quarta-feira, 8 de julho de 2020

O Dia dos Namorados.

J. B. Pessoa

Capítulo - 39 do livro " Guris e Gibis".

O tempo continuou cinzento durante aquela semana, com a temperatura baixa e uma neblina que caía esporadicamente, deixando impacientes, as pessoas estacionadas debaixo das marquises, sem poderem transitar livremente pelo comércio. Entretanto, na manhã daquele sábado, houve uma pequena aragem, com um sol precário, que apareceu por volta das dez horas, deixando a população mais animada, saudosa do calor que deu fama à sua cidade. Apesar desse curto estio, a atmosfera era de inverno e prometia dias tenebrosos, que poderiam atrapalhar as festas juninas.
A professora Mary Rabello, aproveitou a oportunidade e chamou os alunos, que iam participar da quadrilha junina, para ensaiar essa dança folclórica na parte externa do prédio, que ficava defronte da igreja matriz. O contentamento dos garotos foi grande, pois teriam a oportunidade de estarem junto das meninas, algumas das quais ensejavam um discreto flerte com seus pretendentes. Porém, o lugar escolhido era o predileto da meninada de rua, jogar suas peladas, pois estava situado estrategicamente entre os dois cinemas. Naquele momento uma garotada, que não fazia parte do Prédio Castro Alves, brincava de bola no local e, ante o pedido da professora, cedeu o local de bom grado para o ensaio da dança. Apenas Alcides Zoião e Pedro Chulé se sentiram tolhidos em seus direitos, e tentaram um curto protesto, alegando que aquela área era pública e não pertencia à escola. Mas, diante dos olhares reprovadores das professoras Alíria Argolo e Emília Ferreira, desistiram logo da idéia, pois não eram bobos de encararem uma encrenca daquelas.
Orlando, na companhia de Johnny e Luis Augusto, assistia o desenrolar dos acontecimentos com certo interesse. O fato de Eduardo e Luísa estarem também, fazendo parte daquele espetáculo, deixava o rapaz fulo de raiva. Seu despeito era tamanho, que ele resolveu concordar com os dois garotos.
- Alcides e Paulo têm razão, pois essa área não pertence à escola!
Luis ficou tão indignado com aquela afirmação, que falou com deboche:
- Ô esse menino, se não fui mal informado, esse prédio foi projetado e construído tendo duas frentes, ou seja: uma fica para a avenida, que é a frente principal, e a outra para a praça da igreja, onde está sendo preparado o ensaio. Por acaso você não notou, que no local onde estamos em pé, é um muro largo e baixo, com uma escadaria no meio, que dá para o pátio, onde estão os alunos? Sendo que esse muro é a divisória da área dessa frente? Na frente para a avenida não há outro pátio? Por acaso ele não faz parte do prédio, onde funciona o Grupo Escolar Castro Alves?!
- É deveras! Agora que você falou, é que eu estou notando todo o contorno! – Disse Johnny, concordando com o primo.
Orlando ficou calado, contendo todo o seu aborrecimento, pois não queria se inimizar com Luis e Johnny, talvez os únicos garotos da escola que não discriminavam as suas extravagâncias. Nesse momento aparecem Tõe Porcino e Mamãe Eu Quero, que tinham transportado nos seus carrinhos de mão, uma feira para as imediações. Notando a grande aglomeração, naquela parte do prédio, eles resolveram verificar o que estava acontecendo. Johnny e Luis ficaram bastante contentes com a presença dos dois gibis e os receberam com festas. Tõe Porcino felicitou Orlando pelo seu desempenho no domingo anterior,
deixando o rapaz orgulhoso de sua façanha e o assunto da conversa ficou em torno de sua futura carreira de cantor.
O som sofrível de um acordeom anunciou o começo do ensaio e a atenção dos garotos voltou-se para a dança da quadrilha. Johnny aproveitou o momento para ir tomar água, em um dos bebedouros da escola. Nesse mesmo instante, apareceu uma menina do quarto ano, com um recado de Berenice. Ela informou para Johnny, que a garota estava sozinha, lhe esperando na Confeitaria Cristal e pedia que ele viesse, sem falta. O garoto não pestanejou. Saiu dali imediatamente, sem se despedir de seus camaradas e, radiante com a notícia, foi ao encontro de sua bela namorada.
