J. B. Pessoa
Em
certa ocasião, quando a boemia acontecia nas noites enluaradas de Jequié,
apareceu um estranho indivíduo que, aos poucos, se transformou no mais famoso
boêmio da região. Ele era um sujeito de porte estanho, magro, de estatura
mediana. Tinha a tez parda e cabelos encaracolados, grisalhos nas têmporas,
aparentado uns quarenta anos de idade. Vinha lá das bandas do Recôncavo.
Trajava um uniforme típico dos malandros da capital: terno de linho branco,
camisa vermelha de seda pura, gravata escura e chapéu de feltro de abas curtas.
Havia sido atraído pela campanha política que fervilhava a cidade, pois um
filho da terra tinha se candidatado a governador e promoveu uma grande mostra
de capoeira, com os melhores expoentes da capital baiana, a qual durou um final
de semana. A apresentação era sempre acompanhada de churrascos, destiladas e
muitos engradados de cerveja. O sujeito, que fazia parte do espetáculo, adorou
tudo aquilo, fazendo enorme sucesso com a sua destreza.
A
eleição passou e o filho da terra saiu vitorioso. Após o pleito e da comemorada
vitória, o sujeito resolveu ficar na cidade. Como era bem apessoado, fez boas
amizades nos bordeis e foi logo se aproximando da malandragem local. Era um
grande jogador e malandro esperto, revelando-se logo, um exímio no jogo dos
pauzinhos. Jamais perdia uma partida, ganhando muito dinheiro com isso,
principalmente se o jogo fosse o duelo das pingas, conhecido como roleta
jequieense. Esse tipo de competição atraia muita gente nos bares jequieenses,
para apostar ou assistir os mais famosos beberrões da cidade em suas
performances. O singular duelo das pingas consistia em cada jogador beber uma
dose de bebida, se acaso perdesse o palpite. Conforme o andamento da partida, o
menos forte e que ingerisse mais doses da bebida, certamente caia ou vomitava
primeiro, perdendo a contenda.
O
malandro era “bom de copo” e quando desafiado, deixava fora de combate todos os
seus adversários. Tornou-se famoso na cidade como o galã das domésticas e nos
bordeis era sempre favorecido pelas mais belas damas da noite, sendo evitado
pelos cáftens, pois o sujeito, além de capoeirista, era excepcional no manejo
da navalha.
O
sujeito, além de invencível no duelo das pingas, era muito exibicionista e
falador. O fato de não perder uma, dava-lhe a fama de ter algum pacto sinistro
que, com o passar do tempo, foi sendo aumentado com os comentários do povo. A
malandragem acabou se implicando com o sujeito e até mesmo os camaradas mais
chegados, tinham-se aborrecido com aquele forasteiro.
Um
belo dia, em que o soteropolitano não se encontrava por perto, três dos mais
famosos malandros da cidade resolveram nocautear o imbatível beberrão. Para
levar a cabo o plano, procuraram os garçons do Bar Primavera que detestavam
o
sujeito. Ficou acertado que, enquanto era servida batida de limão para o
notívago, seus opositores tomavam apenas doses de limonada.
Os
malandros sabiam que todo o dia, ao entardecer, o sujeito aparecia no famoso
bar e esperaram pacientemente por ele. O Bar Primavera era o mais afamado
reduto da boemia jequieense. Ficava situado no centro da cidade, na Praça Ruy
Barbosa. Parecia com um saloon do Oeste Americano e era frequentado pelos
notívagos mais desordeiros de Jequié, principalmente no andar de cima, onde
funcionava um salão de sinuca.
A noite
começava animada com os velhos boêmios declamando seus poemas parnasianos,
sendo contestados pelos estudantes que preferiam os modernistas. Alguns
comerciários discutiam futebol e bebia alegremente, ouvindo no rádio um recente
bolero. Logo após a chegada do sujeito, um dos malandros foi ao seu encontro e,
depois de algumas lisonjas disse-lhe sorrindo:
- Tem
dois “caras” aqui, que quer disputar com a gente o jogo dos pauzinhos!
-
Legal! É comigo mesmo!... E como é o esquema? – Perguntou o sujeito com a característica
ginga dos malandros de Salvador
O
trapaceiro olhou para o sujeito e aparentando desinteresse, disse:
-
Vamos jogar pauzinhos e cada um por si! O que vencer a mão obriga os outros a
tomar uma dose de bebida e o que ficar de pé e sem vomitar até o final, ganha o
jogo.
- Ué,
jogo duplo?... Pauzinhos e roleta?!
- Se
estiver na sua competência! – Disse o malandro com desdém.
-
Deixa comigo! – Respondeu o outro.
