sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A procissão de Santo Antônio.

 J. B. Pessoa

A tarde estava serena com uma temperatura razoável, sem o frio tenebroso dos primeiros dias do mês. O céu estava límpido anunciando uma possível noite cheia de estrelas. Johnny seguiu para o pátio esquerdo da igreja, encontrando nele, Eduardo e Luísa conversando com Edgar e Neide, à espera dos demais amigos. Os dois casais saudaram Johnny com alegria e depois das cortesias, o garoto perguntou, disfarçando o seu real interesse:

- Vocês viram Luís Augusto por aí?

- Ele, Bill Elliott e Eva Marli estavam aqui, com a gente, agorinha mesmo! Foram ao encontro de Berenice na casa paroquial! – Respondeu Eduardo, olhando sério para Johnny, pois ainda pressentia, o interesse do garoto pela menina.

Berenice estava ajudando a professora Beth Azevedo a organizar uma ala de anjos, composta por meninas com a idade entre seis a oito anos, que iam sair na procissão. Ela estava dando os últimos retoques em uma plataforma, decorada com requinte; a qual, adaptada em um jipe, transportaria os anjinhos pelo cortejo, sendo conduzido pelo velho Xavier, que estava muito contente com a sua participação naquele evento religioso.

Johnny permaneceu no pátio, conversando alegremente com os felizes garotos e suas namoradas, esperando o início da procissão. Todos estavam elegantemente vestidos, principalmente Edgar que, trabalhando em uma grande loja, pode adquirir um belo terno de panamá, o qual seria pago em suaves prestações. Johnny felicitou o amigo pelo seu belo traje, e ouviu de Eduardo um jocoso elogio:

- O rapaz está lorde pra chuchu!... Está até parecendo um artista de cinema!

- Ele é o meu Cary Grant! – Disse Neide, abraçando o garoto com ternura.

Edgar estava contente com o seu novo modo de vida. Entretanto uma pequena inquietação fazia-lhe enrugar parte de sua testa e um olhar ansioso demonstrava certa preocupação. Notando isso, Johnny chamou-o a parte e lhe perguntou:

- O que é que há rapaz?!... Alguma coisa lhe incomoda?

- Não é nada não! Só uma cisma minha!

- Você está cismado com que? – Perguntou o garoto com curiosidade.

- Você viu a turma, hoje?

- Até a poucos instantes estive com os meninos. Assistimos a matinê grátis hoje à tarde!

- Mipai estava com vocês?

- Sim, ele foi para o jardim, com a turma, pois eles não gostam de procissão!

- Claro, são um bando de hereges! - Bradou Edgar com certa irritação.

- E daí?!... Com exceção de Porcino e Mipai, todos são protestantes! – Observou Johnny, ainda sem entender aquele agastamento em relação aos meninos.

- Você está certo, pois minha cisma é só com Mipai!

- Ué, por que você está cismado com o cara?

Edgar olhou seriamente para Johnny e balançando a cabeça negativamente, retrucou:

- Ah, deixa pra lá!

- Deixa pra lá, o quê rapaz? Você não confia em mim? – Perguntou Johnny, já apreensivo com aquela situação.

Edgar ficou pensativo por alguns segundos e olhando para os lados, para se certificar de que ninguém o observava, desabafou:

- Se aquele sacana vier com gozação comigo, eu pico a porra nele!

- Gozação?!... Por quê?

- Mipai tem a mania de chamar de almofadinha os rapazes que usam terno e gravata!

Johnny olhou para o garoto e, sem esconder o riso, tocou em seu ombro dizendo:

- Ah, então é isso?!... Pois ele vai ter de caçoar com uma porção de garotos, que estão iguais a você! Eu mesmo só não estou usando um terno, porque nesse ano as despesas foram muito grandes para nossa família. Se tudo correr bem, no próximo natal irei ganhar um.

Edgar sabia que muitos rapazes usavam terno e gravata, porque as garotas gostavam e, além disso, impressionava os pais delas. Mesmo assim refutou zangado:

- Pois é!... Comigo não, violão!

Johnny riu bastante com o termo usado pelo amigo e retificou:

- Deixe estar rapaz! Pra que se incomodar com a inveja dos outros. O importante é que você está elegante e as garotas estão gostando! Principalmente a sua; e é justamente isso o que importa. O resto é conversa mole pra boi dormir!

