segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Uma brincadeira inconsequente.

J. B. Pessoa

Capítulo - 06 do livro “Guris e Gibis”.

O luar estava esplendoroso naquela noite de verão, derramando a sua luz prateada, como se fosse uma dádiva divina, sob aquele humilde subúrbio, que não tinha sido, ainda, beneficiado com a energia elétrica. As crianças brincavam de roda e outros folguedos infantis, enquanto suas mães, sentadas nas calçadas, conversavam sobre as amenidades da vida familiar. A maioria dos pais estava reunida em uma mercearia da rua, cujo dono tinha adquirido um rádio, objeto de luxo e sonho de consumo para os moradores daquela periferia. Estavam todos entretidos, ouvindo um famoso programa da Rádio Nacional, quando Johnny e seus novos amigos, aproveitando a falta da vigília familiar, foram vadiar pelas adjacências. Notando que a lua cheia clareava com intensidade, os meninos perceberam que aquela noite seria ideal para uma brincadeira marota, típica da molecada do lugar. A peraltice consistia em fazer com que alguém segurasse um bastão, sem saber que estava sujo de excrementos, no propósito de deixar continuar uma briga. A vítima, com a mão suja, ficaria enfezada e seria chacoteada pelos moleques em sonoras gargalhadas.
Johnny desconhecia aquela brincadeira. Depois de ouvir Géo relatar a última pegadinha da turma, achou engraçado e riu bastante. Entretanto, não queria participar, por achar que era vulgar e de caráter duvidoso. Edgar discordava da opinião do amigo e argumentava que, quando alguém caía na peça é porque queria o retorno do conflito, quando a atitude correta na hora seria apartar a briga. Por isso o otário merecia a gozação. Johnny continuava indeciso na sua participação, quando Géo assegurou:
- Johnny, quem cai na armadilha é sempre um mau caráter, você vai ver!
- Bom! Sendo assim irei ver como é que é! – Respondeu o garoto convencido de que um pouco de traquinagem não seria tão ruim assim e, virando para a turma perguntou:
- Quem é que vai fingir a briga?
- Nêgo e Mamãe Eu Quero! – Respondeu Pé de Pata, que havia treinado os meninos, desde o final da tarde, já com a intenção de por em prática a hilariante pegadinha, logo mais à noite.
- Cadê o pau? Eu o quero todo meladinho parecendo picolé de chocolate! – Gritou Géo, às gargalhadas, fazendo todo mundo rir com as suas peraltices.
Mamãe Eu Quero entrou no quintal de uma quitanda e voltou com um bastão conhecido como “pau de fumo”, muito usado como defesa pessoal pelos donos de bares e botequins. Depois de preparar o bastão com o ingrediente necessário, a turma foi até ao largo do Cururu à procura das possíveis vítimas.
A noite estava promissora com um luar encantador, dando mais brilho e animação àquela turma de pândegos. Todo o largo estava radiante, com muita gente em suas calçadas conversando, com seus vizinhos, na animação típica das noites enluaradas. A turma seguia circulando pelo lugar, enquanto não encontrava uma situação adequada. A lua se escondeu atrás de uma nuvem negra e todo o
largo ficou às escuras, interrompendo a brincadeira de algumas crianças pela momentânea falta de luz. Os garotos continuaram passeando e, passados alguns segundos, a luz argêntea voltou novamente e com ela mais alegria, iluminando um bando de garotas que, de mãos dadas, formava uma roda, cantando cantigas do cancioneiro infantil brasileiro. Alguns moços encantados com a cena sonhavam ao luar. Eram rapazes mais velhos, já na adolescência e, portanto, mais fortes. A turma achou por bem seguir em frente à procura de vítimas menos perigosas. Logo depois encontrou o que queria. Um bando de garotos jogava gudes, perto de um beco escuro, perfeito para a brincadeira. A turma preparou a encenação dentro do beco a pouca distancia daqueles garotos.
- Você buliu com minha irmã! – Gritou Nêgo para Mamãe Eu Quero. Cerrando os punhos em posição de briga e fingindo raiva, acrescentou:
- Irmã de homem não se mexe!
