segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Leite fresco

                                                           Carlos Eden Meira

--Vocês vão gostar! – disse o Mário, exultante. – Já pensou? Acordar e tomar leite cru, fresquinho, saído direto do peito da vaca? Eu já tomei uma vez, é uma delícia.
-Além disso, - continuou Mário – podemos tomar banho de rio, respirar o ar puro da fazenda.
Gazo, o guitarrista, todo fantasiado de Buffalo Bill, de chapéu tipo “cow-boy” com uma daquelas roupas de couro curtido, cheias de franjas ao longo das mangas e em detalhes no peito e na barra do casaco, combinando perfeitamente com seus longos cabelos louros, além da barbicha e do bigode também louros, o que sem dúvida, dava-lhe uma imagem perfeita de Buffalo Bill, talvez muito mais inspirado no personagem interpretado por Dennis Hopper em “Easy Ryder”, do que do próprio Buffalo Bill. Gazo foi o primeiro a desconfiar.
- Mário, quem vai receber a gente lá? O dono da fazenda tá sabendo?
- Ora cara, o Ailton sobrinho do dono, é meu amigão. Quando ele soube que a gente vinha tocar na vaquejada do tio, foi ele mesmo quem falou: “Dorme lá na casa do capataz depois da festa, pra tomar leite fresquinho, saído direto do peito da vaca, de manhã cedinho. Leve os outros músicos também cara, eles vão curtir um tremendo barato”.
- Sei – continuou Gazo, - mas, o capataz tá sabendo?
- Ora cara, você é cheio de detalhes. Você acha que meu amigo Ailton ia me convidar, sem que tudo estivesse preparado? Fique frio cara!
Aquela era uma época engraçada, das chamadas “curtições”, quando as pessoas das gerações jovens faziam questão de serem extravagantes ao extremo. E fazíamos parte de uma banda, cujos componentes seguiam a regra geral de esquisitices visuais.
Edy, o “Barbudo” baixista, usava um penteado “black power” que mais se assemelhava uma imensa copa de árvore, cuidadosamente podada. Era uma figura “sui generis”, com suas tiradas malucas que eram recriminadas pelo Mário, tecladista e proprietário dos equipamentos, instrumentos, inclusive da “perua” que nos transportava. Dido, o baterista, irmão mais novo do Edy era mais tímido, porém, tinha o mesmo penteado “black power”, e era como o irmão, um paquerador inveterado. Os dois “investiam” o pouco que ganhavam de cachê, em roupas extravagantes: calças jeans “boca de sino”, cintos largos, com cada fivela imensa que lembravam mais uma frente de caminhão. Botas e sapatos incrementados, além de pulseiras de couro, medalhões de metal, couro ou madeira trabalhados, pendurados em vistosas correntes. E tome paquera!
Todos, invariavelmente usavam barba, e o indispensável e obrigatório cabelo comprido, marca registrada de todo jovem da geração “Woodstock”.
Extremamente tímido e não muito chegado a extravagâncias, tinha eu também, cabelos compridos e barba crescida, porém, minha indumentária se
limitava a um conjunto surrado de jaquetas e calças jeans, além de um encardido tênis branco. De vez em quando, um boné e óculos escuros, e era só.
Concordei com o Gazo, no que se referiu aos cuidados em nos certificarmos do tal convite do amigo do Mário para beber leite cru, coisa que sempre me repugna, por mais “natural e saudável” que queiram que seja. O Mário, porém, colocou a coisa da seguinte maneira: - Nós vamos tocar aqui na palhoça da vaquejada a tarde toda, até umas sete da noite. Daí em diante, vai entrar outra banda que vai rolar a noite toda, e aí a gente aproveita para tomar umas e outras, dançar e paquerar, até lá pelas duas da manhã, mais ou menos. Depois a gente se manda pra casa do capataz. Quem não quiser ir, vai fazer o quê? Ficar aqui? Aqui vamos arrumar os equipamentos da banda na perua, vamos pra lá, e de lá a gente se manda de volta pra casa, sacou? Quem ficar aqui vai ter que arrumar carona pra voltar pra casa, porque eu não vou retornar aqui pra apanhar “senhor ninguém”, tá sabendo? É pegar ou largar!
