J. B. Pessoa
Capítulo - 20 do livro " Guris e Gibis".
Eram quase oito
horas da noite quando a turma se despediu das meninas. Aquele programa tinha
sido muito intenso, pois normalmente as tertúlias começam por volta das cinco e
geralmente terminava antes das sete horas. Naquele momento a porta do Cine
Bonfim fervilhava de pessoas, querendo assistir ao famoso melodrama, enquanto o
Cine Teatro Jequié exibia “Ladrões de Bicicletas”, um excelente filme do
neo-realismo italiano. Apesar de ter sido lançado seis anos antes e ser
considerado como uma verdadeira obra de arte, o filme de Vittorio de Sica
recebia poucos espectadores, pois a população não estava acostumada a uma
estética mais sofisticada. Os garotos resolveram ir a Praça Ruy Barbosa para
encontrar o resto da turma, que deveriam estar patinhando naquele momento. Os
garotos comentavam alegremente o programa assistido, enquanto Orlando
acompanhava o grupo, todo amuado, sem dizer uma palavra. Géo, percebendo o
motivo de seu aborrecimento, resolveu atiçar o seu mau humor, na intenção de
provocar no rapaz alguma reação comprometedora.
- O que é que
há Orlando?... O gato comeu a tua língua?
- Me deixa no
meu canto, sujeito! Por falar em gato, quando ele não está por perto, os ratos
passeiam!
Pé de Pata, que
o conhecia muito bem e sabia do seu menosprezo pelos garotos menos favorecidos,
perguntou?
- Onde estão os
ratos que lhe incomodam?
- Deixa estar,
que eu não vou me aborrecer com isso! Vou deixar pra quem é de direito tomar as
previdências! Mas concordo com o que diz o povo: “Cada macaco em seu galho!”
Não entendendo
aquela insinuação, Luís perguntou:
- Do que é que
você está falando?
Orlando
virou-se para ele e desabafou:
- O pai de
Berenice não gosta que ela se misture com qualquer um! Ele me encarregou de
cuidar dela e sempre dei conta do recado. Hoje dei bobeira e ela acabou
conhecendo pessoas que não são do seu meio.
Os garotos
nunca aprovaram o modo bajulador de Orlando com as pessoas de posses. Sabiam
que o companheiro de infância tinha seus sonhos de grandeza, e relevava isso,
pela sua condição social. Porém, naquele momento, toda a turma ficou pasma
diante de sua atitude. O rapaz revelou a todos, o seu desprezo pelos velhos
amigos. Indignado com aquilo, Eduardo bradou, com raiva:
- O sacana ta
com ciúmes!... Espalhou por aí que era namorado da menina e agora vem com essa
dor de corno, depois que todo mundo descobriu a mentira.
Orlando,
bufando de raiva, esbravejou:
Eu sei que você
é invocado por ela! Mas pode cair fora, que ela não é para seu bico!
- Por que
não?!... Sou pobre, mas sou de boa família! Estou estudando e um dia vou ser um
grande advogado! Ademais, eu sou bonito, porra! Posso almejar
qualquer garota
no mundo! – Protestou com veemência Eduardo. O garoto estava revoltado com o
descaso do camarada.
Géo e Pé de
Pata sentiam-se, também, ofendidos pelas colocações de Orlando. Não suportando
aquela afronta, Géo gritou com ódio:
- Ela não é
para o bico de um mequetrefe feio como tu, que nunca teve uma namorada decente.
Vendo os ânimos
acirrados, Johnny resolveu pôr um pouco de bom senso naquela discussão insensata,
alertando que o respeito é o dever de todos. Luis, ainda pasmo com o que ouviu,
esclareceu a Orlando:
- Fui eu quem
apresentou Berenice aos meninos! Ela foi muito gentil e atenciosa com todos e
nos convidou a acompanhá-la ao Teatro da Casa Paroquial. Porcino, Nêgo, Mipai e
Edgar foram patinar e eu, Johnny, Géo, Pé de Pata, Mamãe Eu Quero e Eduardo,
acompanhamos as meninas e fizemos amizade com elas. Agora são nossas amigas! Se
você acha que não merecemos essa honra, é um problema seu.
- Veremos o que
Mipai e Edgar acham disso! – Alertou Mamãe Eu Quero em tom de ameaça, pois
sabia do temor de Orlando pelos garotos.
Ao perceber a
encrenca em que havia se metido, Orlando tratou de corrigir o seu erro. Ele
temia bastante os dois garotos, principalmente o famoso Edgar Pezão, de quem
havia recebido uma boa sova, no passado. Receoso com as possíveis desforras dos
dois dissipou-se de toda a sua arrogância e, baixando o tom de sua voz, disse
quase sussurrando:
- O que eu
posso dizer é pra vocês tomarem cuidados, que o pai da menina é uma fera!
- E daí?!...
Olha pra minha cara de medo! - Gritou Géo, bastante nervoso.