- Bom isso é verdade e você está certo! O negócio é que gosto muito daquele sacana e não queria brigar com ele!

Não haverá brigas e disso eu tenho certeza, pois Mipai gosta de você e lhe tem muito respeito! – Garantiu Johnny, dando mais confiança a um modesto garoto, o qual, além de tímido, tinha receio de não ser bem vindo a um convívio social mais aburguesado e, ao mesmo tempo, temia a zombaria dos seus camaradas, os quais viam com desdém sua nova condição.

Edgar era um garoto pobre, que teve a desventura de perder o seu pai num desastre de caminhão, quando ele era quase um bebê. Sua mãe, uma jovem senhora, esqueceu-se da dor e arregaçou as mangas, trabalhando com afinco, para criar o filho e dar-lhe uma educação convencional. Aos oito anos o garoto já carregava feira, pra ajudar no orçamento familiar; sem, contudo, desprezar os

estudos. Agora próximo do quatorze anos, se esforçava para ser um excelente vendedor e já contava com uma clientela de respeito.

Nesse momento aparecem Berenice e Luis juntos com o novo casal de namorados. Bill Elliott estampava um contentamento juvenil em seu rosto e Eva estava radiante com a sua nova posição. Apesar de ser bastante cortejada, nunca havia tido um namorado. Entretanto, sabia que aquela situação não poderia perdurar por muito tempo, pois sua mãe só aceitaria um namoro de bom grado, depois da festa dos seus quinze anos; mesmo assim, com alguém de sua escolha. Bill ficou sabendo disso por ela mesma e aceitou o namoro escondido sem objeções. O rapaz era muito seguro de si mesmo e tinha muita convicção de seus objetivos. Aos quinze anos, estava terminando o ginásio, para no próximo ano cursar o cientifico em Salvador e depois fazer o vestibular de medicina, na certeza que teria êxito naquele concurso. Eva Marli estava encantada com a sua disposição e desenvoltura em relação ao futuro. Admirava as suas ambições e tinha certeza de que ele saberia domar a sua mãe, no devido tempo, a qual era uma mulher cheia de empáfia e pretensões aristocráticas.

Depois de saudar o novo casal, Johnny sorriu para Berenice, escondendo o amor que sentia pela menina. Porém ao notar os seus olhos cheios de ternura, o garoto osculou suavemente as suas faces e abraçou-a com contentamento. Eduardo sentiu naquele momento que os dois se amavam, mas não percebeu nenhuma cumplicidade entre eles. Luis, cumprimentando o primo com jovialidade, cobrou-lhe certa acuidade:

- Então rapaz, o que aconteceu com você? Estou lhe esperando desde as quatro horas!

- Entrei na matinê do Cine Jequié com a turma da Siqueira Campos e o filme terminou agora!

- Vocês conseguiram entrar?! – Perguntou Eva admirada, pois nunca presenciou tantas crianças em volta de um cinema.

Eduardo deu uma bela gargalhada e disse com alacridade:

- Ele estava com a turma mais bagunceira da cidade!

Luis Augusto sorriu da chacota do amigo e disse, aprovando o jeito dos garotos:

- O filme é muito bom! Eu assisti em Salvador há três anos!

Edgar coçou a cabeça, denotando contrariedade e disse:

- Tentamos entrar no cinema com as meninas, porque ficamos sabendo que o filme acompanha o candidato nas suas visitas pelo interior e não teríamos outra chance!

- Mas a balbúrdia estava tão horrível, que desistimos! – Completou Neide.

- É uma pena, pois eu queria tanto ver esse filme! – Lamentou Luísa, que gostava muito dos filmes ambientados na selva africana.

Berenice estava feliz com Johnny por perto e pouco ligava para o fato de não ter assistido ao famoso filme. Porém ao ver tanta lamúria, disse sorrindo da turma:

- Calma pessoal! Com certeza haverá uma reprise desse famigerado filme!

Nesse momento os sinos da igreja começam tocar, avisando aos fieis o início da procissão. Os jovens seguiram juntos, indo para fora da igreja para esperar o cortejo passar, pois costumavam seguir sempre pela retaguarda, longe da impertinência das senhoras que cuidam da igreja.