Diante de tais argumentos, não houve alternativa a não ser topar o programa traçado pelo Mário, sujeito muito falante, irônico e gozador, e que apesar da barba e do cabelão, usava roupas mais discretas. Sabíamos que ele cumpriria a advertência que fizera.
Tocamos realmente a tarde toda, sob uma temperatura infernal, ampliada pelo volume de pessoas que se acotovelavam, saracoteando na pista da palhoça, e só paramos umas sete e meia da noite, quando o pessoal da outra banda, já começava a arrumar seu equipamento no palco. Tivemos tempo ainda para desmontar nosso equipamento, encostá-lo no fundo do palco, e, descemos suados, esgotados, mortos de sede, desesperadamente desejando uma cervejinha gelada, coisa que foi praticamente impossível encontrar. Tivemos que nos contentar, com uma cerveja no mínimo fria. Gelo, só na “cuba-libre” que ali cobravam um preço exorbitante. Mesmo assim, ficamos todos bêbados.
Às duas da manhã, numa ressaca de dar dor de cabeça em busto de bronze, tivemos que arrumar todo o equipamento da banda na perua. Parte no bagageiro, armado em cima da capota, o resto espremido conosco, dentro do carro. Como vocalista principal do grupo, eu tinha a garganta terrivelmente irritada, após três dias me esgoelando durante cinco horas, só parando de vez em quando, para a apresentação de um ou outro componente da banda, que tinha também seu repertório. Nos primeiros dias de nossa chegada, dormíamos numa pensão ali por perto.
Quando o Mário todo animado deu a partida no carro, senti-me deprimido ao lembrar que ao invés de estarmos a caminho de casa, ainda tínhamos que, às três horas da manhã, dormir numa fazenda desconhecida. Meu desânimo devia-se principalmente ao fato de estar sentindo sintomas de febre, certamente provocada pela inflamação na garganta, causando moleza e dores no corpo. E o tal “leite fresco”, não me apetecia nem um pingo.
De repente, ocorreu ao Gazo lembrar-se de fazer oportunamente, a pergunta:
- Mário, você sabe onde é a casa do capataz?
- Porra, Gazo! – gritou Mario, irritado – Por aqui só tem mato! Qualquer casa que aparecer, só pode ser a do cara!
Nesse exato momento, inesperadamente, começou a cair uma torrencial chuva de verão, dessas que desabam com um volume pluviométrico diluviano.
E o Mário começou a fazer uma cara de “sinhá Mariquinha cadê o frade”, como diria o Odorico Paraguaçu, do Dias Gomes.
- Que merda, Mário! – berrou o impaciente Gazo. – Que bosta de programa você arranjou! Já tem uma boa meia hora a gente aqui nesse fim e mundo, e nada da porra da casa!
A chuva batia no pára-brisa do carro com tal violência, que era praticamente impossível enxergar a estrada de terra nua, que começava agora a se transformar num terrível lamaçal, com as águas ameaçadoras que desciam em enxurradas vindas dos terrenos elevados.
- É ali! - gritou Mário aliviado, apontando o vulto esbranquiçado de uma casa, situada numa pequena elevação. Com dificuldade, limpando os vidros laterais do carro cobertos de vapor devido à condensação provocada pela chuva, pude ver a tal casa, a qual, pelo que percebi, não podia ser a casa do capataz. Não havia por ali, nenhum sinal de curral ou coisa que o valha, onde o Mário pudesse beber o tal leite fresco, que agora eu começava a odiar.
- Então vamos lá, cara! - gritou o Edy, impaciente – vê se dá pra parar o carro mais perto!
Mário, com dificuldade, conseguiu subir a escorregadia elevação na qual ficava a casa, parando o carro junto a uma pequena cerca de varas. Uma débil luz de “fifó” acendeu-se dentro de casa, insinuando-se através de uma pequena fresta na porta, que alguém começava a abrir.
A chuva continuava forte, e ninguém parecia disposto a sair do carro. - Ô de casa! – berrou Mário, buzinando o carro ao mesmo tempo. A porta do casebre abriu-se, e a silhueta de uma figura masculina surgiu, projetada contra a luz que vinha de dentro. Trazia numa das mãos, um objeto que notamos tratar-se de um facão.
- Quem é? – perguntou o homem, exibindo acintosamente o facão.
- É de paz! – gritou Mário, visivelmente desconcertado – Aqui não é a fazenda do tio de Ailton?