- Vem se você for homem! – Bradou o negrinho em tom de desprezo e, gritando bem alto para chamar a atenção da garotada do largo, acrescentou:
- Vou lhe mostrar com quantos paus se faz uma canoa!
- Muito bem garoto!... Mostra pra esse “branquelo” que o preto é mais forte que o branco!
A turma, surpreendida com a repentina aparição, verificou que a pessoa que proferiu aquela provocação era uma mulata gorda, vestida de baiana, que tinha um tabuleiro no centro da cidade, no qual vendia os quitutes da cozinha afro-baiana. Nesse momento a meninada foi chegando, aos bandos, numa algazarra total, para ver a briga que ia começar. Mamãe Eu Quero fingiu dar um soco em Nêgo que, bateu forte com as palmas das mãos escondidas por atrás das costas, dando o efeito sonoro de um potente murro. Os dois garotos eram ótimos atores. Sabiam cair, levantar e repetir tudo de novo, sob a gritaria da molecada que estava surpresa com a valentia do garoto menor, dando uma surra no robusto lourinho, que tinha fama de bom brigador. O sangue feito de mel de groselha jorrava a valer e a luta parecia ser verdadeira. À medida que a trama acontecia, foram aparecendo outros moleques que, animados com a briga, incentiva, ainda mais, os lutadores. Os gritos e vaias atraíram alguns adultos que, ao invés de apartarem os garotos, incentivavam, ainda mais, a contenda entre eles. Johnny compreendeu naquele momento, o que Géo e Edgar tinham afirmado. Era, realmente, um bando de vagabundos estimulando uma briga entre duas crianças e mereciam serem enxovalhadas. A gorda baiana, acompanhada de uma filha de quinze anos, fazia o maior alarido. As duas gritavam mais do que a molecada, impulsionando a briga entre os meninos. Nesse momento, conforme previsto, Nêgo, simulando medo, corre da briga e pega o pau de fumo, colocado estrategicamente em determinado lugar. A lua se esconde novamente e todo o largo volta ás escuras. A molecada começa a gritar, pedindo o retorno da briga. A baiana gorda ria às gargalhadas e nenhum dos adultos ali presentes tiveram a decência de separarem as crianças, que estavam brigando. O luar retorna brilhando magnificamente, encontrando os dois garotos em posição de combate. Nêgo segurava ameaçadoramente o bastão e, por um momento, julgou que a claridade lunar, fosse denunciar aquela
brincadeira, pois o pau estava visivelmente sujo. Fingindo covardia, corre um pouco e pára à esquerda de uma casa, cujo lado estava em sombras, camuflando, assim, o bastão sujo. Nesse momento, o negrinho, fazendo pose de mocinho caubói, fala como se tivesse sido dublado e, usando expressões da linguagem dos quadrinhos, disse para o outro:
- Larga o pau patife e lute com os punhos se for homem!
- É isso mesmo! – Gritou a baiana gorda ávida de sangue, que acrescentou:
- Onde já se viu um marmanjo desses pegar um pau para bater num menino tão pequeno?
- Não é isso dona! – Retrucou Nêgo, fingindo arrependimento e explicou:
- Se eu largar o pau ele pega e me bate com ele!
- Deixa que eu seguro o pau seu covarde! – Disse a mulher com desprezo, querendo a todo o custo, o retorno da briga.
A turma ficou em expectativa. Não esperava a participação de alguém que não fosse da idade deles. Nêgo relutou muito e a mulher insistia. Ele não queria pegar uma peça dessas em uma senhora. Os garotos entreolharam-se sem saber o que fazer. Edgar, interferindo na situação, gritou:
- Dê o pau para a baiana segurar, senão eu lhe dou umas porradas seu sacana!
Nêgo, sentindo a aprovação de todos, falou:
- Olha aqui, dona. Foi à senhora quem pediu! – Querendo conter o riso que teimava em aparecer, estendeu o pau em direção a ela dizendo:
-Já que é assim, tome!
Sem olhar direito, a mulher segurou com força a extremidade suja do pau. Nesse momento, o garoto puxou o bastão, bem devagar, e a sujeira deslizou suavemente, emporcalhando a mão da impertinente baiana. Sentindo suas mãos sujas, ela gritou, dizendo:
- Droga!... Está melado de lama!
