domingo, 23 de dezembro de 2018

“O PEQUENO CINEMA DOS GRANDES FILMES”

                              Carlos Éden Meira
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O Cine Bonfim era o nosso Cinema Paradiso. Assim como o velho cinema apresentado no filme italiano de Giuseppe Tornatore, o Cine Bonfim tinha características de um típico cinema provinciano, dos áureos tempos da chamada sétima arte. Situava-se na Rua Trecchina, num velho prédio da família Letto, imigrantes italianos que introduziram os primeiros cinemas em Jequié, o que lhe dá ainda maior afinidade com o Cinema Paradiso. Qualquer jequieense que conheceu o velho cinema, ao assistir Cinema Paradiso, se sente como se estivesse viajando no tempo, como se estivesse voltado aos tempos do “pequeno cinema dos grandes filmes”, slogan usado nos anúncios do Cine Bonfim. O nosso velho cinema, entretanto, tinha características “sui generis”. O proprietário, seu Benjamin, era parecidíssimo com o ator Glenn Ford. Era engraçado chegar à bilheteria do cinema e ter o Glenn Ford vendendo ingressos, substituindo dona Palmira, esposa de Benjamin, que era a responsável por esta tarefa. Pernambuco, o porteiro bancava o durão no seu cargo, mas, se comovia quando algum dos garotos “chorava misérias” na portaria, por não ter conseguido dinheiro em casa para o ingresso. Pernambuco, “boa praça”, deixava o moleque entrar.
Havia também, seu Camilo. Era uma espécie de zelador e carregador dos cartazes que eram colocados em locais movimentados, no centro da cidade. Braz, sobrinho de Benjamin era o operador de projeção, tendo sido mais tarde, substituído por Henrique, filho de Benjamin e depois, por Marivaldo Carvalho e ainda, por Leolino Meira. O Cine Bonfim tinha também, o seu cheiro característico. Era uma mistura do perfume das garotas, da brilhantina dos rapazes, da fumaça dos cigarros, de goma de mascar, de mofo do velho forro do teto e de suor, juntando-se aos odores emanados dos velhos vasos sanitários maltratados. Tudo isso resultava num cheiro só. Era o típico “cheirinho do Cine Bonfim”.
Houve um fato engraçado, já contado e recontado por muita gente, que foi inclusive comentado pelo professor Emerson Pinto no seu livro “A Nova História de Jequié”, e que algumas pessoas afirmam ter acontecido no Cine Bonfim. Na Semana Santa, todo ano era exibido o filme “Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”, uma produção dos anos 20 cuja cópia bastante danificada, era constantemente emendada, resultando numa interessante cena em que, durante a “Via Crucis”, momento em que Jesus carrega a cruz pelas ruas de Jerusalém sendo açoitado pelos soldados romanos, a cena muda repentinamente para o “cowboy” Buck Jones, a cavalo numa desenfreada perseguição a bandidos, num tiroteio infernal. A garotada vibrava com isso, curtindo a cena inesperada. Alguns gritavam, animados: “Buck Jones vai salvar Jesus”! Depois, a cena voltava novamente à “Via Crucis”, e era aquela decepção, pois, Jesus era crucificado e Buck Jones não aparecia para salvá-lo.
Junto à tela de projeção havia um inútil cartaz, onde se lia em grandes letras azuis: “ATENÇÃO - DE ORDEM DA POLÍCIA, É PROIBIDO FUMAR”. Ninguém respeitava, nem mesmo a polícia. Antes e durante a projeção, fumava todo mundo, e, quando o filme começava, era uma verdadeira chuva de tocos de cigarros acesos jogados a torto e a direito. A maioria dirigida ao cartaz de aviso e à tela. No Cine Bonfim foram exibidas muitas das grandes superproduções cinematográficas da época, como “Sansão e Dalila” ou “Spartacus”. Muitos dos filmes do cinema europeu de vanguarda no tempo de Federico Fellini, Jean- Luc Godard e o chamado “cinema novo” dos brasileiros Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos foram também exibidos no velho Cine Bonfim, influenciando uma geração de artistas e intelectuais jequieenses. O prédio ainda existe, onde funciona hoje, uma academia de ginástica.

Nota: Este texto foi publicado há alguns anos, na revista “EXTRA”.

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