- N–Não sinhô! – gaguejou o homem – conheço ele não sinhô! – completou, começando a entrar em casa, já quase batendo a porta em nossa cara.
- Calma, mestre! – exclamou Mario - O Sr. não é capataz do Dr. Paulino o tio do Ailton, que tá fazendo uma vaquejada na sede da fazenda dele, aqui perto?
- Sou não sinhô. – respondeu o homem – O sinhô ta procurando é o Justino, capataz do Dotô. Ele mora numa casa grande com curral, bem mais lá pra traz. O sinhô já passou por ela! Tem uma cerca de pau grosso, bem na frente do terreiro.
Gazo olhou para Mário com um olhar homicida, e, quero crer que naquele momento, todos ali tiveram ganas de estrangular o Mário.
- T-Tá bom, me desculpe viu, moço... Não queria incomodar... Obrigado pela informação. – balbuciou o Mário, dando partida no carro, com um sorriso amarelo ouro.
- Pô, Mário – comentou o baixista Edy – quando a gente conseguir chegar nessa tal casa, o teu leite fresco já virou coalhada. Todos nós rimos nervosamente da infame piada do Edy, para o qual faço um comentário, apresentando a “figura”.
O baixista Edy, ou o “Barbudo”, como era conhecido pelos músicos da região, não perdia oportunidade para pôr em prática seu estoque de gozações, as quais muitas vezes criavam situações constrangedoras para quem estivesse por perto. Fui vítima de uma dessas situações, quando fomos tocar em Vitória da Conquista. Estávamos em uma Kombi que na época transportava a banda, e que teve de fazer uma parada na porta de um estabelecimento comercial, na praça da feira. Todos haviam descido para fazer lanches ou qualquer outra necessidade, tendo permanecido no veículo apenas eu e o sem-vergonha do Edy. O movimento era intenso, pelas calçadas apinhadas de transeuntes, num típico dia de feira. De repente, passou por nós um senhor já de idade bem avançada, empurrando um carrinho de feira, e, com uma das mãos, segurava um suculento picolé, o qual sorvia avidamente. Nesse exato momento, o Edy gritou bem alto:
- Chupando, hein “véi”? – gritou, e abaixou-se rapidamente. Não tive nem tempo de raciocinar direito sobre o que acontecia. Só sei que o velho viu apenas a minha cara, olhando para ele perplexo, da janela do carro.- Chupando o quê, seu viado? Respeite os mais velhos, seu sacana!... – Berrou o homem olhando para dentro da Kombi, mas não via o Edy agachado. E despejou ainda um verdadeiro baú de palavrões cabeludos, muitos dos quais eu nem sabia que existiam. Limitei-me apenas a sorrir, sem ter como reagir diante da indignação do pobre homem, cujo picolé acabou derretendo, deixando um bom pedaço despencar do palito, coisa que o fez odiar-me ainda mais. O Edy, deitado no banco do carro, parecia estar tendo um ataque de epilepsia ou coisa semelhante, num acesso de riso incontrolável, enquanto eu começava a xingá-lo de todos os palavrões que sabia e mais alguns, que havia agora aprendido com o velho do picolé.
Contratados para tocar numa festa de formatura numa cidade vizinha, estávamos estacionados na porta do clube onde o baile ia ser realizado, quando a professora responsável pelo evento aproximou-se, dirigindo-se ao Mário, “diretor-proprietário” da banda, que estava sentado ao volante. Quando a moça chegou bem junto à janela do carro, o Edy sentado no banco de trás, soltou um maléfico e silencioso “pum” tão “eficaz” que dava para ser sentido a metros de distância. Era uma verdadeira “bomba” que ele vinha preparando ao longo da estrada, comendo ovo cozido com cebola branca em toda “biboca” que encontrava. Ele e o irmão Dido, o baterista da banda, eram peritos no assunto. Pois bem, quando a pobre coitada da moça botou a cara na janela do carro, foi aquele horror. Ela ia dizer qualquer coisa ao Mário, quando engasgou e ficou com uma fisionomia engraçada, patética,
desistiu de falar e saiu. Acho que naquele momento ela pensou em contratar outra banda, mas, a aquela altura já era tarde.
