domingo, 21 de julho de 2019

O “pregador” de mentiras.

                        J. B. Pessoa.

Caríssimos amigos, presentes em meu estabelecimento, nessa fria e escura noite de agosto: Como hoje é sábado, estou preparando uma boa feijoada sertaneja, cozinhada em um fogão a lenha, numa grande e velha panela de barro, a qual estará pronta antes da meia noite. Todos os senhores estão convidados. Mas antes vamos tomar um cafezinho com um requeijão da cidade de Livramento, minha terra, e esperar o compadre Ambrosio, o qual foi buscar o seu Manequito, que está fulo de raiva com um comentário que surgiu mais cedo. Falando no Diab... Digo, no homem, eis aqui o maior proseador dessas bandas, que veio nos dar a graça de sua presença.
Meus camaradas de prosas: o seu Manequito anda chateado, e com muita razão, porque um mequetrefe, aqui do nosso bairro, anda dizendo que a minha venda é um clube dos mentirosos e que o seu Manequito é o maior de todos! Vê se pode?!... Como é seu Otonho? O tal sujeito em questão é um beberrão sem eira e nem beira, também sem trabalho, que anda socado no bar da esquina, jogando sinuca o dia inteiro, junto a outros de sua confraria?!... Ué!... Se aqui é o clube dos mentirosos, lá deve ser o clube dos vagabundos. Isso seu Manequito! Pode rir a vontade, o senhor merece. Afinal, todos aqui são homens de bem. Somos pobres, porém honestos e trabalhadores. Verdade seu João do Osso? Nós não somos pobres?! O que somos é caixa baixa, pois quem é pobre é o Diabo, que não tem as graças de Deus?!... Taí, essa eu concordo com o senhor, pois como diz um ditado do povo: “Deus dá o cobertor conforme o frio”. Pois bem: Somos pessoas decentes e sempre nos reunimos pra prosear e contar nossas aventuras e nossos causos do dia a dia. Eles que fiquem por lá, com os deles, bebendo e jogando, apostado, sinuca e baralho, além d’outros jogos de azar. Problemas deles! “Cada macaco no seu galho”; o nosso é aqui e o deles lá, o qual é sempre visitado pela polícia que, de vez em quando, leva um deles para o xilindró. Nós ficamos com nossos causos, segundo eles, mentirosos, nos divertindo; porque astuciar uma estória é uma arte e não um crime e nem dá cadeia.
Como já dissemos anteriormente: aumentar o tamanho do peixe é uma mentirinha compreensível! O peixe que foi pescado é verdadeiro. Definir o tamanho dele fica por conta do proseador e ninguém tem nada a ver com isso. Pois é seu Manequito: o senhor tem razão! Eu soube que a corja daquele bar anda falando da vida alheia, inventando mentiras sobre as pessoas de bem.
Por falar em mentiras, existem pessoas que só contam causos mentirosos! O sujeito, que nunca viu uma vara de pescar e não sabe o que é um anzol, espalha aos quatro ventos que pescou um peixe do tamanho de um boi! Esse sim, que é um mentiroso de marca maior. Eu conheci um proseador assim, pois além de mentir, ele difamava muita moça donzela e de boa família. Eu vou contar esse causo pra vocês depois da gente tomar um cafezinho quente.
Quando eu estava morando no Rio de Janeiro, vivendo naquela pensão, na companhia dos meus amigos, os músicos Ademar, Pedro e Paulo, eu conheci várias pessoas, vindas dos quatro cantos do Brasil. Eram pessoas boas e trabalhadeiras; algumas delas eram talentosos artistas, que mais tarde fizeram sucesso no rádio, televisão e cinema.
O dono dessa pensão só aceitava hóspedes do gênero masculino, porque achava que, macho e fêmea morando no mesmo lugar era encrenca certa. Contudo, sua mulher gerenciava outra, na qual vivia muita moça bonita e ostentava o soberbo nome de “Pensão dos Artistas”. Na pensão que a gente morava havia dois baianos, um de Salvador outro de Vitória da Conquista, os quai me foram apresentados por Ademar, alegando que aqueles meus conterrâneos, eram pessoas muito especiais.
