quinta-feira, 30 de abril de 2020

Sábado de aleluia.


J. B. Pessoa

Capítulo - 32 do livro "Guris e Gibi"

O dia amanheceu esplendoroso naquele sábado de feira livre. O sol brilhava intensamente, depois de uma breve chuva, que caiu pela madrugada, deixando a praça um tanto lamacenta, devido o vai e vem dos fregueses nas fileiras de barracas. As obras do mercado municipal estavam chegando à sua fase final, enchendo de orgulho os filhos da terra, que esperavam pacientemente a sua inauguração. O número de pessoas que transitavam pela feira anunciava um dia laborioso. O feriado da Sexta-feira Santa impedia os feirantes de comerciarem as suas mercadorias naquele dia sagrado. Sendo assim, a população compareceu em peso no Sábado de Aleluia, para fazer suas compras e adquirir os mantimentos necessários da semana. Negociantes de todas as espécies de produtos anunciavam seus artigos à viva voz, dando uma característica especial, àquele mercado a céu aberto.
Tõe Porcino acordou bem cedo naquela manhã. Como fazia em todas as semanas, ele pegou seu carro de mão e, na companhia de Mamãe Eu Quero, foi para feira, esperando realizar o seu trabalho com sucesso e ganhar um bom dinheiro com isso. Desta vez, os dois seguiam sem a companhia de Edgar, que tinha arranjado um emprego como auxiliar de caixeiro nas Casas Pernambucanas. Porcino sentia falta do amigo, mas sabia que aquele cargo rendia bem e era mais digno do ponto de vista social. Entretanto, ele não queria uma função como aquela, pois tolhia a sua liberdade. Enquanto o amigo trabalhava seis dias por semana, durante oito horas diárias; ele só trabalhava nas sextas e sábados das oito horas da manhã às três da tarde, tendo o seu tempo livre para realizar outros negócios. Contudo, compreendia a posição de Edgar, que trabalhava usando gravatas em trajes elegantes. Agora que ele estava namorando, necessitava parecer alinhado aos olhos da sua namorada.
Os garotos trabalharam a manhã inteira, virando à tarde sem ter tempo para o almoço. Às quinze horas, quando os feirantes começavam a desmontar suas exposições, eles foram até a barraca de Orlando para tomar um mingau e comer alguma coisa. Porcino alegrou-se ao ver toda a turma reunida no ponto de Orlando; inclusive Edgar, todo engravatado, que estava na sua licença de trabalho. Os garotos estavam merendando naquele momento, observando a árdua tarde de labor dos feirantes. Ao ver o negrinho, Johnny abriu os braços, saudando-o alegremente:
- Tõe Porcino, seu malandro! Por onde você andou que sumiu nos últimos dias?
- Durante a semana inteira fui tomar banho de rio com os meninos, pois não queria ficar em casa, com minha mãe azucrinando a minha paciência, com esse negócio de pecados! – Respondeu o garoto, que acrescentou esfuziante:
- Ainda bem que hoje é sábado de aleluia!
Ah, sim! A tradição católica exige que os féis guardem a Semana Santa com mais esmero. – Explicou Luis Augusto para o garoto.
- Acontece que a maioria dos pais exagera na dose! – Retrucou Johnny, que tinha uma mãe católica e sofria certa repreensão na época da quaresma.
Orlando olhou para a turma com seus olhos sonolentos e disse com desdém, desconsiderando toda a determinação da conduta católica:
- Eu não dou a mínima para essas coisas, pois tudo isso não passa de uma maneira das professoras chatearem a gente. Eu conheço um cara da nossa idade, que bebe cachaça e come carne na Sexta-feira da Paixão. E ainda arrelia dos padres!
- Virgem Maria! – Exclamou Mamãe Eu Quero, pois tinha um medo terrível das coisas relativas com a punição dos pecados e, pasmado com o que ouvia, observou:
- Vai ver que o sujeito tem parte com o Cão!
Orlando ouviu com desprezo a opinião do gibi e, sabendo que ele freqüentava o terreiro do Pai João, tão envilecido pelos católicos e protestantes, disse debochando:
- Parte com o Cão?!... E quem anda em terreiros de candomblé?
Pé de Pata, Nêgo e Géo ficaram calados e permaneceram assim, não querendo dar nenhuma opinião ao assunto, pois eram protestantes. Mipai e Edgar davam pouca importância às coisas da religião, mas gostavam da semana de férias escolares, por conta das resoluções católicas. Entretanto, Porcino e seu primo Mamãe Eu Quero freqüentavam o terreiro do Pai João, mas eram católicos e viam a negação dos valores da Igreja, como uma forma de heresia. Porcino, que havia sido informado pelo professor Jason Wilson, sobre os conceitos filosóficos e históricos das religiões, tomou a palavra e esclareceu para o amigo:
- Somos católicos, mas cultivamos o candomblé como uma tradição africana, que herdamos dos nossos antepassados.
- Por acaso, você já ouviu falar no sincretismo religioso? – Perguntou Luis Augusto ao debochado Orlando?
O rapaz não soube responder e Nêgo, querendo participar da zombaria, disse sorrindo:
- O professor Jason afirmou que é a mistura do catolicismo com o candomblé! Já o pastor Josué disse pra gente, que essas coisas são artes do demônio! Eu acredito no pastor!
Luis olhou para todos e disse com convicção:
Cada pessoa tem a sua religião e ela não tem nenhuma obrigação de dá, a ninguém, satisfação de suas crenças! Vivemos numa democracia com liberdade de culto!
Tõe Porcino completou a opinião do amigo, dizendo:
- O Professor Jason Wilson, que é espírita, afirma que “Deus é religião, mas nenhuma religião representa Deus”, nem mesmo a católica, com toda a sua pretensão.
- Concordo com você e assino em baixo! – Bradou Luis Augusto admirado com a retórica daquele garoto, que apesar de humilde era bastante esforçado nos estudos e ainda era arrego de família.
Com exceção de Johnny e Luis Augusto, todos trabalhavam. Além de pôr os filhos, para estudarem nas escolas convencionais, os pais tinham o costume de colocar seus garotos como aprendiz de alguma profissão. Géo estava aprendendo a arte de pedreiro com seu pai e Pé de Pata estava na Alfaiataria Assis, aprendendo a arte da costura com o Mestre Bria, assim como era conhecido Antonio Pedro de Assis, o mais famoso alfaiate jequieense. Eduardo trabalhava com o pai em sua mercearia,
observando o mundo dos negócios, Nêgo era aprendiz de barbeiro e Mipai estava trabalhando na oficina mecânica do tio.
Porcino virou para Orlando e disse:
- De qualquer maneira a gente veio aqui foi para merendar e não para discutir asneiras.
- Merendar o que camarada! Você chegou tarde e acabou tudo!
- Puta que pariu!... Eu estou morrendo de fome!
- Tem um restinho de mingau de tapioca e dois bolos de ovos! Aceita?
- Fazer o que?... Manda pra cá!
Orlando raspou o fundo do caldeirão e conseguiu encher dois copos de mingau, que formam esvaziados, num piscar de olhos, pelos dois garotos. A meninada ficou conversando sobre a noite do sábado de aleluia e das “queimas de Judas” pela cidade. Ficaram sabendo pelo Guarda Belmiro, que a prefeitura encomendou três: um no Jequiezinho, a ser queimando na Praça da Igreja do Perpétuo Socorro; outro no Campo do America, perto do Colégio Estadual, e o mais importante de todos, que seria queimado na Praça Ruy Barbosa, na área onde eram armados os parques itinerantes.
Johnny e Luis Augusto despediram-se da turma e foram para suas casas, deixando a meninada a dissertar sobre as festas tradicionais da cidade. Quando terminava uma festa, a turma ficava sonhando com a próxima. A primeira festa começava com o Natal, que era seguida do Ano Novo e terminava com o Dia de Reis. Eram as chamadas Boas Festas. Em seguida vinha o carnaval com os três dias de folia. Logo após, era a vez do sábado de aleluia e as festas juninas de Santo Antonio, São João e São Pedro. Havia também as comemorações cívicas, Como o Dois de Julho, o Sete de Setembro e Vinte e Cinco de Outubro, com seus desfiles patrióticos, que fazia muito sucesso entre a garotada jequieense.