Dentro do carro, o ar era insuportável. Abrimos as portas e mesmo assim, a coisa tava realmente “braba”, resultando num verdadeiro sermão pregado pelo Mário aos dois “terroristas”, enquanto nós tentávamos não explodir num gargalhada geral. – Vocês são uns mal-educados, porcos, desclassificados e irresponsáveis – dizia o Mário, indignado.
- A moça pode até ter pensado que fui eu quem soltou essa imundície! E duvido que ela contrate novamente esta banda, pra tocar em qualquer outra porra de festa! – esbravejava o Mário, enquanto o Edy assoviava baixinho, coçando barba e olhando a paisagem, como se aquilo não fosse com ele.
Naquela noite chuvosa, em que procurávamos a tal casa do capataz, os aborrecimentos começavam a se multiplicar. Ao fazer a manobra pela estrada encharcada, para retornar ao local onde deveria estar a tal casa do capataz, o carro começou a deslizar na lama, obrigando o Mário a acelerar, resultando no que mais temíamos: o carro atolou.
- É, turma... – falou o Mário - alguém vai ter que descer pra empurrar, ver se arranja um pedaço de pau, pra botar debaixo da roda...
- Com essa chuva? – gritou o impaciente Gazo. – Eu não saio daqui nem arrastado! – depois de uma discussão recheada de xingamentos recíprocos, descemos todos, enquanto o Mário acelerava. Mesmo colocando um pedaço de árvore sob a roda, o carro afundava cada vez mais, até que o pneu ficou totalmente submerso na lama.
Sob a chuva fria, o vento, e devido ao esforço empurrando o carro, além dos pés calçados com os meus surrados tênis brancos, agora encharcados e pretos da lama, minha garganta só piorava e a febre aumentava.
- É... - disse o Mário, desanimadamente. - Vamos ter que ir a pé! A casa, pelo que o homem falou, não é muito longe. - Trancamos o carro, apanhamos nossas mochilas e valises, e saímos patinando na estrada escura e lamacenta, iluminada de vez em quando por relâmpagos.
Permanecíamos em silêncio, porque qualquer diálogo se transformaria em discussão, principalmente entre Gazo e o Mário. Finalmente, sob o clarão de um relâmpago, vimos à nossa esquerda, o vulto de uma casa branca com uma grande cerca de madeira grossa na frente, além do curral à sua direita.
- Chegamos. – disse o Mário - Só pode ser aqui. – foi só começarmos a nos aproximar, para despertar a atenção de uma matilha de pastores–alemães que partiram furiosamente, em nossa direção.
Ficamos aterrorizados, sem saber o que fazer, quando uma luz se acendeu na casa e a voz de um homem, que segurava numa das mãos um rifle e na outra uma lanterna a gás, gritou:
- Quem ta aí?
- S-Seu Justino! – gritou o Mário – Eu sou o rapaz que Ailton convidou pra dormir aqui... Nosso carro atolou e...
O homem chamou a cachorrada que latia num barulho infernal, e suspendeu a lanterna para ver melhor. Estávamos felizmente, a uma boa distância dos cães, mesmo assim o homem gritou:
- Subam na cerca do curral! Os cachorros são “brabos” demais e não estão me obedecendo! – com o coração saindo pela boca, subi numa cerca do curral o qual ficava isolado do terreno onde os cães estavam, e era a única maneira de ter acesso à casa por uma entrada lateral, sem ser alcançados pelos cães. Sentindo o bafo dos cães latindo e rosnando do lado de fora do curral, tão próximos eles já estavam de nós, subimos todos na cerca molhada da chuva e suja de bosta de boi, graças aos nossos imundos sapatos, cuja sujeira os primeiros a subir na cerca, iam deixando.
Sujei-me todo nessa desesperada travessia, andando agarrado às traves da cerca, numa escuridão assustadora sob trovões, relâmpagos e chuva, perseguido de perto por cães ferozes. Por fim, ao chegarmos na tal passagem do curral que dava acesso a casa, saltei para o lado de dentro do curral alagado da chuva, mergulhei literalmente até as canelas numa poça de bosta de boi amolecida pela água e que ao meu pulo, respingou para cima me atingindo até no rosto, salpicando minha roupa de jeans azul, agora parecendo uma farda camuflada de grandes manchas esverdeadas e fedorentas.
Quando finalmente nos reunimos na varanda da casa, o capataz Justino ainda estava enfiado numa capa “colonial” no terreiro, acalmando os cães que a muito custo sossegaram.