Seu moço!... Meus camaradas de prosas! Eu nunca vi duas pessoas tão diferentes, uma da outra, serem amigas. Os dois eram jovens e tinham mais ou menos vinte e cinco anos de idade. O de Salvador chamava-se Roberto Grillo Viana; falava pouco e se dizia um artista moderno e, como tal, um incompreendido. Era bem apessoado e não tinha aspecto de um baiano habitual, pois era louro e tinha os olhos azuis; contudo, afirmava que pertencia a uma tradicional família soteropolitana. Já o de Conquista era um falastrão. O seu nome era José Bispo dos Santos, o Zezinho das meninas, conforme a sua autodenominação. Não fazia o tipo característico do sudoeste baiano. Era moreno de cabelos crespos e tirado a bonito; Tinha a falsa aparência de um boêmio carioca, nascido em qualquer lugar do mundo, menos no Rio de Janeiro. Trabalhava como vendedor em um elegante magazine na Avenida Rio Branco e dizia conhecer pessoas importantes do cotidiano fluminense. Apesar da aparente amizade entre os dois rapazes, era notória a adversidade entre ambos, ou pelo menos era o que eu achava. Seu moço, o tal de José Bispo pertencia àquela espécie de “pescador”, que me referi antes! O pior de tudo era que muita gente acreditava em suas lorotas. Metido a valente e audacioso, ele se dizia ser um verdadeiro sedutor, pois já havia deflorado 32 moças bonitas, sendo a maioria de sua cidade. Como é mesmo seu Abdias?!... Se isso tivesse, realmente, acontecido, o malandro já estaria morando na cidade de pés juntos, pois o povo de Conquista não dá moleza a ninguém?!... Foi o que eu pensei! Pois bem: eu, que sempre fui um homem de boa vontade e de fácil convivência, logo de início me antipatizei com o sujeito, pois detesto quem costuma difamar moças donzelas, filhas de quem quer que fosse. Percebi então, que eu não estava sozinho na minha cisma, pois notei que alguns dos rapazes pensionistas e, principalmente o amigo dele, o qual não gostava daquela prosa potoqueira.
Certa manhã, durante as refeições matinais, enquanto o pessoal ouvia as aventuras do conquistense, Roberto, o de Salvador, apareceu com um artefato de madeira, que parecia um grande quadro. Olhando para todos com um sorriso de deboche, colocou a peça pendurada na parede da sala de jantar e pregou nele um prego pequeno. Quando os rapazes questionaram o que era aquilo, ele respondeu que era uma escultura surreal!... Ih seu Otonho, não me pergunte o
que é isso, que eu também não sei! Pois bem: O quadro estava revestido em toda a sua área com pregos de todos os tipos e tamanhos. Quando alguém lhe perguntou, o que significava todos aqueles pregos, ele explanou que era “uma delação espontânea das mitificações de mentes doentias”. Os amigos aqui presentes nesta noite de prosas entenderam alguma coisa?!... Nem eu, naquele momento; Porém, não perguntei nada! Quieto eu estava e quieto fiquei, observando a tudo àquilo com muito interesse. O tal José Bispo olhou para o pessoal, balançando a sua cabeça negativamente e circulou o seu dedo indicador na parte direita de sua testa, indicando que o seu amigo era um demente.