A Confeitaria Cristal estava repleta de gente, que aproveitava o ensejo climático, para um comportamento social atípico àquela comunidade. Várias senhoras, elegantemente vestidas, tomavam chá com biscoitos ou bebiam chocolate quente. Apesar do estio e do sol ter aparecido, fazia frio, motivando aquela conduta. Berenice esperava por Johnny, sentada estrategicamente perto da porta, ao lado esquerdo da sala, que lhe dava uma visão panorâmica de toda a praça. Quando avistou o garoto, levantou-se da mesa e foi ao seu encontro e ambos se deleitaram em um afetuoso abraço. Comovido com aquele gesto apaixonado, Johnny beija as faces da menina e ela lhe retribui sorrindo, cantando um sucesso do rádio:
-Que beijinho doce!... Que ele tem...
Johnny fica momentaneamente ruborizado e a menina começa a brincar com ele:
- Quando lhe vejo assim, todo vermelhinho, fico com vontade de lhe colocar no colo e cantar uma cantiga de ninar, para que você adormeça em meus braços!
- Aí eu não iria querer acordar e ficaria assim para sempre! – Respondeu o garoto, recompondo-se da timidez. Surpreso com a mensagem da menina marcando aquele encontro em pleno horário escolar, ele diz:
- Fiquei feliz com o seu recado, embora um pouco aflito. Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu, sim! Uma saudade imensa do meu belo garoto. - Respondeu a menina com ternura. Depois cruzando os braços e fingindo indignação, perguntou:
- Aliás, você sabe que dia é hoje?
- Dia dos namorados! – Respondeu o garoto com prontidão.
- Ainda bem que você se lembrou, pois eu ficaria magoada se isso não acontecesse! – Disse a garota dengosamente.
- Claro que me lembrei! – Assegurou Johnny e, abrindo o seu caderno, pegou um envelope e entregou a Berenice. A menina olhou com curiosidade e, abrindo à missiva, encontrou um cartão, no qual havia desenhos românticos e uma quadrinha apaixonada, que dizia:
No silêncio da noite
Sob a luz do luar
Confesso às estrelas
Que adoro te amar!
Berenice ficou emocionada ao notar que, o cartão foi desenhado pelo garoto e o verso era de sua autoria. Abraçou Johnny e disse sorrindo:
- Quer dizer que eu estou namorando um artista e poeta?
Johnny fez um trejeito de pessoa importante e disse caçoando de si mesmo:
- Pode ser que sim! O povo não diz que, “de poeta e louco, todos nós temos um pouco”? Então eu digo: de louco muito tenho, de poeta muito pouco!
A garota ficou muito feliz, com aquela maneira especial de demonstrar um afeto e disse para o garoto:
- Eu também tenho algo para lhe dar, embora não seja tão original! – A seguir abriu sua maleta escolar e tirou dela um pacote, embalado com um papel especial, de cor azulada, estampados com pequenos corações, amarrado com uma bela fita vermelha e entregou ao garoto, dizendo:
- Feliz dia dos namorados!
Johnny sorriu para a menina e abriu o pacote. Era uma espécie de álbum, colorido, em que apareciam os mais famosos mocinhos do faroeste. O garoto ficou encantado com o presente, pois nunca tinha visto algo, assim, tão sofisticado.
- É pena que esteja tudo escrito em Inglês, não é verdade? – Disse a menina, tentando observar a atitude do garoto, para ver, se era de decepção.
Johnny sorriu novamente e disse com orgulho:
- Não pretendo ser um analfabeto em Inglês a vida inteira. Adorei o presente e ele irá me incentivar nos estudos da língua inglesa. – Depois virando para a menina perguntou:
- Você fala Inglês, não é verdade?
- Sim! Como você deve saber, meu pai é inglês e minha mãe, que fala muito bem esse idioma, me alfabetizou nas duas línguas! Quando eles foram aos Estados Unidos, no mês passado, eu pedi ao meu pai, pra comprar esse álbum, pois pretendia lhe presentear nesse dia especial!
Johnny afagou as mãos de Berenice e disse ternamente:
- Por que você não esperou para me entregar o presente, logo mais, à noite? Eu soube que a sua classe está em provas!
- Sim, isso é verdade! Vou ter prova de Matemática às onze horas. Porém eu quis estar sozinha com você, longe da turma! – Disse a menina em tom dengoso.
- Eu também estava com muitas saudades! - Certificou o garoto, afagando as mãos da menina e, fitando os seus lindos olhos azuis, disse-lhe ardorosamente:
- Se eu pudesse, nunca ficaria longe de você!