Entramos na casa, sujos e molhados até a alma. Eu me sentindo entorpecido pela febre, percebia tudo como se estivesse sonhando e que ia acordar logo.
- Seu Justino – disse Mário, quando o capataz ainda de rifle e lanterna nas mãos, se aproximou com uma expressão que demonstrava visível aborrecimento. – seu Justino, nós viemos a convite de Ailton, sobrinho do Dr. Paulo e...
- Eu num tô sabendo de nada, seu moço! Tu tá sabendo disso, Santinha? – perguntou, dirigindo-se à esposa grávida com cara de quem acordara aborrecida, tendo um garotinho de mais ou menos uns dois anos nos braços, num berreiro infernal.
- Seu Ailton num me falou nada não sinhô...- disse a mulher. Olhamos todos para o Mário, com olhares de tais formas agressivos, que o atingiram como setas pontiagudas e mortíferas.
- M-Mas, e-e agora? O Sr. não preparou nada? Quarto, essas coisas...
- Preparar como, criatura de Deus? Se ninguém foi avisado? Tem um quarto aí atrás, onde a gente guarda arreios, selas, essas coisas. Tem umas duas camas de lona, dessas de armar...Se ocês quisé...
A essa altura, minha febre tinha chegado a uns 40 graus, por aí, pois sentia um frio glacial, tremia convulsivamente e a garganta ardia desesperadamente. Qualquer cama que me dessem, mesmo sendo uma cama de faquir, me seria bem-vinda.
No tal quarto a nós destinado, escuro, fedendo a mofo e couro velho, dividimos uma das camas de lona, eu e o Edy. Com as mesmas roupas sujas
e molhadas, sem tirar os sapatos, deixando os pés de fora da cama, dormimos de “valete” ou seja: o Edy para um lado, eu para o outro em relação à cabeceira da cama. Dormir no caso é só uma força de expressão. O Edy deitou e dormiu profundamente. Eu, porém, ardendo em febre, permaneci acordado, sentindo o desconforto da roupa suja e molhada, o que me colocava em sério risco de ver aquela febre virar uma pneumonia, além da náusea provocada pelo fedor de bosta de boi que impregnava tudo, emanando dos nossos sapatos e roupas sujos.
Os outros se ajeitaram na outra cama de lona, e sobre móveis velhos que acharam por ali. Foi uma noite das mais longas que já tive oportunidades de ver passar, ao som de trovões, roncos e pingos de goteiras diversas que se espalhavam por todo o ambiente.
Aos primeiros clarões do dia, uma nova inquietação: Centenas de morcegos, antigos moradores dos telhados daquele velho depósito, voltando dos seus afazeres noturnos, esvoaçavam por todo o quarto certamente estranhando a nossa presença ali. Fiquei terrivelmente assustado, observando os animais entrando por uma pequena abertura retangular, no alto da parede usada como entrada de ar ou iluminação. Pensei em me levantar e sair dali, mas, a febre me deixava prostrado, sem ânimo para me mover. Procurei tranqüilizar-me, lembrando dos morcegos do sótão de nossa velha casa, que eram insetívoros ou frutívoros, considerados animais inofensivos.
A este pensamento, comecei a sentir uma sonolência agitada por tremores e sobressaltos, a cada trovão ou qualquer movimento que o Edy fazia, em seu sono pesado.
De repente um pensamento inquietante e paranóico, me assaltou “E se esses morcegos forem hematófagos?” Li numa revista científica que os hematófagos vivem em zonas rurais, por ser habitat de muitos animais que lhes fornecem o alimento, ou seja, sangue. Em fazendas, onde existem criações de animais, diversos destes morcegos fazem também seus ninhos em sótãos, velhos depósitos ou armazéns.
