Carlos Éden Meira 
Aos onze anos de idade, fiz a minha primeira viagem. Entretanto, primeiro é preciso explicar como eram os meios de transporte e as estradas desses saudosos tempos. Quando era ainda mais jovem, admirava-me ao ver que os parentes que chegavam de viagem eram todos “ruivos”. Cabelos e rostos avermelhados que “misteriosamente” se transformavam, após se lavarem na água morna que minha avó ou minha mãe mandavam colocar no lavatório, o qual consistia em uma armação trabalhada em ferro esmaltado e apoiada em quatro pés, culminando num círculo aberto, onde era encaixada a bacia. Águas encanadas e pias já existiam na casa, entretanto, lavar o rosto só podia ser em água morna, apanhada numa chaleira mantida sempre quente, num velho fogão a lenha que até hoje existe, mas já não funciona.
De rostos e cabelos lavados, os “ruivos” transformavam-se em pessoas reconhecíveis, com suas respectivas aparências, e o vermelhão ficava todo na bacia. A explicação, para mim, só vinha quando algum parente vindo de Poções ou Conquista, reclamava da poeira vermelha da velha estrada esburacada e eu, já mais velho, comecei a entender tal “fenômeno”. Foi nessa estrada que fiz minha primeira viagem, numa “marinete”- ônibus com capô, semelhante a um caminhão ou caminhonete – que partiu de uma agência no centro da cidade, às sete horas da manhã, com destino a Poções. Ninguém a chamava de ônibus. Era mesmo “marinete”, e pronto. O nome era uma homenagem ao poeta futurista italiano, Filippo Tommaso Marinetti, quando esteve no Brasil; fato que só vim saber muitos anos mais tarde, quando o jornalista Wilson Midlej me pediu a charge de uma “marinete”, para ilustrar uma matéria na revista “Bahia em Foco” nº 1 – maio de 2001. Era para o poema “Janela de Marinetti” de Waly Salomão.



O veículo era uma “catanica”, que parava o tempo todo para apanhar passageiros da zona rural e povoados entre Manoel Vitorino e Poções, carregados de sacos de frutas, legumes ou hortaliças, gaiolas de passarinhos e animais diversos, para vender em alguma feira da região. Muitos viajavam em pé, e a “marinete” fazendo manobras incríveis para driblar as “crateras” da poeirenta estrada de terra vermelha, jogava esses passageiros de um lado para outro, numa verdadeira dança maluca. Muitas vezes enguiçava, e entre esses momentos de enguiço, o veículo subia uns cinquenta metros e descia cem metros de ré, ladeira abaixo. – “Desce todo mundo, pro carro ficar mais leve e poder subir a ladeira!” – gritava o motorista. Lá íamos todos, resmungando, descendo da “marinete”. Alguns dedicavam nomes impublicáveis ao motorista, e à sua digníssima genitora. Eu, no entanto, divertia-me com aquilo tudo, bem acompanhado de minha mãe Iracema; Maneca, um dos meus irmãos mais velhos, sua jovem esposa Otonina e Gilmar, meu sobrinho de um ano e poucos meses de idade.
Nesse ritmo, chegamos a Manoel Vitorino (acredite se quiser), pouco antes do meio-dia! Descemos todos para tomar água e comer alguma coisa, numa vendinha. Ali, vi um casal de onças suçuaranas e seu filhote, numa pequena jaula improvisada (naquele tempo não era proibido), coisa que muito me impressionou e que contei milhares de vezes, com muito orgulho aos meus amigos, quando voltei pra casa. A “marinete” foi levada a uma oficina ali por perto, para fazer uns possíveis consertos. Tais consertos de nada serviram, pois, a bendita “marinete” apresentou os mesmos problemas e contratempos ao longo do resto da estrada. Quando finalmente chegamos a Poções, eram nada mais nada menos do que cinco horas da tarde! Chegamos todos “ruivos”, cobertos de poeira vermelha, o que me fez rir bastante, ao lembrar os nossos parentes que assim também, chegavam de viagem, lá em casa. Só para comparar, hoje em dia, de Jequié a Poções num ônibus, a viagem dura no máximo duas horas, e ninguém chega “ruivo”.*Carlos Éden Meira é jornalista, cartunista, DRT 1161 (Revista Bahia em Foco)