- Eu também, Johnny!... Eu também! – Disse a menina, ternamente.
Os imaturos enamorados ficaram trocando suaves caricias em um doce contentamento, perdidos ao sabor daqueles momentos agradáveis, esquecendo-se de que estavam em um local, apinhado de pessoas, que os observavam com curiosidade. Notando o descuido, saíram apressados da confeitaria, sorrindo muito de seus desleixos e foram sentar-se em um banco do jardim, no momento em que um alto falante da Voz da Cidade tocava os sucessos do rádio daquele ano.
O sol, que timidamente apareceu naquela manhã, se escondeu atrás de uma nuvem chuvosa e uma finíssima neblina começou a cair, afugentando as demais pessoas da praça. O vento frio, que soprava constantemente, obrigou os jovens a se abraçarem, enquanto ouviam uma canção de amor. Fisgados pela emoção, um ardoroso beijo aconteceu, fazendo com que, ambos flutuassem em sensações desconhecidas. A garota ficou absorta naquele momento etéreo, enquanto o garoto não pensava em nada. Paralisados de encantos, parecia para ambos, que tudo mais ao redor havia desaparecido existindo apenas os dois. O
entusiasmo do primeiro beijo foi multiplicado por uma sucessão de outros, deixando-os extasiados naquele mágico momento.
As badaladas do relógio da matriz despertaram os dois namorados, daquele sublime contentamento, transportando-os para a realidade que os esperava. Durante alguns segundos, o menino e a menina ficaram olhando um para o outro, surpresos com aquele atrevimento. Johnny sentia o seu coração pulsar de emoção, enquanto duas lágrimas rolavam pelas faces de Berenice. O garoto afagou as mãos da menina, e ela fitando os seus olhos com ternura, disse-lhe docemente:
- Johnny, eu te amo!
Tomado pelo sentimento, que evadia de sua alma, o garoto abraçou a menina com paixão e, beijando novamente os seus lábios, afirmou:
Eu também, Baby!... Eu também!
Os jovens permaneceram, por algum tempo, abraçados, enquanto era embalado pela suave música, que era tocada pela Voz da Cidade, parecendo que o serviço de alto falantes era seu cúmplice e completava aquela magia, com a poesia daquela canção de amor.
O sol apareceu novamente, embora um tanto arredio, com o vento frio soprando constantemente. Nesse momento, Berenice consulta seu relógio de pulso e verifica preocupada:
Puxa a vida! Faltam apenas quinze minutos para as onze! Preciso voltar para a escola. A professora Lívia não dá moleza a ninguém!
Diante daquela súbita ansiedade, Johnny procura acalmar a menina:
- Não se preocupe com isso, que o tempo dá, e de sobra! Afinal o Ginásio não está longe. Eu conheço um atalho magnífico e lhe acompanho até lá. Você não vai ter problemas, pois ninguém irá notar que você se ausentou da escola!
Atalho?!... Que atalho? – Perguntou Berenice, curiosa com aquela informação, pois Jequié era uma cidade que tinha um traçado linear.
- Descobri isso, por uma turma que adora filar aulas. Eles entram e saem da escola sem passar pela portaria. Venha comigo e eu lhe mostro o lugar!
Johnny e Berenice saíram do jardim e seguiram alegres pela Avenida Alves Pereira, com as mãos dadas, conversando animadamente. Atravessaram toda a Praça da Bandeira, onde acontecia a feira livre e entraram na Rua Barbosa de Sousa, parando junto de um grande muro, que situava entre duas residências. Johnny abriu o portão do muro, que estava apenas cerrado, e entrou com Berenice naquela propriedade. Era um terreno baldio, cuja porta dos fundos dava para uma área do colégio, perto do pátio, onde ficava a residência do internato, distante das salas de aulas, separadas do resto das dependências daquele colégio. Naquele local, alguns colegiais se encontravam, para namorarem escondidos, longe das vistas de uma irredutível auxiliar escolar, que era o terror da garotada. Perplexa com a artimanha do seu namorado, ela parou de caminhar e puxando o garoto a si, disse, fingindo ciúmes:
- Você é mesmo um malandrinho! Com quantas meninas você já esteve aqui?
- Eu?!... Com nenhuma! Você é a minha primeira namorada!