Velhos depósitos? E onde é que estávamos, senão num velho depósito? Alucinado pela febre e por esses pensamentos negativos, passei a ter pesadelos incríveis até perceber que a chuva tinha passado, os morcegos já estavam devidamente empoleirados em seus ninhos, e uma claridade mais intensa se insinuava pela abertura na parede, deixando perceber um novo e inquietante “horror”. Passeando pelo quarto, por sobre selas, cangalhas, arreios, móveis velhos e objetos diversos, dezenas de aranhas caranguejeiras do tamanho de uma mão de uma pessoa adulta. Uma delas caminhava lentamente pelo braço do “Gazo”, que dormira com seu casaco de “Buffalo Bill”. Aí, não agüentei. Dei um berro no Gazo que assustou a todos:
- Olha a aranha aí, cara! Foi o bastante para que Gazo desse um safanão na aranha, atirando-a longe. Todos pularam de suas “camas” e passaram a fazer uma algazarra tremenda, correndo para fora do quarto, chamando a atenção do seu Justino que veio ver do que se tratava.
Feitas as devidas explicações, o Mário ansioso pelo tal “leite fresco” foi conduzido junto com os outros pelo seu Justino até o local da ordenha, onde satisfez sua “sede de leite”.
A minha febre diminuíra um pouco, mas, o sono era terrível. Fui até à cozinha procurar água pra beber, pois, a febre me deixara de boca seca. A dona Santinha me deu uma aguinha de pote, fria e com aquele típico gostinho de água guardada em vasilhame de barro cozido. Tomei então um café ralo o suficiente para enxergar o fundo da xícara, mas, quentinho e cheiroso, o que me reanimou um pouco. Com uma esponja, lavei o tênis sujo e a roupa da melhor maneira que pude, e esquentei água para um banho mal tomado.
De volta do curral, Mário e a turma, vinham acompanhados do Ailton que havia chegado, e se desmanchava em apresentar um milhão de motivos por não ter tido tempo de avisar ao seu Justino da nossa vinda. Dando prosseguimento ao seu “programa”, Mário e os outros, se dirigiam a um riacho ali por perto, para um tal “banho de aguinha cristalina que dá pra ver o fundo do leito”, conforme Mário. Só que com o dilúvio que caíra na véspera, as enxurradas levaram muita lama para dentro do riacho, e a água, de cristalina, não tinha nada.
Sonolento, devido à noite de febre e insônia, não topei ir com a turma ao riacho. Pedi ao Mário a chave da porta da perua, ainda atolada ali pertinho. Deitei-me no banco traseiro do carro, usando minha valise que trouxera como travesseiro. O interior do veículo oferecia uma temperatura amena, já que o dia continuava nublado, com alguma ameaça de chuva.
Dormi até uma hora da tarde, com o barulho de uma “picape” que o Ailton trouxera para rebocar a perua, com a ajuda de uma corda grossa. A turma já preparada para embarcar fazia uma algazarra tremenda, empurrando o carro atolado com o Mário na direção, enquanto o Ailton na “picape” se esforçava para rebocar o veículo.
O chão agora mais seco, com uma ou outra poça de água aqui e ali, facilitou a operação. Embarcamos e dei graças a tudo quanto é santo, quando atingimos o asfalto a caminho de casa. A uma certa altura da viagem, o Mário falou:
- Porra! Tinha me esquecido! Aqui perto de Poções tá tendo um churrasco que já tá rolando há uns três dias, e termina hoje. É de um amigão meu, gente fina, que tá comemorando a formatura do filho. Vamos lá? Olha que na casa do Justino, a gente só tomou café e o leite fresco.
A turma toda topou menos eu, é claro! O Edy e o Dido, dois bons de garfo e faca, eram os mais entusiastas da idéia. Até o Gazo surpreendentemente, topou. Pra mim, foi a gota d’água. No primeiro posto de beira de estrada, pedi para descer. Peguei meu “galo de briga”, que era como chamavam a pouca bagagem que se levava nessas curtas viagens, e desci sob os protestos da turma, mas, não teve retorno.
O primeiro “catanica”, (ônibus que apanhava passageiros á margem de estrada) que apareceu a caminho de casa, para mim foi abençoado. Achei uma poltrona vazia nos fundos do coletivo, e, ainda sonolento e com o corpo
já começando a apresentar sintomas de que a febre ia voltar, com a garganta inflamada, me sentia aliviado, ainda assim.
Apesar de tudo, hoje me lembro com saudade, dessas maluquices juvenis. Foram momentos engraçados da minha vida. A única coisa que ainda me preocupa, é essa vontade incontrolável de estrangular alguém, quando me falam em “leite cru fresquinho, saído direto do peito da vaca” Preciso urgentemente, consultar um psiquiatra!!! (Carlos Eden Meira)


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