lados,
para se certificar de que ninguém o observava, desabafou:
- Se aquele sacana vier com gozação comigo, eu pico a porra nele!
- Gozação?!... Por quê?
- Mipai tem a mania de chamar de almofadinha os rapazes que usam
terno e gravata!
Johnny olhou para o garoto e, sem esconder o riso, tocou em seu
ombro dizendo:
- Ah, então é isso?!... Pois ele vai ter de caçoar com uma porção
de garotos, que estão iguais a você! Eu mesmo só não estou usando um terno,
porque nesse ano as despesas foram muito grandes para nossa família. Se tudo
correr bem, no próximo natal irei ganhar um.
Edgar sabia que muitos rapazes usavam terno e gravata, porque as
garotas gostavam e, além disso, impressionava os pais delas. Mesmo assim
refutou zangado:
- Pois é!... Comigo não, violão!
Johnny riu bastante com o termo usado pelo amigo e retificou:
- Deixe estar rapaz! Pra que se incomodar com a inveja dos outros.
O importante é que você está elegante e as garotas estão gostando!
Principalmente a sua; e é justamente isso o que importa. O resto é conversa
mole pra boi dormir!
- Bom isso é verdade e você está certo! O negócio é que gosto
muito daquele sacana e não queria brigar com ele!
Não haverá brigas e disso eu tenho certeza, pois Mipai gosta de
você e lhe tem muito respeito! – Garantiu Johnny, dando mais confiança a um
modesto garoto, o qual, além de tímido, tinha receio de não ser bem vindo a um
convívio social mais aburguesado e, ao mesmo tempo, temia a zombaria dos seus
camaradas, os quais viam com desdém sua nova condição.
Edgar era um garoto pobre, que teve a desventura de perder o seu
pai num desastre de caminhão, quando ele era quase um bebê. Sua mãe, uma jovem
senhora, esqueceu-se da dor e arregaçou as mangas, trabalhando com afinco, para
criar o filho e dar-lhe uma educação convencional. Aos oito anos o garoto já
carregava feira, pra ajudar no orçamento familiar; sem, contudo, desprezar os
estudos. Agora próximo do quatorze anos, se esforçava para ser um
excelente vendedor e já contava com uma clientela de respeito.
Nesse momento aparecem Berenice e Luis juntos com o novo casal de
namorados. Bill Elliott estampava um contentamento juvenil em seu rosto e Eva
estava radiante com a sua nova posição. Apesar de ser bastante cortejada, nunca
havia tido um namorado. Entretanto, sabia que aquela situação não poderia
perdurar por muito tempo, pois sua mãe só aceitaria um namoro de bom grado,
depois da festa dos seus quinze anos; mesmo assim, com alguém de sua escolha.
Bill ficou sabendo disso por ela mesma e aceitou o namoro escondido sem
objeções. O rapaz era muito seguro de si mesmo e tinha muita convicção de seus
objetivos. Aos quinze anos, estava terminando o ginásio, para no próximo ano
cursar o cientifico em Salvador e depois fazer o vestibular de medicina, na
certeza que teria êxito naquele concurso. Eva Marli estava encantada com a sua
disposição e desenvoltura em relação ao futuro. Admirava as suas ambições e
tinha certeza de que ele saberia domar a sua mãe, no devido tempo, a qual era
uma mulher cheia de empáfia e pretensões aristocráticas.
Depois de saudar o novo casal, Johnny sorriu para Berenice,
escondendo o amor que sentia pela menina. Porém ao notar os seus olhos cheios
de ternura, o garoto osculou suavemente as suas faces e abraçou-a com
contentamento. Eduardo sentiu naquele momento que os dois se amavam, mas não
percebeu nenhuma cumplicidade entre eles. Luis, cumprimentando o primo com
jovialidade, cobrou-lhe certa acuidade:
- Então rapaz, o que aconteceu com você? Estou lhe esperando desde
as quatro horas!
- Entrei na matinê do Cine Jequié com a turma da Siqueira Campos e
o filme terminou agora!
- Vocês conseguiram entrar?! – Perguntou Eva admirada, pois nunca
presenciou tantas crianças em volta de um cinema.
Eduardo deu uma bela gargalhada e disse com alacridade:
- Ele estava com a turma mais bagunceira da cidade!
Luis Augusto sorriu da chacota do amigo e disse, aprovando o jeito
dos garotos:
- O filme é muito bom! Eu assisti em Salvador há três anos!
Edgar coçou a cabeça, denotando contrariedade e disse:
- Tentamos entrar no cinema com as meninas, porque ficamos sabendo
que o filme acompanha o candidato nas suas visitas pelo interior e não teríamos
outra chance!
- Mas a balbúrdia estava tão horrível, que desistimos! – Completou
Neide.
- É uma pena, pois eu queria tanto ver esse filme! – Lamentou
Luísa, que gostava muito dos filmes ambientados na selva africana.