A filha aproximou-se um pouco e, olhando com atenção, cheirou as mãos da mãe, dizendo com nojo:
- Funnn!... É cocô, mãe!
A mulher levou as mãos às narinas, aspirou e bufou de raiva!
- Vocês me pagam seus moleques! Vou buscar meus filhos e vocês vão ter o que merecem!
As gargalhadas e vaias contribuíram para deixar a mulher mais furiosa. Ela saiu apressada do lugar, indo embora depressa, ruminando um ódio mortal pela meninada. Foi em busca de vingança, acompanhada pela filha, que berrava palavrões, chamando a atenção dos moradores do lugar. A garotada, morrendo de rir, subestimava as ameaças da mulher. Tõe Pocino rolava no chão, exagerando em suas risadas, enquanto alguns adultos, participando da folia, chacoteavam a baiana humilhada.
Terminada a brincadeira, os garotos saíram apressados, comentando o acontecimento da noite, rindo muito da mulher, que pagou caro pela ousadia, de insuflar brigas em crianças. Foram para casa, pegando um atalho em um beco
escuro, e ficaram, por algum tempo, em animadas conversas. De repente, sem que eles pudessem prever, foram atacados de surpresa por três mulatos, já adultos, que distribuíram pancadas a valer. Era a baiana com os filhos, que vieram vingar os desaforos sofridos. A correria foi geral. Edgar foi o único que enfrentou os agressores, pois Johnny recebeu o primeiro murro, caindo numa ravina, por onde passava um esgoto. Com os ouvidos zumbindo, compreendeu porque nos quadrinhos, havia desenho de estrelas, em volta do vilão surrado. Tratou de ficar escondido ali, naquele lugar fedorento, encoberto por um mato ralo. Quieto e morrendo de medo, viu a tremenda surra que levou seus camaradas. Os mais espertos conseguiram fugir, ficando apenas Edgar se atracando com um e Mamãe Eu Quero nas garras de dois, enquanto a baiana lhe aplicava a palmatória nas mãos. Os gritos da criança eram constantes. Johnny escondido, não se atrevia a socorrer os amigos, experimentando pela primeira vez, o gosto amargo da covardia. Nesse momento aparece Mipai, o qual se encontrava ausente, e salta em cima dos mulatos, derrubando mãe e filhos. Com a coragem de um leão, o garoto aplica um potente soco em um dos mulatos, jogando-o ao solo. Edgar Pé Grande, já refeito dos golpes recebidos, reage e derruba o segundo com um murro e se atraca com o terceiro. Munidos de repentina coragem, Johnny e Pocino saem de seus esconderijos e partem para a briga, auxiliando os dois amigos. Livre das garras dos mulatos, Mamãe Eu Quero toma a palmatória da baiana e com um empurrão joga-a numa grande poça do fétido esgoto, enquanto o resto da turma voltando armados de paus e pedras botam pra correr os três marmanjos, que fogem abandonando a mãe, atolada na poça de fezes.
A turma tratou de dar o fora bem depressa do lugar, temendo novas represálias. Os garotos partiram para a Rua Siqueira Campos reunindo-se em volta do chafariz, que ficava no final da rua. Os garotos sentaram em volta de Mipai elogiando a sua valentia e comentando as aventuras da noite. Mamãe Eu Quero ainda choramingava e a turma fazia troça de sua pouca sorte. Entretanto, o garoto exibia com orgulho, a palmatória que ele tomou da baiana, considerando-a com troféu de guerra. A meninada ficou, por um bom tempo, em animadas conversas, quando escutou, ao longe, o badalar do relógio da matriz anunciando às dez horas. A voz enérgica de um dos pais conscientizou a turma que já tinha passado a hora de dormir. Eram poucas as pessoas, que ainda transitavam pela rua, pois, a maioria já tinha se recolhido. Os meninos ficaram, ainda por alguns instantes, a olhar para a lua, que com a sua luz maravilhosa, encantava a todos. Mamãe Eu Quero, que tinha se esquecido das pancadas que levou, conversava animadamente e ria da baiana gorda. Os meninos se despediram e foram todos embora, alegres e sorridentes. Um suspiro gostoso tomou conta de Johnny. Ele era feliz e sabia disso.

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