J. B. Pessoa
Capítulo - 32 do livro "Guris e Gibi"
O dia
amanheceu esplendoroso naquele sábado de feira livre. O sol brilhava
intensamente, depois de uma breve chuva, que caiu pela madrugada, deixando a
praça um tanto lamacenta, devido o vai e vem dos fregueses nas fileiras de
barracas. As obras do mercado municipal estavam chegando à sua fase final,
enchendo de orgulho os filhos da terra, que esperavam pacientemente a sua
inauguração. O número de pessoas que transitavam pela feira anunciava um dia
laborioso. O feriado da Sexta-feira Santa impedia os feirantes de comerciarem
as suas mercadorias naquele dia sagrado. Sendo assim, a população compareceu em
peso no Sábado de Aleluia, para fazer suas compras e adquirir os mantimentos
necessários da semana. Negociantes de todas as espécies de produtos anunciavam
seus artigos à viva voz, dando uma característica especial, àquele mercado a
céu aberto.
Tõe
Porcino acordou bem cedo naquela manhã. Como fazia em todas as semanas, ele
pegou seu carro de mão e, na companhia de Mamãe Eu Quero, foi para feira,
esperando realizar o seu trabalho com sucesso e ganhar um bom dinheiro com
isso. Desta vez, os dois seguiam sem a companhia de Edgar, que tinha arranjado
um emprego como auxiliar de caixeiro nas Casas Pernambucanas. Porcino sentia
falta do amigo, mas sabia que aquele cargo rendia bem e era mais digno do ponto
de vista social. Entretanto, ele não queria uma função como aquela, pois tolhia
a sua liberdade. Enquanto o amigo trabalhava seis dias por semana, durante oito
horas diárias; ele só trabalhava nas sextas e sábados das oito horas da manhã
às três da tarde, tendo o seu tempo livre para realizar outros negócios.
Contudo, compreendia a posição de Edgar, que trabalhava usando gravatas em
trajes elegantes. Agora que ele estava namorando, necessitava parecer alinhado
aos olhos da sua namorada.
Os
garotos trabalharam a manhã inteira, virando à tarde sem ter tempo para o
almoço. Às quinze horas, quando os feirantes começavam a desmontar suas
exposições, eles foram até a barraca de Orlando para tomar um mingau e comer
alguma coisa. Porcino alegrou-se ao ver toda a turma reunida no ponto de
Orlando; inclusive Edgar, todo engravatado, que estava na sua licença de
trabalho. Os garotos estavam merendando naquele momento, observando a árdua
tarde de labor dos feirantes. Ao ver o negrinho, Johnny abriu os braços,
saudando-o alegremente:
- Tõe
Porcino, seu malandro! Por onde você andou que sumiu nos últimos dias?
-
Durante a semana inteira fui tomar banho de rio com os meninos, pois não queria
ficar em casa, com minha mãe azucrinando a minha paciência, com esse negócio de
pecados! – Respondeu o garoto, que acrescentou esfuziante:
-
Ainda bem que hoje é sábado de aleluia!
Ah,
sim! A tradição católica exige que os féis guardem a Semana Santa com mais
esmero. – Explicou Luis Augusto para o garoto.
-
Acontece que a maioria dos pais exagera na dose! – Retrucou Johnny, que tinha
uma mãe católica e sofria certa repreensão na época da quaresma.
Orlando
olhou para a turma com seus olhos sonolentos e disse com desdém,
desconsiderando toda a determinação da conduta católica:
- Eu
não dou a mínima para essas coisas, pois tudo isso não passa de uma maneira das
professoras chatearem a gente. Eu conheço um cara da nossa idade, que bebe
cachaça e come carne na Sexta-feira da Paixão. E ainda arrelia dos padres!
-
Virgem Maria! – Exclamou Mamãe Eu Quero, pois tinha um medo terrível das coisas
relativas com a punição dos pecados e, pasmado com o que ouvia, observou:
- Vai
ver que o sujeito tem parte com o Cão!
