domingo, 8 de dezembro de 2019

O último dia de carnaval.

J. B. Pessoa
Capítulo - 13 do livro " Guris e Gibis".

Johnny tinha dormido bastante naquela tarde. Ele era o único da garotada, que tinha o costume de fazer a sesta depois do almoço e, quando acordou às duas horas, toda a sua turma já tinha ido para o centro no caminhão da prefeitura, comandado pelo Sr. José Vaz Sampaio. O garoto tomou um banho frio, reanimando o corpo preguiçoso pelas horas de sono e, com a permissão de seus pais, partiu para mais uma aventura na folia carnavalesca jequieense. A comprida rua onde ele morava, estava bastante movimentada, pelas pessoas que moravam nas redondezas, pois era a principal via de acesso ao centro da cidade. Quando Johnny adentrou no alto do Maringá, encontrou com o Bloco das Dengosas, subindo a Rua Rio de Contas, com a Maria Dengosa no comando. Tony de Leda ainda estava com a perna enfaixada, em conseqüência do incidente acontecido no domingo. Porém não mancava mais e a sua caracterização da Dengosa estava mais engraçada do que antes. O bloco encontrou com o da Turma do Barril, que reabastecia o seu caminhão no Posto Maringá. Os dois blocos se juntaram no bar do posto e a bebedeira cedeu lugar ao consumo de lança-perfume, deixando o lugar carregado com a suave fragrância, despendidas pelos pequenos recipientes cilíndricos com éter perfumado. O bar estava bastante movimentado, com os dois garçons trabalhando arduamente, para poder atender, além dos fregueses costumeiros, aqueles bandos de marotos em suas extravagâncias. Em dado momento aparece o palhaço do Barro Preto, com o seu companheiro fantasiado de urso que, usando o velho pretexto, de pedir aos foliões uma boa talagada de aguardente, para se refrescar e acalmar o seu urso, os dois ficaram bebendo de graça o tempo todo, enquanto divertia a pandegada com suas piadas. O dono do estabelecimento arregaçou as mangas e foi ajudar os garçons, sonhando com o lucro do dia, pois os músicos do bloco A Turma do Barril transformou o ambiente num verdadeiro baile carnavalesco.
Johnny deixou o bar e seguiu para a Praça Ruy Barbosa, descendo pela Rua Maracás. Entrou na Avenida Rio Branco e passou pela porta do Cine Teatro Jequié, que continuava exibindo o famoso filme nacional, com um grande número de pessoas nas filas das duas bilheterias. A grande sala desse cinema contava com mil e duzentos e vinte e cinco poltronas e, como aquela matinê era a última apresentação da película, muita gente, inclusive das cidades circunvizinhas, que passavam o carnaval em Jequié, aproveitaram a oportunidade para assistir ao filme, lotando toda a sala de espetáculos. O garoto ia se dirigindo para praça, quando ouviu o chamado de alguém. Era Tõe Porcino e sua turma, que estava perto de um caminhão estacionado na lateral do Grupo Escolar Castro Alves, na companhia de diversos garotos, todos vestidos com a camisa do flamengo. Johnny se aproximou deles e foi recebido com grande alegria. Tõe Porcino lhe entregou uma camisa, dizendo:
- Esta eu guardei pra você, meu camarada!
O garoto agradeceu a gentileza do amigo e, verificando que, Edgar e Nêgo também estavam usando a camisa do flamengo, questionou:
Ué!... Vocês não afirmaram que jamais vestiriam a camisa do flamengo?
Edgar respondeu, cinicamente, com um provérbio:
- “Em cavalo dado não se olha os dentes!”
- Além disso, a gente pode vender por uma boa nota. Ela deve valer, no mínimo, vinte mil reis e eu já tenho comprador certo para a minha! – Argumentou Nêgo.
Nesse instante, o relógio da matriz anunciou às quatro horas da tarde e o Sr. José Sampaio, funcionário da prefeitura, ordenou que a meninada subisse no caminhão, pois o corso estava começando naquele momento. O Sr. Sampaio estava coordenando a campanha de um abastado fazendeiro, candidato a vereador naquele ano de eleições municipais. Como era torcedor do flamengo carioca e tinha simpatias pelo time jequieense, conseguiu convencer o político a distribuir as camisas entre a garotada, alegando, que a maior torcida nacional era a desse time. Argumentou que, embora a garotada não tenha, ainda, idade para votar, na certa iria influenciar os seus pais. O candidato gostou da idéia e importou do Rio de Janeiro dezenas de camisas, distribuindo entre a meninada.