- Querendo
pacificar uma turminha de exaltados, os quais não engoliam desaforos de
ninguém, Johnny articulou com ponderação:
- Isso é
problema nosso! “Cada um cuida de si e Deus de nós todos!” Agora vamos mudar o
rumo dessa conversa, que não está agradando a ninguém!
Os garotos
aquietaram-se e seguiram tranquilos em frente. Orlando entendeu que tinha sido
um cretino. Ficou arrependido de desprezar uma turma que sempre o protegeu. Ele
tinha a consciência que também era pobre e o único remediado ali era Luis.
Acompanhava a turma, todo cabisbaixo, falando pouco e só Johnny dava um pouco
de atenção á sua conversa, enquanto a garotada ignorava a sua presença. Todos
os garotos seguiram juntos para a praça, esquecendo a ocorrência e comentando o
programa assistido.
O parque infantil,
que só recebia menores de dez, anos estava fechado naquele momento. Enquanto
isso, a pista de patinação funcionava desastradamente, com vários garotos
disputando, agressivamente, os poucos pares existentes. Eles eram controlados
por um funcionário municipal, que era o vigia e responsável pelo funcionamento
e manutenção daquela área de lazer. Como a demanda era maior do que o número
dos patins existentes, alguns moleques acusavam o pobre vigia de ter escondido
alguns, por pura má vontade. Entre a molecada que estavam fazendo arruaça, se
destacava um velho conhecido da turma, chamado Antonio Balbino dos Santos. Era
um adolescente de quinze anos, visinho de Orlando, que tinha má reputação entre
as educadoras jequieenses. Acompanhando Balbino nas molecagens, estavam os
famigerados Alcides Zoião e
Bentevi que
comandavam um grupo de desordeiros, os quais faziam uma grande baderna,
deixando o velho vigia que tinha um antebraço amputado, fulo de raiva com tudo
aquilo. A molecada depreciava o pobre homem que, sendo mutilado, apresentava
certa dificuldade em realizar o seu trabalho.
Os meninos
foram ao encontro dos seus amigos que, naquele momento, estavam sentados em um
banco do jardim, um pouco distante da balburdia, observando aqueles
acontecimentos. Às oito horas da noite, o velho recolheu os patins, finalizando
aquela brincadeira no horário estipulado pela prefeitura. A maioria dos meninos
que estavam patinando acatou, sem reclamar, a decisão. Porém, os arruaceiros
começaram a vaiar o pobre homem, que usava um só braço, enquanto varia o local
e recolhia o lixo deixado pela meninada que freqüentava o recinto. Alcides
morria de rir, enquanto Bentevi gritava, cantando:
- Ô vigia
cotó!...
Balbino era o
mais animado. Ele subiu na cerca de madeira e arame cruzado, que protegia e
separava o parque infantil da pista de patins e começou a cantar uma cantiga
pejorativa, que ofendia o vigia:
- “O galo canta
e o macaco assovia”!
A molecada
completava:
- “A pica do
jegue no cu do vigia”!
Enquanto a
cantiga prosseguia, seguida de mais vaias, alguns moleques pulavam a cerca e
iam brincar nas dependências do parque infantil, cujos artefatos não foram
construídos para suportar o peso daqueles adolescentes que iam dos treze aos
dezesseis anos. Os mais impertinentes era Balbino e Alcides que davam trabalho
dobrado ao pobre do vigia. Alcides ficava numa extremidade do parque, correndo
de um canto para outro, enquanto Balbino ficava na outra, acossando o homem
numa espécie de brincadeira infantil chamada pique.
O vigia tinha
um macaquinho de estimação, que ficava preso, amarrado pela cintura em cima de
uma cabana, onde eram guardados os apetrechos de manutenção do parque. Naquele
momento estava visivelmente agitado, emitindo guinchos nervosos, andando de um
lado para outro, parecendo incomodado com os enxovalhos sofridos pelo seu dono.
Edgar estava indignado com tudo aquilo. Pensou em intervir, mas foi aconselhado
por Porcino a deixar as coisas seguirem o seu curso natural, que naquela hora
começava a ficar interessante, pelo fato de dois guardas municipais estarem, ao
longe, observando o desenrolar daquela cena, na espera de uma oportunidade para
intervir legalmente.