- Eu sei disso querido! Eu sei disso! – Disse Berenice, aplicando um ardoroso beijo no garoto. Nesse momento um bando meninas, que assistiam a cena ao longe, gritaram:
- Ei pessoal, a gente tem cinema grátis hoje?
Eram as colegas de classe de Berenice, que comandadas por Eva Marli, faziam a ronda diária, para pegar em flagrante as suas colegas mais afoitas e fazer resenha delas.
Berenice virou para as amigas e disse sorrindo:
- Venham aqui, todas vocês para ver, o que acabamos de descobrir!
As garotas vieram até Berenice e ela apontou para o portão, mostrando aquela saída, que dava para a rua, próxima à praça da feira. As meninas adoraram aquela novidade e dali em diante, pretendiam usar aquela artimanha, para burlar a vigilância escolar e dar as suas escapadelas, quando acharem conveniente. Felicitaram Johnny pela descoberta e ficaram em torno do garoto, tecendo-lhe elogios. Eva Marli, notando o assanhamento das colegas, disse para elas, sorrindo:
- Vamos com calma, que a dona do garoto está presente!
Berenice, rindo das peraltices das amigas, puxou Johnny a si e, abraçando o garoto, beijou o seu rosto. Nesse momento bate o sino da escola, anunciando a última aula do turno matutino. As jovens se despedem do garoto e, apressadas, seguem para sua classe, pois a temível professora de matemática as esperava, com uma dificílima prova, daquela complicada matéria escolar. Johnny abraça Berenice, despedindo-se da garota com um beijo em seus lábios. Berenice comenta com leve tristeza:
- Que pena a gente ter que de encontrarem, assim, sempre escondidos!
- Eu sei minha querida, mas isso vai acabar. Eu prometo para você que, logo depois do São João eu converso com Luís. Ele é um bom rapaz e não verá nenhuma traição da minha parte.
- Espero que sim, pois gosto muito daquele garoto! – Disse a menina, pensativa. Nesse momento eles ouviram a voz enérgica de Eva Marli:
- Ei garota, avia-te, queres perder a prova de matemática?!
Berenice despediu-se novamente de Johnny e correu em direção à amiga, que saudava o garoto com acenos. Johnny saiu das dependências do colégio, da mesma maneira em que entrou. No momento em que o relógio da matriz tocava às onze horas, ele percorria a Avenida Rio Branco, seguindo em direção ao Prédio Castro Alves, absorto em seus pensamentos, relembrando as doces carícias que havia tido com sua namorada. O garoto estava impressionado com a sua audácia, pois havia beijado várias vezes, os lábios da menina. “Puxa a vida, na boca!” relembrava, a todo o momento, orgulhoso de sua ousadia. Apesar de ele haver tido longos devaneios, em relação à menina, jamais achou que poderia cometer tal atrevimento. Estava maravilhado com aquela ocorrência e se sentia muito feliz com o rumo das coisas. A realidade havia suplantado os seus sonhos, parecendo que a deusa do amor, havia lhe favorecido. Tudo aquilo aconteceu rapidamente, como se o cupido dos desenhos animados houvesse flechado os dois, para seu próprio deleite ou por puro capricho. Isso pouco importava para ele, que agradecia aos céus, por tamanha ventura.
O ensaio da quadrilha havia atraído muitos garotos do centro, devido às presenças das belas alunas daquela escola. Johnny foi ao encontro de Luís Augusto que, no momento, comentava com outros colegas, o desempenho da garotada nas nuances daquela dança folclórica. Para Orlando, a maioria dos dançarinos não tinha senso de ritmo ou elegância, principalmente Eduardo, a quem ele achava um grande pretensioso. Fazendo pouco caso dos colegas que desempenhava a função, com certa capacidade, dizia:
- É um bando de perna de pau!
A turma ria bastante dele, pois seu despeito era visível. Luís admirado com a súbita ausência do primo, perguntou:
- Ei rapaz, onde você se meteu?
- Eu tive que ir à biblioteca, entregar um livro para a professora.
- Ué, demorou tanto assim?
- Encontrei com a turma da Estação que está querendo promover um torneio em seu campo. – Respondeu o garoto, que foi obrigado a mentir para o primo, devido às circunstâncias.
A turma ficou assistindo o ensaio até o seu final. Johnny se lembrou de que, tinha que ir à feira para ver o pai e levar as compras para casa. Despediu-se de Luis e seus colegas, marcando um encontro à noite, na quermesse de Santo Antonio.

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