quinta-feira, 23 de abril de 2020

A noite do beija pés.

J. B. Pessoa

Capítulo - 31 do livro "Guris e Gibis


Durante os dias de Quinta e Sexta-feira Santa, os bares da cidade ficavam fechados por ordem da diocese de Amargosa, na qual estavam subordinadas às paróquias Jequieenses. Juridicamente a proibição não era legal, mas encontravam apoio das autoridades e cidadãos católicos da comunidade. Quando alguém se atrevia a desobedecer a esse preceito, era ameaçado de excomunhão pelos padres radicais, que pretendiam ditar as normas de conduta da população. Esse costume era acatado com naturalidade pelas pessoas simples, que eram mais supersticiosas do que crentes. Até mesmo os bordéis e botecos da periferia cerravam suas portas nesses dias, pois ninguém queria ser taxado de herege, por desobediência à Igreja. A única bebida alcoólica permitida era o vinho, muito comum nas casas burguesas, que fazia parte das refeições, acompanhando os pratos da cozinha baiana. Aproveitando essa permissão, muitos abusavam do consumo, transformando um simples almoço em família, num verdadeiro banquete medieval.
O final da procissão era seguido da cerimônia do beija pés. Muitos fiéis formavam naquele momento, uma longa fila e esperavam pacientemente a sua vez de beijarem os pés da imagem do Senhor Morto, numa contrição, fruto de uma fé verdadeira. A maioria ia para suas casas, retornando após o jantar, num ritual repetido todos os anos. A rapaziada passeava pela avenida e faziam ponto na porta do cinema e em frente da Casa de Lomanto, esperando ver as belas garotas, indo em direção à igreja matriz. A entrada dos dois cinemas estava repleta de pessoas, querendo assistir os filmes sobre a vida de Jesus. Enquanto o Cine Bonfim exibia a sua velha fita, o Cine Teatro Jequié apresentava uma produção contemporânea, intitulada de “O Mártir do Gólgota”. Contudo, a produção de 1902 de Ferdinand Zecca atraia mais expectadores para o famoso “Pequeno cinema dos grandes filmes”.
O movimento na noite daquela Sexta-feira Santa não era diferente dos anos anteriores. A cidade estava cheia de jovens que estudavam em Salvador e vinham visitar as suas famílias na Semana Santa. As diferenças de vida entre a Capital da Bahia e a Cidade de Jequié suscitavam discussões entre a rapaziada, que via a vida interiorana com certo menosprezo. Muitos estudavam fora, porque cursavam universidades. No entanto, alguns confessavam que retornariam ao interior, logo após a graduação, por achar a vida numa cidade grande bastante incomoda às suas naturezas bucólicas. Havia, entre eles, os modernosos, que faziam apologias a um desenvolvimento inexistente nas cidades provincianas e teciam elogios à grande civilização soteropolitana. Entretanto, todos exibiam seu status de estudantes da capital e, portanto, alvo de atenção das moças casadoiras, que passeavam na praça. Todavia, um grupo de jovens à parte, composto por rapazes que trabalhavam em bancos, comércio e órgãos públicos, viam com desdém aqueles forasteiros, pois muitos traziam como convidados alguns colegas de faculdade, os quais despertavam certo frenesi nas garotas da cidade, deixando enciumados os nativos da terra. Contudo, havia outros em que a inveja carcomia-lhes a alma, os quais
passavam todo o tempo a denegrir moças e rapazes que estudavam fora, numa atitude, visivelmente, de puro despeito.
Na medida em que as horas passavam, a praça e a avenida iam ficando vazias, devido à finalização dos rituais da igreja, fazendo com que as famílias retornassem aos seus lares, levando a tiracolo as suas preciosas filhas, deixando encantada uma rapaziada varonil. Com o término das sessões dos filmes às vinte e três horas, os cinemas encerravam as suas atividades, levando às suas casas os comerciários, pois o dia seguinte era de trabalho. Permaneciam na praça, apenas os notívagos costumeiros e a estudantada em férias, na espera das doze badaladas do relógio da matriz, anunciando a meia noite e o início de um novo dia. A partir da zero hora, os bares e cabarés eram abertos e a zona do baixo meretrício, conhecido como a Rua do Maracujá, fervilhava de boêmios comemorando o início do sábado de aleluia.

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