O caminhão deu partida e entrou na fila dos carros, que compunha o corso. Porcino pegou o seu pandeiro e começou a batucar um samba, que fazia apologias ao time carioca. A turma o acompanhou, cantando alegremente:
Flamengo joga amanhã, eu vou pra lá.
Assistir mais uma peleja no Maracanã!
Os mais queridos, são Rubens, Dequinha e Pavão.
Eu vou rezar a São Jorge, pra flamengo ser campeão!
Johnny ficou algum tempo em cima do caminhão, participando daquela brincadeira sem nenhuma animação. Notou que Edgar e Nêgo procuravam se esconder no meio da meninada, para não transparecer que torciam pelo time homenageado. Depois de um curto tempo, sem dizer nada a ninguém, Edgar pulou do caminhão e desapareceu na multidão. Em seguida foi à vez de Nêgo. Johnny também queria sair dali, pois preferia assistir o corso ao invés de participar. Com receio de fazer uma desfeita com o Sr. Sampaio, colega de seu pai na prefeitura, achou melhor ficar algum tempo na companhia dos torcedores, louvando o time rubro negro. Mais tarde, alegando a necessidade de ir ao banheiro, o garoto aproveitou a oportunidade e deu o fora. Ele foi para a praça, onde ficou por um bom tempo se divertindo, observando os foliões com suas fantasias hilárias. Logo depois, tratou de achar um lugar estratégico para ver os carros alegóricos, que começava a desfilar no corso.
Era grande o número de pessoas que transitavam pelo centro da cidade naquela tarde. A folia parecia ferver no baile que acontecia na pista de patins, desta vez comandada pela banda “Jacó e seus Cadetes”, a qual era financiada pela prefeitura. Em diversos bares a animação era constante, formando verdadeiros bailes improvisados. O último dia de carnaval era, sempre, o mais animado e aquela terça feira não fugia a regra. Carros alegóricos, bandas musicais e blocos de foliões, patrocinados pelos candidatos daquele ano de eleições, davam àquela festividade uma conotação mais arrojada do que nos anos anteriores. A maioria dos trabalhadores brincava com mais vontade no último dia do carnaval, pois no domingo teria que dormir cedo e cedo acordar para trabalhar no dia seguinte. Já na terça feira, data real do carnaval e, portanto, feriado nacional, o folião assalariado podia dar o luxo de amanhecer o dia, pois na quarta feira de cinzas havia o
privilégio de acordar mais tarde, devido o costume do comércio só abrir suas portas depois do almoço.
Johnny se acomodou em um lugar especial da praça, sentando no grande e largo muro, conhecido como “Colarinho de Saback”. Ficou encostado em um dos pequenos postes de luz, situados linearmente em cima do muro. A construção era de estilo neoclássico, possuindo uma curvatura côncava, formando um grande arco, que parecia abraçar o parque infantil e a pista de patins. Esse muro foi construído para disfarçar uma pequena escarpa que, outrora, existia no local, o qual faria parte do projeto arquitetônico do paço municipal. Atrás do muro havia pista calçada, a qual servia de via de contorno para os veículos que circulavam na praça. Na parte central, que ficava no ponto mais íngreme da pequena ladeira, havia uma escadaria que dava para o parque infantil e a pista de patins, onde estava acontecendo o concorrido “baile municipal”. O garoto estava contente da posição por ele escolhida, onde se encontrava, ficando boas horas naquele maravilhoso entretenimento, pois tinha uma visão panorâmica de toda a praça, onde podia observar os acontecimentos lúdicos daquele carnaval.