Luis Augusto seguia silencioso, enquanto Johnny discorria a respeito do festejo da noite, numa animação juvenil, que parecia não contagiar o seu parceiro. Johnny notou o jeito taciturno do garoto e ficou preocupado, pois ele estava distante e parecia não dar a mínima importância ao assunto da conversa. De repente Luis pára e pergunta ao primo:
- Você acha que as meninas vão assistir a queima do Judas?
- Claro que sim, pois o da praça fica perto da casa de Berenice! – Respondeu o garoto admirado com a pergunta.
Luis permanece calado por uns segundos e meio sem jeito, procura descobrir se existe algo entre o seu primo e a menina que ele gosta.
- Você marcou um encontro com ela?
Johnny percebeu a preocupação do garoto e sentia certo pesar em ter que enganar o primo. Porém sabia que um namoro juvenil não trazia conseqüências futuras, pois eles eram jovens, recém-saídos da infância. Com o tempo, Luis iria pressentir que a menina gostava naturalmente de outro, não havendo nenhuma má fé por parte dele. Pensando assim, o garoto perguntou, fingindo surpresa:
- Um encontro?!... Com quem rapaz?
- Com Berenice!
Johnny respondeu, sorrindo:
- Eu marquei, tu marcaste, ele marcou! Nós marcamos: você, Eduardo e eu ficamos de encontrar com as meninas na noite de hoje!
- Puxa, é deveras!... Eu tinha me esquecido!
Luis estava atônito com os comentários do dia anterior, a respeito de um possível namoro do seu primo com a menina dos seus sonhos. Não estava sabendo como encarar aquela situação, a ponto de esquecer, que eles ficaram de encontrar com as garotas no dia seguinte.
Não querendo ir direto ao assunto, Luis foi contornado a conversa com perguntas evasivas e pouco consistentes, na espera de averiguar, o que tinha de verdade naquela situação constrangedora. De repente ele pergunta de supetão:
- Você acha que Berenice está gostando de Eduardo?
Johnny notou que Luis suspeitava de alguma coisa e ficou aflito com a possibilidade de magoar o primo. A própria Berenice não queria trazer nenhum distúrbio na relação dos garotos, por isso decidiu que seu namoro com Johnny ficasse, por enquanto, em completo segredo. Apenas Eva Marli estava ciente da ocorrência, embora a garota discordasse daquele acordo. Ele olhou para o garoto e disse na intenção de dissolver qualquer preocupação:
- Não! Eva Marli me disse que Berenice gosta de nós três como amigos e ela não tem a intenção de namorar ninguém!
- Deve ser isso mesmo! – Disse o garoto mais animado, que pretendia dar tempo ao tempo e, com isso, criar uma estratégia mais convincente na conquista da bela garota.
Os garotos subiram pela Rua Maracás e chegando ao Alto do Maringá despediram-se um do outro e foram para suas casas, marcando um encontro na porta do cinema, logo mais à noite.


4 comentários:

  1. Excelente capitulo. Não vejo a hora desse livro Guris e Gibis do João Batista Pessoa, ser publicado. Um retrato fiel de Jequié nos anos 50 e 60 sob o ponto de vista de um grupo de adolescentes da Cidade Sol. Um retrato fiel dos inesquecíveis Anos Dourados.

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  2. Um bom livro. Nos mostra uma época diferente em que os costumes eram maravilhosos.

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  3. Belo romance. Lembra a minha adolescência. Na verdade o início. As festas. O parque de Santo António.

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  4. Adorei o romance, pois eu estudei no Grupo Castro Alves.Conheci várias professoras citadas no livro.

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