J. B. Pessoa
Capítulo - 67 do livro " Guris e Gibis".
O Natal daquele ano foi maravilhoso. O centro da cidade ficou completamente ornamentado com motivos natalinos, obedecendo aos conceitos, que observava a tradição católica. A decoração foi feita pela prefeitura da cidade, que iluminou toda a Avenida Rio Branco. Da Praça Castro Alves, onde estava localizada a igreja matriz, passando pela Rua Dois de Julho, até a Praça Ruy Barbosa, era tudo luzes e festas. Para apoiar o excesso de energia, desprendido nessas “Boas Festas”, foi necessária a cooperação dos dois cinemas, os quais contavam com geradores próprios em suas empresas.
Johnny
estava particularmente feliz. Tinha recebido um cartão de Natal, acompanhado de
uma longa e carinhosa missiva de sua amada Berenice. A carta estava decorada
com os lábios impressos da menina, em um rubro batom, simbolizando muitos
beijos. A garota agradecia o gesto do namorado, que havia lhe enviado um cartão
romântico, desenhado por ele mesmo, com vários desenhos cômicos e diversas
frases brejeiras, que brincavam com o amor deles. Johnny enviou antecipadamente
o cartão pelo correio, logo no início do mês, temendo não ser recebido pela
garota no seu devido tempo. Ela agradeceu o seu gesto, elogiando os seus dotes
artísticos, e o congratulou pelo seu sucesso no exame de admissão. Prometeu ao
garoto, que no próximo natal, os dois estariam juntos, novamente.
Naquela
noite especial, o Senhor Miguel Viana Pereira presenteou a sua família com um
belo rádio, adaptado a uma bateria de carro, pois a energia elétrica, ainda não
havia chegado naquele modesto subúrbio. Dona Nonnita agradeceu a generosidade
do marido com um delicioso jantar. Em lugar do tradicional peru, ela preparou
um capão à moda sertaneja, cujo tempero desprendeu odores peculiares, motivando
a curiosidade da vizinhança para tão saboroso banquete. Ela se sentia
especialmente afortunada com a vitória do seu filho no exame de admissão, o
qual foi aprovado no terceiro lugar entre os concorrentes. Após o jantar, o
Senhor Miguel sintonizou o aparelho na Rádio Bahiana de Jequié, no momento em
que a emissora apresentava um programa com músicas natalinas. Maria de Fátima
estava radiante com aquele presente. Ela ficou com a família ouvindo aquelas
suaves cantigas e foi dormir mais tarde, não se esquecendo de deixar seus
sapatos juntos, à espera de certa visita. Tinha escrito ao Papai Noel, pedindo
o livro “Histórias de Tia Anastácia” de Monteiro Lobato. Pediu para Dona
Nonnita colocar a carta no correio e o Senhor Miguel lhe assegurou a visita do
bom velhinho.
Johnny
avisou aos seus pais, que só voltaria para casa depois da meia noite, após a
“missa do galo”. Dona Nonnita e o marido não quiseram sair naquela noite
especial. Eles ficaram esperando a visita de dois ternos de reis, do tipo
pastorinhas. Eram as portuguesas e as espanholas, compostas por garotas dos
doze aos dezoito anos que, todos os anos, saíam pelo bairro à noite, festejando
o nascimento de Jesus. Do Natal até Dia de Reis, muito bumbas,
ternos,
e cantadores de reis saíam pelas ruas até a madrugada, cultivando uma tradição
nordestina, trazida pelos portugueses nos tempos coloniais. O garoto
despediu-se deles prometendo acompanha-los na missa das nove horas do dia
seguinte. Depois de encontrar seus amigos Géo e Nêgo, Johnny saiu na companhia
deles, os quais ficaram de encontrar Mipai e Tõe Porcino no jardim, perto da
pista de patins, onde haveria um encontro de “cantadores de reis”. Os três
amigos seguiram pela rua em destino ao centro da cidade. Géo tagarelava
bastante, animado em passar suas férias na praia. Seu pai tinha sido contratado
por um fazendeiro local, para erguer uma casa de veraneio na cidade de Itacaré,
perto do estuário do Rio das Contas e ia levar o filho para trabalhar consigo,
como o seu ajudante de pedreiro. Enquanto Johnny se aprazia da alegria de Géo,
Nêgo andava acabrunhado, sem dizer nada, parecendo distante, não acompanhando o
entusiasmo do amigo. Johnny estranhando aquela atitude, perguntou ao garoto:
- O
quê que há com você rapaz!... O gato comeu a sua língua?
Nêgo
balançou a cabeça e, contrariado, desabafou:
-
Primeiro foi Edgar e depois Pé de Pata! Agora que Géo vai para Itacaré, o nosso
clube vai ficar às moscas!
-
Arranje uma namorada também e leve para o clube! Afinal, menina entra no nosso!
- Disse Johnny, pilheriando com o garoto.
Géo
esfregou as mãos, demonstrando voracidade:
- Por
falar em meninas, as praias de Itacaré andam cheias delas!
- Eu
nunca estive numa praia! – Disse Nêgo com tristeza.
Géo
assegurou com ironia:
- Nem
eu!... Por que você acha que estou alegre em acompanhar meu pai? Detesto ser
ajudante de pedreiro!
Johnny
sorriu do deboche de Géo e confessou a sua aspiração, completando a mesma com
um provérbio popular:
- Eu
também não conheço uma praia e gostaria de tomar banho de mar! Porém, tudo tem
o seu tempo certo e não se esqueçam de que: “Toda araruta tem o seu dia de
mingau”!
No
momento em que os garotos passavam pela pequena praça, onde desembocavam outras
ruas, situada no meio da Rua Siqueira Campos, apareceu de uma delas, o terno de
reis denominado de “as espanholas” cantando a sua cantiga tema:
Espanholas
douradinhas são do cordão de amor!...