Berenice estava feliz com Johnny por perto e pouco ligava para o
fato de não ter assistido ao famoso filme. Porém ao ver tanta lamúria, disse
sorrindo da turma:
- Calma pessoal! Com certeza haverá uma reprise desse famigerado
filme!
Nesse momento os sinos da igreja começam tocar, avisando aos fieis
o início da procissão. Os jovens seguiram juntos, indo para fora da igreja para
esperar o cortejo passar, pois costumavam seguir sempre pela retaguarda, longe
da impertinência das senhoras que cuidam da igreja.
Naquele ano de eleições, a política parecia prevalecer ao conteúdo
pragmático do ritual religioso. Nas várias fases que compunha o cortejo, antes
seguidas pelos freqüentes fieis, foram substituídos pelos candidatos de toda a
região, alguns dos quais só compareciam às igrejas em época de sufrágios. Com
exceção de poucos políticos, a exemplo dos candidatos a sucessão municipal como
Dorival Borges e de Ademar Nunes Vieira, do antigo prefeito Nilton Pinto de
Araújo e do seu irmão, o vereador Emerson Pinto de Araujo, além do prefeito em
exercício Antonio Lomanto Júnior, ardoroso devoto do santo padroeiro da cidade,
a maioria dos que acompanhavam o andor de Santo Antonio era totalmente
desconhecida dos assíduos paroquianos. Na opinião de algumas senhoras, o número
de pessoas que acompanharam àquele préstito religioso, superou de longe os anos
anteriores. Menos sóbria do que a da Semana Santa, a procissão de Santo Antonio
tinha uma peculiaridade especial: acontecia nas festas juninas, numa época de
frio mais intenso, fazendo com que as pessoas se vestissem com mais elegância.
Os mais pobres poupavam seus minguados tostões, para ostentarem no dia treze de
junho uma indumentária chique, que os deixassem orgulhosos de suas
participações.
A procissão seguiu o mesmo trajeto da Sexta-Feira da Paixão. A
meninada acompanhava o cortejo aos pares, tendo Luis Augusto sempre ao lado de
Berenice. Johnny seguia à parte, mesmo assim feliz, sabendo que o amor daquela
bela menina lhe pertencia. Eva Marli, não querendo ter segredos para seu
namorado, lhe deixou ciente daquela inusitada situação. Bill Elliott lamentou o
drama dos dois enamorados, embora sendo também amigo de Luis, torcia para
Johnny, esperando que as coisas chegassem a um final feliz, sem nenhum constrangimento,
para os três.
Como acontecia em todos os anos, a procissão seguia sua
trajetória, com os fieis acompanhando o andor, cantando hinos em homenagem a
Santo Antonio. Era sempre a mesma coisa: Cavalheiros alinhados acompanhavam
suas elegantes senhoras de ar severo e jeito respeitoso; algumas delas,
portando mantilhas de véus em suas cabeças, condiziam como a própria imagem do
acatamento feminino. Berenice seguia aquele cortejo com alegria, acompanhando
os cânticos religiosos das senhoras, com seu catecismo nas mãos. Trajava
lindamente um amplo vestido de cor azul celeste, com cintura bem marcada e saia
que ia a altura dos tornozelos; adornado por um casaco curto, de mangas
compridas, feito do mesmo tecido de lã inglesa. Quando o cortejo saiu da Praça
da Bandeira e entrou na estreita Rua Barbosa de Souza, possibilitando a
garotada ficar mais junta, Johnny aproveitou a oportunidade, e segurou a mão de
Berenice com discrição. A garota retribuiu a afeição, com um
forte aperto em sua mão e, olhando para o garoto, sorriu; contendo
a emoção que sentia naquele momento.
Já era noite fechada quando a procissão finaliza o seu percurso.
As luzes da cidade já estavam acesas e o gerador do Cine Bonfim trabalhava com
afinco, para suprir a igreja matriz e sua quermesse com energia extra, numa
doação espontânea de seu proprietário. Após as orações finais, os fiéis ficaram
fascinados com uma chuva de fogos de artifícios, presenteados pelo maior
benfeitor da cidade, o eminente cidadão Vicente Grillo.
Com o final do evento religioso, os jovens se despedem, marcando
encontro na quermesse, a qual era a última da temporada. Eva Marli se dirigiu a
Johnny e, com seu jeito maroto disse, ralhando, tal qual a uma criança:
- Senhor João Evangelista!... Não vá desaparecer essa noite
novamente, ouviu?
-Não se preocupe! Às oito horas em ponto a gente se encontra na
confeitaria! - Prometeu o garoto, sorrindo da brincadeira de sua amiga.
Berenice se despediu de Luis, dizendo:
- Traga o seu primo de volta, certo?
- Certíssimo! - disse o garoto sorrindo.
Após as despedidas, foram todos felizes para suas casas, na intenção de retornarem mais tarde e se divertirem na última noite da quermesse de Santo Antonio.
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