domingo, 9 de fevereiro de 2020

O vigia do parque infantil.


J. B. Pessoa

Capítulo - 20 do livro " Guris e Gibis".

Eram quase oito horas da noite quando a turma se despediu das meninas. Aquele programa tinha sido muito intenso, pois normalmente as tertúlias começam por volta das cinco e geralmente terminava antes das sete horas. Naquele momento a porta do Cine Bonfim fervilhava de pessoas, querendo assistir ao famoso melodrama, enquanto o Cine Teatro Jequié exibia “Ladrões de Bicicletas”, um excelente filme do neo-realismo italiano. Apesar de ter sido lançado seis anos antes e ser considerado como uma verdadeira obra de arte, o filme de Vittorio de Sica recebia poucos espectadores, pois a população não estava acostumada a uma estética mais sofisticada. Os garotos resolveram ir a Praça Ruy Barbosa para encontrar o resto da turma, que deveriam estar patinhando naquele momento. Os garotos comentavam alegremente o programa assistido, enquanto Orlando acompanhava o grupo, todo amuado, sem dizer uma palavra. Géo, percebendo o motivo de seu aborrecimento, resolveu atiçar o seu mau humor, na intenção de provocar no rapaz alguma reação comprometedora.
- O que é que há Orlando?... O gato comeu a tua língua?
- Me deixa no meu canto, sujeito! Por falar em gato, quando ele não está por perto, os ratos passeiam!
Pé de Pata, que o conhecia muito bem e sabia do seu menosprezo pelos garotos menos favorecidos, perguntou?
- Onde estão os ratos que lhe incomodam?
- Deixa estar, que eu não vou me aborrecer com isso! Vou deixar pra quem é de direito tomar as previdências! Mas concordo com o que diz o povo: “Cada macaco em seu galho!”
Não entendendo aquela insinuação, Luís perguntou:
- Do que é que você está falando?
Orlando virou-se para ele e desabafou:
- O pai de Berenice não gosta que ela se misture com qualquer um! Ele me encarregou de cuidar dela e sempre dei conta do recado. Hoje dei bobeira e ela acabou conhecendo pessoas que não são do seu meio.
Os garotos nunca aprovaram o modo bajulador de Orlando com as pessoas de posses. Sabiam que o companheiro de infância tinha seus sonhos de grandeza, e relevava isso, pela sua condição social. Porém, naquele momento, toda a turma ficou pasma diante de sua atitude. O rapaz revelou a todos, o seu desprezo pelos velhos amigos. Indignado com aquilo, Eduardo bradou, com raiva:
- O sacana ta com ciúmes!... Espalhou por aí que era namorado da menina e agora vem com essa dor de corno, depois que todo mundo descobriu a mentira.
Orlando, bufando de raiva, esbravejou:
Eu sei que você é invocado por ela! Mas pode cair fora, que ela não é para seu bico!
- Por que não?!... Sou pobre, mas sou de boa família! Estou estudando e um dia vou ser um grande advogado! Ademais, eu sou bonito, porra! Posso almejar
qualquer garota no mundo! – Protestou com veemência Eduardo. O garoto estava revoltado com o descaso do camarada.
Géo e Pé de Pata sentiam-se, também, ofendidos pelas colocações de Orlando. Não suportando aquela afronta, Géo gritou com ódio:
- Ela não é para o bico de um mequetrefe feio como tu, que nunca teve uma namorada decente.
Vendo os ânimos acirrados, Johnny resolveu pôr um pouco de bom senso naquela discussão insensata, alertando que o respeito é o dever de todos. Luis, ainda pasmo com o que ouviu, esclareceu a Orlando:
- Fui eu quem apresentou Berenice aos meninos! Ela foi muito gentil e atenciosa com todos e nos convidou a acompanhá-la ao Teatro da Casa Paroquial. Porcino, Nêgo, Mipai e Edgar foram patinar e eu, Johnny, Géo, Pé de Pata, Mamãe Eu Quero e Eduardo, acompanhamos as meninas e fizemos amizade com elas. Agora são nossas amigas! Se você acha que não merecemos essa honra, é um problema seu.
- Veremos o que Mipai e Edgar acham disso! – Alertou Mamãe Eu Quero em tom de ameaça, pois sabia do temor de Orlando pelos garotos.
Ao perceber a encrenca em que havia se metido, Orlando tratou de corrigir o seu erro. Ele temia bastante os dois garotos, principalmente o famoso Edgar Pezão, de quem havia recebido uma boa sova, no passado. Receoso com as possíveis desforras dos dois dissipou-se de toda a sua arrogância e, baixando o tom de sua voz, disse quase sussurrando:
- O que eu posso dizer é pra vocês tomarem cuidados, que o pai da menina é uma fera!
- E daí?!... Olha pra minha cara de medo! - Gritou Géo, bastante nervoso.
- Querendo pacificar uma turminha de exaltados, os quais não engoliam desaforos de ninguém, Johnny articulou com ponderação:
- Isso é problema nosso! “Cada um cuida de si e Deus de nós todos!” Agora vamos mudar o rumo dessa conversa, que não está agradando a ninguém!
Os garotos aquietaram-se e seguiram tranquilos em frente. Orlando entendeu que tinha sido um cretino. Ficou arrependido de desprezar uma turma que sempre o protegeu. Ele tinha a consciência que também era pobre e o único remediado ali era Luis. Acompanhava a turma, todo cabisbaixo, falando pouco e só Johnny dava um pouco de atenção á sua conversa, enquanto a garotada ignorava a sua presença. Todos os garotos seguiram juntos para a praça, esquecendo a ocorrência e comentando o programa assistido.
O parque infantil, que só recebia menores de dez, anos estava fechado naquele momento. Enquanto isso, a pista de patinação funcionava desastradamente, com vários garotos disputando, agressivamente, os poucos pares existentes. Eles eram controlados por um funcionário municipal, que era o vigia e responsável pelo funcionamento e manutenção daquela área de lazer. Como a demanda era maior do que o número dos patins existentes, alguns moleques acusavam o pobre vigia de ter escondido alguns, por pura má vontade. Entre a molecada que estavam fazendo arruaça, se destacava um velho conhecido da turma, chamado Antonio Balbino dos Santos. Era um adolescente de quinze anos, visinho de Orlando, que tinha má reputação entre as educadoras jequieenses. Acompanhando Balbino nas molecagens, estavam os famigerados Alcides Zoião e
Bentevi que comandavam um grupo de desordeiros, os quais faziam uma grande baderna, deixando o velho vigia que tinha um antebraço amputado, fulo de raiva com tudo aquilo. A molecada depreciava o pobre homem que, sendo mutilado, apresentava certa dificuldade em realizar o seu trabalho.
Os meninos foram ao encontro dos seus amigos que, naquele momento, estavam sentados em um banco do jardim, um pouco distante da balburdia, observando aqueles acontecimentos. Às oito horas da noite, o velho recolheu os patins, finalizando aquela brincadeira no horário estipulado pela prefeitura. A maioria dos meninos que estavam patinando acatou, sem reclamar, a decisão. Porém, os arruaceiros começaram a vaiar o pobre homem, que usava um só braço, enquanto varia o local e recolhia o lixo deixado pela meninada que freqüentava o recinto. Alcides morria de rir, enquanto Bentevi gritava, cantando:
- Ô vigia cotó!...
Balbino era o mais animado. Ele subiu na cerca de madeira e arame cruzado, que protegia e separava o parque infantil da pista de patins e começou a cantar uma cantiga pejorativa, que ofendia o vigia:
- “O galo canta e o macaco assovia”!
A molecada completava:
- “A pica do jegue no cu do vigia”!
Enquanto a cantiga prosseguia, seguida de mais vaias, alguns moleques pulavam a cerca e iam brincar nas dependências do parque infantil, cujos artefatos não foram construídos para suportar o peso daqueles adolescentes que iam dos treze aos dezesseis anos. Os mais impertinentes era Balbino e Alcides que davam trabalho dobrado ao pobre do vigia. Alcides ficava numa extremidade do parque, correndo de um canto para outro, enquanto Balbino ficava na outra, acossando o homem numa espécie de brincadeira infantil chamada pique.
O vigia tinha um macaquinho de estimação, que ficava preso, amarrado pela cintura em cima de uma cabana, onde eram guardados os apetrechos de manutenção do parque. Naquele momento estava visivelmente agitado, emitindo guinchos nervosos, andando de um lado para outro, parecendo incomodado com os enxovalhos sofridos pelo seu dono. Edgar estava indignado com tudo aquilo. Pensou em intervir, mas foi aconselhado por Porcino a deixar as coisas seguirem o seu curso natural, que naquela hora começava a ficar interessante, pelo fato de dois guardas municipais estarem, ao longe, observando o desenrolar daquela cena, na espera de uma oportunidade para intervir legalmente.
Balbino pegou uma metade de laranja chupada e jogou a casca com muita força, atingindo a cara do pequeno macaco, que guinchou de dor. O vigia quando viu aquilo, urrou de raiva, esbravejando injurias. Enlouquecido pelo ódio, partiu pra cima do rapaz como um raio. Assustado com a reação do homem, o moleque partiu dali sem demora. Quando tentava pular o muro para escapar, Balbino escorregou e teve a infelicidade de cair dentro do parque, sofrendo o espetacular bote do irado vigia, o qual agarrou o moleque com vontade. Tremendo de medo, Balbino sentiu o pulso forte de um trabalhador, acostumado à lida diária que, prendendo o seu pescoço pelo braço cotó, o carregou até a cabana, aplicando-lhe uma tremenda surra com uma vara de marmelo. Os gritos de Balbino foram camuflados pelas vaias da molecada, que naquela hora estavam se divertindo com a má sorte do camarada. Alcides e Bentevi foram os únicos que tentaram ajudar