Orlando
ouviu com desprezo a opinião do gibi e, sabendo que ele freqüentava o terreiro
do Pai João, tão envilecido pelos católicos e protestantes, disse debochando:
-
Parte com o Cão?!... E quem anda em terreiros de candomblé?
Pé de
Pata, Nêgo e Géo ficaram calados e permaneceram assim, não querendo dar nenhuma
opinião ao assunto, pois eram protestantes. Mipai e Edgar davam pouca
importância às coisas da religião, mas gostavam da semana de férias escolares,
por conta das resoluções católicas. Entretanto, Porcino e seu primo Mamãe Eu
Quero freqüentavam o terreiro do Pai João, mas eram católicos e viam a negação
dos valores da Igreja, como uma forma de heresia. Porcino, que havia sido
informado pelo professor Jason Wilson, sobre os conceitos filosóficos e
históricos das religiões, tomou a palavra e esclareceu para o amigo:
-
Somos católicos, mas cultivamos o candomblé como uma tradição africana, que
herdamos dos nossos antepassados.
- Por
acaso, você já ouviu falar no sincretismo religioso? – Perguntou Luis Augusto
ao debochado Orlando?
O
rapaz não soube responder e Nêgo, querendo participar da zombaria, disse
sorrindo:
- O
professor Jason afirmou que é a mistura do catolicismo com o candomblé! Já o
pastor Josué disse pra gente, que essas coisas são artes do demônio! Eu
acredito no pastor!
Luis
olhou para todos e disse com convicção:
Cada
pessoa tem a sua religião e ela não tem nenhuma obrigação de dá, a ninguém,
satisfação de suas crenças! Vivemos numa democracia com liberdade de culto!
Tõe
Porcino completou a opinião do amigo, dizendo:
- O
Professor Jason Wilson, que é espírita, afirma que “Deus é religião, mas
nenhuma religião representa Deus”, nem mesmo a católica, com toda a sua
pretensão.
-
Concordo com você e assino em baixo! – Bradou Luis Augusto admirado com a
retórica daquele garoto, que apesar de humilde era bastante esforçado nos
estudos e ainda era arrego de família.
Com
exceção de Johnny e Luis Augusto, todos trabalhavam. Além de pôr os filhos,
para estudarem nas escolas convencionais, os pais tinham o costume de colocar
seus garotos como aprendiz de alguma profissão. Géo estava aprendendo a arte de
pedreiro com seu pai e Pé de Pata estava na Alfaiataria Assis, aprendendo a
arte da costura com o Mestre Bria, assim como era conhecido Antonio Pedro de
Assis, o mais famoso alfaiate jequieense. Eduardo trabalhava com o pai em sua
mercearia,
observando
o mundo dos negócios, Nêgo era aprendiz de barbeiro e Mipai estava trabalhando
na oficina mecânica do tio.
Porcino
virou para Orlando e disse:
- De
qualquer maneira a gente veio aqui foi para merendar e não para discutir
asneiras.
-
Merendar o que camarada! Você chegou tarde e acabou tudo!
- Puta
que pariu!... Eu estou morrendo de fome!
- Tem
um restinho de mingau de tapioca e dois bolos de ovos! Aceita?
-
Fazer o que?... Manda pra cá!
Orlando
raspou o fundo do caldeirão e conseguiu encher dois copos de mingau, que formam
esvaziados, num piscar de olhos, pelos dois garotos. A meninada ficou
conversando sobre a noite do sábado de aleluia e das “queimas de Judas” pela
cidade. Ficaram sabendo pelo Guarda Belmiro, que a prefeitura encomendou três:
um no Jequiezinho, a ser queimando na Praça da Igreja do Perpétuo Socorro;
outro no Campo do America, perto do Colégio Estadual, e o mais importante de
todos, que seria queimado na Praça Ruy Barbosa, na área onde eram armados os
parques itinerantes.
Johnny
e Luis Augusto despediram-se da turma e foram para suas casas, deixando a
meninada a dissertar sobre as festas tradicionais da cidade. Quando terminava
uma festa, a turma ficava sonhando com a próxima. A primeira festa começava com
o Natal, que era seguida do Ano Novo e terminava com o Dia de Reis. Eram as
chamadas Boas Festas. Em seguida vinha o carnaval com os três dias de folia.