O
sujeito acompanhou o malandro até a mesa, onde estavam os seus camaradas. Sem
saber que os três eram comparsas, no golpe que iriam aplicá-lo, perguntou-lhes
com um sorriso zombador.
-
Então meus camaradas, o que vamos beber?
-
Batida de limão! – Respondeu o garçom com um litro fresquinho nas mãos.
- E
vamos apostar o que?
- Cada
um de nós casa um conto de réis. Quem ficar de pé leva todo o montante! – Disse
o outro embusteiro.
O
duelo começou chamando a atenção de todos que se encontravam no recinto e
seguiu noite adentro. Três malandros tomando limonada e o opositor engolindo
fortíssimas doses de batida de limão. O sujeito tomava a bebida, estalando a
língua de satisfação e, como era exímio no jogo dos pauzinhos, obrigavam os
três malandros a tomar muito mais limonada, do que ele tragava a suas doses de
cachaça com limão. Lá pelas tantas da noite não suportando seus estômagos
entupidos de limonada, os três malandros ficaram enjoados, vomitando um por um,
seguidamente.
-
Ganhei a aposta! – Bradou em tom de galhofa o biriteiro. Pegou o dinheiro e
preparando-se para ir embora, sorriu para a clientela do bar, dizendo para os
derrotados:
- Até
a próxima, otários!
Desmoralizados,
os malandros juraram vingança. Os fregueses do bar, que não via com bons olhos
um indivíduo de fora cantar de galo em Jequié, ofereceram ajuda. Contando desta
vez, também, com a cumplicidade do gerente, o garçom iria servir para o pinguço
algo mais forte que uma simples batida de limão.
Dias
depois, o sujeito voltou novamente ao bar. Terminando a sessão de cinema que
ele assistia, sentiu sede e resolveu procurar seus companheiros para tomar uns
tragos, refrescar a garganta e se curar da terrível coceira, que lhes
presentearam as pulgas do Cine Bonfim. Entrando no bar, tirou do maço um
cigarro, colocou nos lábios, ascendendo-o em seguida, tirando grossas
baforadas, enquanto pedia uma cachaça. Tomou a dose de um gole só, estalou a
língua com prazer e comentou:
- Esta
é da boa!
Os
malandros estavam sentados na parte direita do bar, próximo ao balcão, bem
junto do barman. Vendo a peculiar figura, convidaram-no a sentar-se com eles e
pediram outra rodada.
- Hoje
é por minha conta! – Disse um deles, que acrescentou:
– Só
senta na minha mesa quem for macho.
- Foi
à primeira coisa, que a parteira disse, quando me viu! – Bradou o
soteropolitano em tom de prosa.
Um dos
malandros virou para o sujeito e disse:
- Nós
quatro somos homens da noite. O dia só nos serve para dormir. Vamos disputar
novamente: só que desta vez iremos casar cinco mil cruzeiros cada um e, apenas
um leva os vinte mil.
O
sujeito olhou para os três e disse:
-
Ainda tenho comigo as três “abobrinhas” que ganhei de vocês! Só preciso de um
empréstimo de dois mil cruzeiros e isso me parece um pouco difícil de
conseguir.
O
gerente do bar entreviu e disse:
- Não
se preocupe meu camarada eu lhe empresto o dinheiro.
O
sujeito sorriu, recebendo duas notas novinhas de mil cruzeiros, assinou o
recibo e perguntou:
- A
que devo tamanha generosidade?
- É
que quero ver o circo pegar fogo! – Respondeu às gargalhadas o gerente, sendo
compartilhado por todos os presentes naquele momento.
O barman
olhou seriamente para o sujeito e disse:
-
Desta vez não haverá jogo de pauzinhos e bebida servida será o “barrilzinho”!
Encara essa?
O
sujeito sorriu com desdém e falou mansamente:
-
Irmãozinho!... Pode vir quente que eu estou fervendo!
Naquele
começo de noite, o bar estava um tanto vazio. Além dos quatro jogadores, havia
o gerente, dois garçons, o barman e três costumeiros beberrões, que estavam
achando tudo aquilo, muito divertido.