O corso estava magnífico. Além dos carros particulares enfeitados com motivos carnavalescos, que já tinham desfilado no domingo, apareceram outros, com roteiro especial, representando clubes e entidades jequieenses. Johnny ficou fascinado com o carro do Jequié Tênis Clube, o qual apresentava o rei momo com as chaves da cidade, ladeado pela rainha do carnaval e suas princesas. O rei momo era caracterizado por um gorducho, comerciante local e figura notória nas rodas da boemia. A rainha era representada por uma belíssima morena; uma deusa do amor que deslumbrou a multidão, com seu busto generoso e porte perfeito. Johnny imediatamente a reconheceu. Era a linda colombina da batalha de confetes na tarde anterior. Estava esplendorosa em seu maiô dourado, mostrando suas lindas e torneadas pernas. As princesas, garotas de quinze a dezoito anos, eram igualmente lindas, deixando a garotada delirante. O maior sucesso, porém, veio do Jequiezinho. Era numa grande prancha, puxada por um jipe, na qual foi armado um grande dragão verde, confeccionado com esmero pelas moças do bairro. Na armação da alegoria havia um dispositivo especial, o qual fazia mover a cabeça e a cauda do dragão, quando o carro se movimentava. Em seu dorso estavam montadas belas garotas, com fantasias de gueixas, odaliscas, musas, ninfas e fadas, numa mistura exótica de mitologias, as quais arrancavam aplausos da multidão.
Vários blocos de batucada, financiados pela prefeitura, desfilaram pela praça, mostrando suas cadências e disciplinada harmonia. O mais famoso era “Bando da Lua” da Lagoa Dourada, comandado por um famoso capoeirista do largo. A parte hilariante da tarde ficou por conta de uma figura folclórica da cidade, um afamado beberrão que, detonando a verba patrocinada, não teve outra saída, senão sair sozinho, batucando um pandeiro com um cartaz dizendo: “Bloco do solitário”. A boemia da cidade se concentrava no bar do Joly Hotel, que funcionava no Edifício Vicente Grillo, o qual ficava situado na esquina da Praça Ruy Barbosa com a Rua Dois de Julho, bem em frente da construção de um novo prédio, com dois andares, onde seria instalada a futura Rádio Bahiana de Jequié, a qual seria inaugurada ainda naquele ano. Johnny saiu do lugar onde estava, atravessou o jardim e foi para a calçada da Confeitaria Cristal, esperar o carro do Rei Momo, que juntamente com a prancha do dragão e as batucadas tiveram um roteiro especial,
para serem julgados pela comissão do carnaval, a qual ficava um palco armado no colarinho entre a pista de patins e o parque infantil. Os demais participantes continuaram no roteiro original, passando pela Rua da Itália. O garoto queria rever as beldades do rei Mono e verificou, sem nenhuma surpresa, que outros garotos tiveram a mesma idéia.
De repente um grande alarido se formou nas imediações do Bar Joly. A meninada que estava na porta da confeitaria, correu para ver o que acontecia. Três jovens fantasiados de baianas foram impedidos de entrar no bar, por um grupo de beberrões, alegando que o recinto não comportava a freqüência de indivíduos daquela espécie. Um dos jovens chamado Lourival Pereira de Souza, conhecido como Lourinho, o qual não tinha o costume de acatar desaforos, deferiu um potente soco em um dos desordeiros, deixando-o completamente desacordado. O resto dos beberrões partiu para cima do valente homossexual que, exímio na capoeira, derrubou meia dúzia dos impertinentes, botando o resto pra correr. A algazarra feita pela meninada foi grande na porta do bar, que vaiaram sem piedade a turma surrada. Lourinho e seus amigos desapareceram em seguida, minutos antes da chegada do Tenente Etiene Falcão com uma dupla de policiais, conhecidos como “Cosme e Damião”, que atuaram os desordeiros, intimando-os a pagarem os estragos sofridos no estabelecimento.
Johnny ficou algum tempo ouvindo a resenha da confusão. Quando voltava para a porta da confeitaria, ouviu o chamado de sua mãe. Ela e Maria de Fátima estavam dento de um sedan, na companhia de dos tios avós Emilio e Lina. O garoto se aproximou, pedindo a benção dos dois, ficando encantado com o belo Ford 1946. Maria de Fátima quis conhecer o carnaval e sua mãe satisfez o seu desejo. As duas ficaram tomando sorvete na confeitaria e, às vezes, passeava pela praça. Quando se preparavam para retornarem à sua casa, encontrou os tios, que lhes ofereceram carona. Era quase oito horas da noite e o corso estava se dissipando, gradativamente, com o retorno das famílias para seus lares. Dona Nonna pediu para o garoto entrar no carro, pois a partir daquela hora a praça ficaria a mercê da boemia. Johnny argumentou que ainda era cedo, pois queria ficar por ali, ainda algum tempo. Porém, diante da insistência de sua mãe, não teve alternativa. Entrou no carro, dando adeus ao carnaval daquele ano.

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