Logo após, era a vez do sábado de aleluia e as festas juninas de Santo Antonio,
São João e São Pedro. Havia também as comemorações cívicas, Como o Dois de
Julho, o Sete de Setembro e Vinte e Cinco de Outubro, com seus desfiles
patrióticos, que fazia muito sucesso entre a garotada jequieense.
Luis
Augusto seguia silencioso, enquanto Johnny discorria a respeito do festejo da
noite, numa animação juvenil, que parecia não contagiar o seu parceiro. Johnny
notou o jeito taciturno do garoto e ficou preocupado, pois ele estava distante
e parecia não dar a mínima importância ao assunto da conversa. De repente Luis
pára e pergunta ao primo:
- Você
acha que as meninas vão assistir a queima do Judas?
-
Claro que sim, pois o da praça fica perto da casa de Berenice! – Respondeu o
garoto admirado com a pergunta.
Luis
permanece calado por uns segundos e meio sem jeito, procura descobrir se existe
algo entre o seu primo e a menina que ele gosta.
- Você
marcou um encontro com ela?
Johnny
percebeu a preocupação do garoto e sentia certo pesar em ter que enganar o
primo. Porém sabia que um namoro juvenil não trazia conseqüências futuras, pois
eles eram jovens, recém-saídos da infância. Com o tempo, Luis iria pressentir
que a menina gostava naturalmente de outro, não havendo nenhuma má fé por parte
dele. Pensando assim, o garoto perguntou, fingindo surpresa:
- Um
encontro?!... Com quem rapaz?
- Com
Berenice!
Johnny
respondeu, sorrindo:
- Eu
marquei, tu marcaste, ele marcou! Nós marcamos: você, Eduardo e eu ficamos de
encontrar com as meninas na noite de hoje!
-
Puxa, é deveras!... Eu tinha me esquecido!
Luis
estava atônito com os comentários do dia anterior, a respeito de um possível
namoro do seu primo com a menina dos seus sonhos. Não estava sabendo como
encarar aquela situação, a ponto de esquecer, que eles ficaram de encontrar com
as garotas no dia seguinte.
Não
querendo ir direto ao assunto, Luis foi contornado a conversa com perguntas
evasivas e pouco consistentes, na espera de averiguar, o que tinha de verdade
naquela situação constrangedora. De repente ele pergunta de supetão:
- Você
acha que Berenice está gostando de Eduardo?
Johnny
notou que Luis suspeitava de alguma coisa e ficou aflito com a possibilidade de
magoar o primo. A própria Berenice não queria trazer nenhum distúrbio na
relação dos garotos, por isso decidiu que seu namoro com Johnny ficasse, por
enquanto, em completo segredo. Apenas Eva Marli estava ciente da ocorrência,
embora a garota discordasse daquele acordo. Ele olhou para o garoto e disse na
intenção de dissolver qualquer preocupação:
- Não!
Eva Marli me disse que Berenice gosta de nós três como amigos e ela não tem a
intenção de namorar ninguém!
- Deve
ser isso mesmo! – Disse o garoto mais animado, que pretendia dar tempo ao tempo
e, com isso, criar uma estratégia mais convincente na conquista da bela garota.
Os
garotos subiram pela Rua Maracás e chegando ao Alto do Maringá despediram-se um
do outro e foram para suas casas, marcando um encontro na porta do cinema, logo
mais à noite.
Excelente capitulo. Não vejo a hora desse livro Guris e Gibis do João Batista Pessoa, ser publicado. Um retrato fiel de Jequié nos anos 50 e 60 sob o ponto de vista de um grupo de adolescentes da Cidade Sol. Um retrato fiel dos inesquecíveis Anos Dourados.
ResponderExcluirUm bom livro. Nos mostra uma época diferente em que os costumes eram maravilhosos.
ResponderExcluirBelo romance. Lembra a minha adolescência. Na verdade o início. As festas. O parque de Santo António.
ResponderExcluirAdorei o romance, pois eu estudei no Grupo Castro Alves.Conheci várias professoras citadas no livro.
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