- O
garçom serviu aos quatro apostadores uma rodada de “barrilzinho”. A peculiar
bebida era uma mistura de todo os tipos de bebida possível, que deixava fora de
órbita, àqueles que não estavam acostumados a ingeri-la. Conforme o plano
estabelecido, o barman colocava algumas gotas de éter no copo do sujeito. O
homem virava o copo à goela e o depositava na mesa totalmente vazio. A noite
foi passando e o bar foi recebendo mais fregueses, que começaram a torcer pelo
soteropolitano À medida que o sujeito solvia tragos e mais tragos, o barman,
furioso com o sujeito, aumentava a quantidade de éter e lá pelas tantas da
noite, aproveitava a ocasião para acrescentar água sanitária, suco de pimenta e
outros ingredientes cavernosos. O sujeito bebia todas as doses, avidamente,
diante dos olhares incrédulos dos presentes. A noite ia morrendo e um galo da
vizinhança anunciava o amanhecer. Os fregueses normais do bar já tinha ido
embora, restando apenas os boêmios de plantão. Dois malandros, já fora de
combate, roncavam desgovernados em suas cadeiras. Nesse momento o sujeito
levantou-se e foi ao sanitário. O gerente do bar, que odiava o sujeito, por ele
haver conquistado certa dama de sua estima, e tendo a cumplicidade de seus
funcionários, colocou uma dose cavalar de formicida no copo do sujeito, diante
do olhar ensandecido do barman, que acrescentou uma pequena quantidade de vinho
para disfarçar o aroma pouco agradável. O malandro restante, completamente
embriagado, vendo tudo aquilo, balbuciou contente:
- Hoje
o filho da égua bate a “caçoleta”!
-
Hoje, ou nunca mais! – Retificou o garçom.
O
barman colocou o sinistro conteúdo em uma tulipa enchendo-a até a beirada e a
outra tulipa encheu com a bebida normal, oferecendo-as aos respectivos donos.
Nesse momento, o alvorecer já havia chegando e os poucos boêmios que restavam,
tinham ido embora, sem saber o que realmente estava acontecendo. Apenas os três
beberrões do início da noite, muito embriagados, acostumados a ver o raiar do
dia, aproximaram da mesa para ver a contenda, pois perceberam o golpe que o
pessoal do bar estava aplicando no sujeito. Os dois apostadores levantaram-se
da cadeira, ficando em pé e, em um gesto nobre, ergueram suas tulipas, tocando
uma na outra, bebendo-as de vez, enquanto a pandegada entoava o “vira, vira
virou!”. O malandro que estava tomando a bebida normal, não chegou a ingerir
todo o conteúdo da tulipa e, como uma jaca podre, tombou ao chão. O sujeito
bebeu toda a sua tulipa, deu um tremendo arroto e olhando para o adversário
abatido, disse em tom de desprezo:
-
Nocaute!
O
garçom e o barman não acreditavam no que viam. Entreolharam-se bastante
assustados e um deles comentou:
- O
cara deve ter parte com o Cão!
O
sujeito pegou o dinheiro das apostas e devolvendo o que devia ao gerente, se
despediu com falsas mesuras. Ao sair, resolveu provocar os funcionários do bar,
presenteando-os com suas fétidas flatulências, cuja sonoridade ecoou por todo o
recinto.
O dia
a seguir transcorreu sem nenhuma novidade. À tardinha chegaram ao bar, os
empregados do turno da noite. Os dois garçons e o barman estavam em
perspectiva, à procura de noticias do famoso notívago de Salvador. De repente
ele apareceu todo sorridente, cumprimentando os presentes e, dirigindo-se ao
barman, pediu em seguida:
- Uma
branquinha, pura!... Daquela que matou o guarda!
- É
pra já – Disse o barman que olhava boquiaberto para o sujeito, que não denotava
o menor resquício de uma ressaca. O gerente, atônito, perguntava a si mesmo,
como poderia existir alguém assim. “Aquele cara deveria ser de outro mundo”,
pensou ele, pois havia ingerido uma dose cavalar de formicida e continuava
vivo! Entrementes, alguém entra no bar e pede um copo com água. O garçom tirou
a água diretamente do “carote” que tinha trazido do rio. Era época de uma
grande seca e faltava água corrente na cidade. Depois de encher o copo com
água, o garçom colocou-o no balcão. O soteropolitano, quando viu o copo cheio
de água, pensando que fosse a sua dose de cachaça pegou o copo e virou de vez,
bebendo tudo numa golada só. Subitamente, um terrível grito de dor ressoou por
todo o recinto, sendo ouvido por toda a Praça Ruy Barbosa, atraindo os
transientes para o interior do bar. Apavorados, os funcionários do bar viram o
corpo sem vida do maior cachaceiro que tinha aparecido na cidade. Suspeitaram
que o sujeito tivesse sido envenenado, mas, ao investigar o conteúdo do copo,
constataram, com muita surpresa, que o líquido mortífero que tinha dado fim ao
famoso notívago, era a puríssima água cristalina do Rio das Contas.
Esse
conto faz parte do livro não publicado, “Velhos Tempos Jequieenses”.
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