Balbino. Não pelo sentimento de irmandade que os unia, mas por achar um grande desaforo, ver um jovem da sua faixa etária, ser surrado por um pobre servidor público. Eles pularam o muro e atacou o vigia, que não largou Balbino e os enfrentou corajosamente. Naquele instante, os dois guardas que estavam de vigília, veio em socorro do vigia e aplicaram, com seus cassetetes, boas “borrachadas” em Alcides e Bentevi, que debandaram dali, rapidamente, sob a vaia geral, da alegre molecada. O vigia entregou Balbino aos guardas, os quais o ameaçaram com duas dúzias de “bolos” de palmatória, caso ele retornasse a perturbar o ambiente. O moleque choramingando de medo, com as costas ardendo pelas chicotadas, jurou por todos os santos, que nunca mais iria aparecer por ali. Os guardas soltaram Balbino, que desapareceu rapidamente de cena, sentindo um grande alivio por não ter sido preso. Logo após aquela balburdia, os guardas se despediram do velho vigia, que mais calmo, voltou às suas atividades corriqueiras, encerrando mais um episódio do seu árduo trabalho.
Do outro lado da pista, sentados no banco do jardim, a turma comentava os acontecimentos, tecendo elogios ao valente vigia e escarnecendo do desafortunado camarada de Orlando, que tentava explicar o comportamento do amigo.
- Balbino é um bom sujeito, o mal dele são as más companhias!
- Nada disso! O sujeito não presta! Sempre sacaneou os mais fracos. Ele costuma tomar as revistas dos meninos pequenos e ainda dar cascudos neles! – Protestou Mamãe Eu Quero com vigor. Ele odiava o moleque pelos assaltos às suas revistas em quadrinhos e pelas agressões sofridas no passado.
- É verdade! – Concordou Tõe Porcino, que conhecia o caráter de Balbino e não gostava dele.
Luis, intrigado com as amizades esdrúxulas de seus amigos, perguntou:
- Como é que vocês, sendo boa gente, têm amigos desse tipo?
- Amizades antigas da época que éramos pequenos. A maioria dos nossos pais são amigos – Respondeu Pé de Pata.
Edgar, que também não gostava de Balbino, explicou:
- Balbino é um biribano sem vergonha, mas a mãe dele é gente boa, amiga da minha mãe. Ela é uma viúva trabalhadeira, muito católica e todos os domingos vai à missa. Não tem culpa de ter um filho sacana.
Tendo sido visinho de Balbino desde que nasceu, Mipai contou para Luís sua relação de amizade com o rapaz:
- Conheço o cara desde que me entendo por gente. Ele é mais velho do que eu dois anos. Quando eu era pequeno ele me batia muito, tomava minhas revistas e bolas de gude! Quando cresci um pouco e fiquei mais forte, dei nele uns bons murros. Desse dia prá frente, o sacana começou a me respeitar!
- “Uns e outros” que andam falando bem dele, também não são “flor, que se cheire”! – Insinuou Mamãe Eu Quero, se referindo a Orlando e do episódio anterior.
-Pois é! – Disse Géo pensativo, acrescentando:
- Como diz os mais velhos: “O pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto”!
- Nesse ditado eu não acredito! As pessoas podem e devem mudar – Disse Luis
- Eu concordo com Luis! Por isso digo que “águas passadas não movem moinho!” – Comentou Johnny, querendo encerrar o assunto, sabendo que os garotos adoravam um provérbio popular.
- É isso mesmo, mas não podemos esquecer o que diz o povo: “quem com porcos andam, farelos comem!” – Retrucou Eduardo com outro provérbio.
- É isso mesmo!... Eu acho que a gente deve limitar nossas amizades. Por isso mesmo que adotamos o lema dos Três Mosqueteiros. – Alertou Tõe Porcino
- “Um por todos e todos por um!” gritaram simultaneamente Géo, Pé de Pata e Nêgo.
Luís concordou sorrindo, depois consultando o seu relógio, disse preocupado:
- Tenho que ir embora. Prometi a minha mãe chegar antes das nove!
- Eu também! – Concordou Johnny, que acrescentou:
- Hoje foi um domingo especial! Reencontrei o meu primo, que é amigo dos meus amigos e fizemos amizade com a menina mais bonita da cidade!
Os meninos concordaram com o garoto e juntos seguiram para suas casas, comentando os mais variados assuntos, enquanto o relógio da matriz badalava as vinte e uma horas.


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