sábado, 28 de março de 2020

NA PENUMBRA

Carlos Éden Meira

Era pleno verão. Sabia que o tempo era obviamente quente, no entanto, todas as suas células corporais interpretavam lúgubre e glacial sensação de um inverossímil tempo invernal. As mágoas outrora torturantes, atrozes e que até agora permaneciam trancafiadas profundamente no âmago da alma, se manifestavam, ameaçando assomar à superfície. As lembranças repetitivas inutilmente reprimidas mostravam tudo de que agonicamente lhe era impossível fugir, ainda que buscasse possíveis justificativas que lhe servissem de perdão, bálsamo que lhe atenuasse as flagelações do espírito. Abriu a janela do quarto, de repente penetrado por uma torrente perfumada e musical. As notas, sonoras chaves mágicas, assim como o perfume abriam portas nas dobras temporais do inconsciente.
Na penumbra, de olhos fechados, reviu como numa projeção, todas as imagens, os momentos, as dores e as alegrias que imprimiram as páginas de sua própria história, e gritou. Era um lancinante grito surdo que não lhe aflorava das cordas vocais, e sim de cordas mentais tensamente estendidas ao longo dos labirintos da mente. Esperava que de alguma forma, aquele grito fosse ouvido, ultrapassando seus limites transcendentais, nas fronteiras da realidade. Sempre acreditou que o tempo, a idade, o ensinariam a enfrentar seus medos irracionais, seus sentimentos de culpa injustificáveis, sua incompetência para lidar com as mazelas do corpo e da alma. Agora, no entanto, tinha certeza da inexorabilidade desse enfrentamento, ainda que não pudesse afirmar se sairia vencedor. O medo era seu maior inimigo. O medo puro e simples de existir, de ter consciência da sua questionável condição humana, e que sempre o acompanhou desde a mais tenra infância.
Acordava no meio da noite às vezes em estado febril, aterrorizado, buscando uma explicação para o inexplicável. Uma simples letra de música, uma frase qualquer lida num livro, ou dita por alguém durante o dia, ou uma imagem corriqueira do dia-a-dia, rodopiavam em seu cérebro em caótica espiral, desencadeando um processo incontrolável de ansiedade, aumentando seu ritmo cardíaco, provocando sudorese e tremores. Temer o medo de ter medo passou a ser um redundante e desesperador capítulo a mais, no script desta sua irônica comédia triste. Nessa noite insone, porém, um luar surreal penetrava quarto adentro, passando por entre galhos e folhas de uma árvore próxima, balançada por rajadas de um vento uivante, projetando no chão e nas paredes, imagens que mudavam constantemente de forma, à medida que a luz da lua era alterada pela passagem das nuvens. Tais imagens fantasmagóricas eram agora hipnóticas companheiras, desviando sua atenção para um fenômeno físico de luz e sombra, ajudando-o a devolver para seus abismos interiores, os emissários espectrais do medo. Seu grito, de alguma forma fora ouvido. E assim, dormiu.

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