O tempo foi passando e, como sempre, nas horas das refeições, o Zezinho das meninas contava mais uma das suas. Logo após o final de cada história, Roberto vinha e pregava um prego na sua escultura surrealista. Foi aí então, que percebi que o maroto estava pregando as mentiras do companheiro, naquela tábua em forma de um quadro, como uma espécie de protesto; e que o tamanho do prego variava conforme a dimensão da mentira. Às vezes era um prego bem pequeno e outros bastantes grandes. Contei para os meus amigos de quarto a minha descoberta e eles espalharam para todos os hóspedes daquela pensão, deixando os pensionistas de prontidão. Toda vez que o José contava um caso, o Roberto vinha com um prego e pregava a mentira no quadro, fazendo a rapaziada rir daquela estripulia. O José não entendia nada ou fingia não entender. As mentiras do embusteiro eram tantas, que no quadro não havia mais espaços, para tantos pregos de tamanhos tão diferentes.
Em um domingo, após o almoço, o pessoal notou que o José Bispo dos Santos não havia pernoitado na pensão. O meu amigo Ademar Sergipano perguntou a Roberto, onde se encontrava o seu companheiro e ele respondeu que não tinha a menor ideia. Lá pelas cinco horas da tarde, o sujeito apareceu com ares de vitorioso, afirmando que teve a noite mais gloriosa de sua vida. Havia conhecido a mulher mais bonita do mundo no Cassino da Urca e tinha dormindo com ela na suíte presidencial do Copacabana Palace Hotel. Roberto arregalou os olhos, diante da novidade e os rapazes perguntaram quem era a dita beldade. José Bispo dos Santos olhou para todos com desdém, estufou o peito e disse na maior cara de pau: Olivia de Havilland!... Seu moço, meus companheiros de prosas!... Naquele momento um profundo silêncio reinou no ambiente, deixando pasmados todos os rapazes na sala de jantar, espantados com a audácia do sujeito. Logo aquela famosa e belíssima atriz, que nem os maiores garanhões do cinema americano conseguiram conquistá-la, conforme afiançaram Pedro e Paulo, e vem um sujeitinho à toa, sem eira e nem beira, afirmar semelhante asneira. De repente, Roberto vai até o seu quarto e volta, em seguida, com o maior prego que já vi até hoje. Com o martelo na mão e muita indignação no rosto, ele pregou aquele prego no quadro, o qual era tão grande e grosso, que rachou no meio aquela grossa madeira. Subitamente toda a rapaziada caiu na gargalhada, enquanto os mais afoitos deram uma série de cascudos no mequetrefe, jogando-o numa sarjeta, formada pelas chuvas da noite anterior, emporcalhando todo o terno de linho branco do infame
mentiroso. A seguir, os rapazes saem juntos, levando Roberto na companhia deles, indo farrear num boteco da Praça Tiradentes, deixando o sujeito caído na lama. Escondendo o meu sorriso, eu fui ajudar o sujeito a se levantar, dizendo para ele não guardar rancor, pois os rapazes estavam embriagados. Parecendo não haver entendido bem os acontecimentos, ele entra na pensão, um tanto avexado, dizendo que ia tomar banho, pois estava com ressaca muito grande. Logo após, eu segui para a Cinelândia, com meus amigos Ademar, Pedro e Paulo para assistir um bom filme, em um dos seus cinemas.
Foram esses, os acontecimentos inusitados daquele domingo, meus amigos! No dia seguinte, um dos rapazes da pensão disse para mim que, se um sujeito bonito e milionário afirmasse para ele uma coisa daquelas, ele poderia até acreditar! Mais aquele cara?!... Portanto eu digo para vocês: ninguém pode dizer que pescou um peixe, sem ter pescado nada; e como “toda mentira tem as pernas curtas”, a do Zezinho das meninas nem pernas tinha; por isso, naquela tarde, ele foi desmascarado em suas conversas e foi jogado na lama, pela exasperada rapaziada. Agora vamos tomar outro cafezinho, que eu vou olhar como anda a feijoada. Volto rapidamente, para ouvir o seu Macedo, contar o caso do Dom Juan de Feira de Santana.

* Último capítulo do livro “As Aventuras de um Catingueiro”

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