Balbino pegou
uma metade de laranja chupada e jogou a casca com muita força, atingindo a cara
do pequeno macaco, que guinchou de dor. O vigia quando viu aquilo, urrou de
raiva, esbravejando injurias. Enlouquecido pelo ódio, partiu pra cima do rapaz
como um raio. Assustado com a reação do homem, o moleque partiu dali sem
demora. Quando tentava pular o muro para escapar, Balbino escorregou e teve a
infelicidade de cair dentro do parque, sofrendo o espetacular bote do irado
vigia, o qual agarrou o moleque com vontade. Tremendo de medo, Balbino sentiu o
pulso forte de um trabalhador, acostumado à lida diária que, prendendo o seu
pescoço pelo braço cotó, o carregou até a cabana, aplicando-lhe uma tremenda
surra com uma vara de marmelo. Os gritos de Balbino foram camuflados pelas
vaias da molecada, que naquela hora estavam se divertindo com a má sorte do
camarada. Alcides e Bentevi foram os únicos que tentaram ajudar
Balbino. Não
pelo sentimento de irmandade que os unia, mas por achar um grande desaforo, ver
um jovem da sua faixa etária, ser surrado por um pobre servidor público. Eles
pularam o muro e atacou o vigia, que não largou Balbino e os enfrentou
corajosamente. Naquele instante, os dois guardas que estavam de vigília, veio
em socorro do vigia e aplicaram, com seus cassetetes, boas “borrachadas” em
Alcides e Bentevi, que debandaram dali, rapidamente, sob a vaia geral, da alegre
molecada. O vigia entregou Balbino aos guardas, os quais o ameaçaram com duas
dúzias de “bolos” de palmatória, caso ele retornasse a perturbar o ambiente. O
moleque choramingando de medo, com as costas ardendo pelas chicotadas, jurou
por todos os santos, que nunca mais iria aparecer por ali. Os guardas soltaram
Balbino, que desapareceu rapidamente de cena, sentindo um grande alivio por não
ter sido preso. Logo após aquela balburdia, os guardas se despediram do velho
vigia, que mais calmo, voltou às suas atividades corriqueiras, encerrando mais
um episódio do seu árduo trabalho.
Do outro lado
da pista, sentados no banco do jardim, a turma comentava os acontecimentos,
tecendo elogios ao valente vigia e escarnecendo do desafortunado camarada de
Orlando, que tentava explicar o comportamento do amigo.
- Balbino é um
bom sujeito, o mal dele são as más companhias!
- Nada disso! O
sujeito não presta! Sempre sacaneou os mais fracos. Ele costuma tomar as
revistas dos meninos pequenos e ainda dar cascudos neles! – Protestou Mamãe Eu
Quero com vigor. Ele odiava o moleque pelos assaltos às suas revistas em
quadrinhos e pelas agressões sofridas no passado.
- É verdade! –
Concordou Tõe Porcino, que conhecia o caráter de Balbino e não gostava dele.
Luis, intrigado
com as amizades esdrúxulas de seus amigos, perguntou:
- Como é que
vocês, sendo boa gente, têm amigos desse tipo?
- Amizades
antigas da época que éramos pequenos. A maioria dos nossos pais são amigos –
Respondeu Pé de Pata.
Edgar, que
também não gostava de Balbino, explicou:
- Balbino é um
biribano sem vergonha, mas a mãe dele é gente boa, amiga da minha mãe. Ela é
uma viúva trabalhadeira, muito católica e todos os domingos vai à missa. Não
tem culpa de ter um filho sacana.
Tendo sido
visinho de Balbino desde que nasceu, Mipai contou para Luís sua relação de
amizade com o rapaz:
- Conheço o
cara desde que me entendo por gente. Ele é mais velho do que eu dois anos.
Quando eu era pequeno ele me batia muito, tomava minhas revistas e bolas de
gude! Quando cresci um pouco e fiquei mais forte, dei nele uns bons murros.
Desse dia prá frente, o sacana começou a me respeitar!
- “Uns e
outros” que andam falando bem dele, também não são “flor, que se cheire”! –
Insinuou Mamãe Eu Quero, se referindo a Orlando e do episódio anterior.
-Pois é! –
Disse Géo pensativo, acrescentando:
- Como diz os
mais velhos: “O pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto”!
- Nesse ditado
eu não acredito! As pessoas podem e devem mudar – Disse Luis
- Eu concordo
com Luis! Por isso digo que “águas passadas não movem moinho!” – Comentou
Johnny, querendo encerrar o assunto, sabendo que os garotos adoravam um
provérbio popular.
- É isso mesmo,
mas não podemos esquecer o que diz o povo: “quem com porcos andam, farelos
comem!” – Retrucou Eduardo com outro provérbio.
- É isso
mesmo!... Eu acho que a gente deve limitar nossas amizades. Por isso mesmo que
adotamos o lema dos Três Mosqueteiros. – Alertou Tõe Porcino
- “Um por todos
e todos por um!” gritaram simultaneamente Géo, Pé de Pata e Nêgo.
Luís concordou
sorrindo, depois consultando o seu relógio, disse preocupado:
- Tenho que ir
embora. Prometi a minha mãe chegar antes das nove!
- Eu também! –
Concordou Johnny, que acrescentou:
- Hoje foi um
domingo especial! Reencontrei o meu primo, que é amigo dos meus amigos e
fizemos amizade com a menina mais bonita da cidade!
Os meninos
concordaram com o garoto e juntos seguiram para suas casas, comentando os mais
variados assuntos, enquanto o relógio da matriz badalava as vinte e uma horas.
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