Naquele ano de eleições, a política parecia prevalecer ao conteúdo pragmático do ritual religioso. Nas várias fases que compunha o cortejo, antes seguidas pelos freqüentes fieis, foram substituídos pelos candidatos de toda a região, alguns dos quais só compareciam às igrejas em época de sufrágios. Com exceção de poucos políticos, a exemplo dos candidatos a sucessão municipal como Dorival Borges e de Ademar Nunes Vieira, do antigo prefeito Nilton Pinto de Araújo e do seu irmão, o vereador Emerson Pinto de Araujo, além do prefeito em exercício Antonio Lomanto Júnior, ardoroso devoto do santo padroeiro da cidade, a maioria dos que acompanhavam o andor de Santo Antonio era totalmente desconhecida dos assíduos paroquianos. Na opinião de algumas senhoras, o número de pessoas que acompanharam àquele préstito religioso, superou de longe os anos anteriores. Menos sóbria do que a da Semana Santa, a procissão de Santo Antonio tinha uma peculiaridade especial: acontecia nas festas juninas, numa época de frio mais intenso, fazendo com que as pessoas se vestissem com mais elegância. Os mais pobres poupavam seus minguados tostões, para ostentarem no dia treze de junho uma indumentária chique, que os deixassem orgulhosos de suas participações.

A procissão seguiu o mesmo trajeto da Sexta-Feira da Paixão. A meninada acompanhava o cortejo aos pares, tendo Luis Augusto sempre ao lado de Berenice. Johnny seguia à parte, mesmo assim feliz, sabendo que o amor daquela bela menina lhe pertencia. Eva Marli, não querendo ter segredos para seu namorado, lhe deixou ciente daquela inusitada situação. Bill Elliott lamentou o drama dos dois enamorados, embora sendo também amigo de Luis, torcia para Johnny, esperando que as coisas chegassem a um final feliz, sem nenhum constrangimento, para os três.

Como acontecia em todos os anos, a procissão seguia sua trajetória, com os fieis acompanhando o andor, cantando hinos em homenagem a Santo Antonio. Era sempre a mesma coisa: Cavalheiros alinhados acompanhavam suas elegantes senhoras de ar severo e jeito respeitoso; algumas delas, portando mantilhas de véus em suas cabeças, condiziam como a própria imagem do acatamento feminino. Berenice seguia aquele cortejo com alegria, acompanhando os cânticos religiosos das senhoras, com seu catecismo nas mãos. Trajava lindamente um amplo vestido de cor azul celeste, com cintura bem marcada e saia que ia a altura dos tornozelos; adornado por um casaco curto, de mangas compridas, feito do mesmo tecido de lã inglesa. Quando o cortejo saiu da Praça da Bandeira e entrou na estreita Rua Barbosa de Souza, possibilitando a garotada ficar mais junta, Johnny aproveitou a oportunidade, e segurou a mão de Berenice com discrição. A garota retribuiu a afeição, com um

forte aperto em sua mão e, olhando para o garoto, sorriu; contendo a emoção que sentia naquele momento.

Já era noite fechada quando a procissão finaliza o seu percurso. As luzes da cidade já estavam acesas e o gerador do Cine Bonfim trabalhava com afinco, para suprir a igreja matriz e sua quermesse com energia extra, numa doação espontânea de seu proprietário. Após as orações finais, os fiéis ficaram fascinados com uma chuva de fogos de artifícios, presenteados pelo maior benfeitor da cidade, o eminente cidadão Vicente Grillo.

Com o final do evento religioso, os jovens se despedem, marcando encontro na quermesse, a qual era a última da temporada. Eva Marli se dirigiu a Johnny e, com seu jeito maroto disse, ralhando, tal qual a uma criança:

- Senhor João Evangelista!... Não vá desaparecer essa noite novamente, ouviu?

-Não se preocupe! Às oito horas em ponto a gente se encontra na confeitaria! - Prometeu o garoto, sorrindo da brincadeira de sua amiga. Berenice se despediu de Luis, dizendo:

- Traga o seu primo de volta, certo?

- Certíssimo! - disse o garoto sorrindo.

Após as despedidas, foram todos felizes para suas casas, na intenção de retornarem mais tarde e se divertirem na última noite da quermesse de Santo Antonio.

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