Nêgo
ficou animado com a repentina aparição. A porta-bandeira do terno era uma linda
moreninha, que o deixou encantado. Os garotos seguiram o terno até a casa do velho
Pedro, o qual tinha um estabelecimento que alugava bicicletas para a garotada.
Chegando a casa, na qual a visita era esperada, as garotas cantaram:
Ioiô,
dono da casa,
Sua
chave é de ouro!
Queira-nos
abrir a porta
Queremos
ver o seu tesouro!
A
família abriu a sua porta e recebeu as meninas com muita alegria. Johnny, Nêgo
e Géo aproveitaram a ocasião e, juntamente com outros vizinhos, adentraram
àquele lar, na busca das guloseimas oferecidas, tradicionalmente, nas Boas
Festas. As meninas entoaram outra cantiga:
Dono
da casa ele é bom, ele dá.
Garrafa
de vinho e docinho de araçá!...
Nêgo e
Géo resolveram acompanhar o terno das meninas. Ficaram animados com a
possibilidade de namoro com duas delas, enquanto tomavam seus cálices de vinho,
servidos pela dona da casa. Johnny despediu-se dos dois garotos, ficando de
encontrá-los mais tarde, na missa do galo. O garoto seguiu sozinho, relembrando
com melancolia a sua bela Berenice. Quando entrou no Largo do Maringá, avistou
Tõe Porcino e Mipai subindo a Rua Rio de Contas. Esperou pelos meninos, e
seguiram juntos para o centro da cidade.
A
avenida e a praça estavam bastante movimentadas naquele momento, com muita
gente passeando pelas ruas. Os garotos passaram pela porta dos dois cinemas, os
quais apresentavam filmes reprisados dos dias anteriores. Nesse momento a banda
filarmônica apareceu, tocando seus dobrados e seguiu para a praça, arrastando
consigo uma multidão de pessoas. Johnny e seus amigos acompanharam a feliz
meninada até a pista de patins. A banda continuou o seu desfile circulando pelo
jardim, parando, às vezes, defronte da Confeitaria Cristal e do Bar Joli.
Os
garotos sentaram em um banco do jardim, em frente da pista de patins,
observando a meninada patinando e rindo com os tombos deles. Johnny, que nunca
dantes havia tentado patinar, ficou admirado com o desempenho de alguns, que
eram exímios patinadores. Confessou aos amigos a sua vontade, em tentar andar
neles e ouviu a jocosa opinião de Mipai:
- Se
você quiser quebrar a bunda, vá firme que nós lhe aplaudiremos!
- É
tão perigoso assim?! – Perguntou o garoto, admirado com aquele comentário.
Tõe
Porcino esclareceu para o amigo, dizendo:
- Para
quem é treinado, não. A maioria tem seus próprios patins e treinam nos pátios
de suas casas. Esses que a gente está vendo cair são os que estão tentando
aprender. Eu, da minha parte, não tenho a menor vocação para isso, pois já
levei bons tombos!
- Eu
também! - Confessou Mipai.
Johnny
desistiu da ideia. Ficou conversando com os garotos a respeito das brincadeiras
infantis e acabou admitindo para os amigos, que não tinha o menor talento para
muitas coisas. Confessava os seus fracassos, fazendo graça de si mesmo. Dizia
para eles que era ruim de triângulo, gude e pião. Não sabia empinar pipas e
papagaios e era um péssimo jogador de futebol. Mipai olhou para o garoto e,
admirado com a sua franqueza, tocou em seu ombro, dizendo com sinceridade:
- Mas
é bom de estilingue, bom nadador e bom de briga!
- Na
nossa turma é o que tem a melhor pontaria em espingarda! – Concluiu Tõe
Porcino.
Johnny
ficou contente com os elogios dos amigos. Principalmente vindos de Mipai que
era o maior zombador que ele conhecia. Agradeceu aos meninos as suas
considerações, sem a falsa modéstia, muito comum entre a meninada, e os
convidou para tomar um caldo de cana, numa barraca situada atrás do “Colarinho
de Sabak”, perto do parque itinerante, que era armado na cidade todos os anos
para as Boas Festas.
A
noite estava maravilhosa, com uma temperatura agradável, sendo assessorada por
uma lua minguante, em um céu de poucas nuvens e muitas estrelas. Os garotos
ficaram por algum tempo, saboreando seus caldos de cana, enquanto olhava a
meninada brincando nos artefatos proporcionados pelo parque. De repente
começaram a ouvir melodias vindas do início da Rua Lélis Piedade. Eram cantigas
folclóricas, cantadas por vozes juvenis, acompanhadas por um acordeom, alguns
instrumentos de percussão e dois instrumentos de cordas. Todos que estavam no
parque pararam para ver “As Baianinhas”; terno da Paróquia De Santo Antônio,
cujas participantes eram consideradas as garotas mais bonitas da cidade. Elas
entraram na praça entoando a sua principal canção:
As
baianinhas com alegria,
Pisando
em flores, na mocidade.
São
jovens brasileiras!
Vem
com prazer,
Cantar
seu canto na cidade.
Somos
todas as baianinhas,
Que
vieram visitar a Jesus
E ver
o Deus-Menino
Em seu
presépio de Natal!
As
garotas estavam fantasiadas com o traje tradicional das baianas. Levavam a
tiracolo, pequenos recipientes cheios de água perfumada, com pétalas de flores
dentro deles. O terno entrou na praça, contornando todo o jardim, com as
garotas jogando gotas de água perfumada, nos rapazes que as saudavam.
Os
garotos seguiram as belas moças até a Confeitaria Cristal, onde encontraram
Edgar e Neide, que os saudaram com alegria. Eles estavam na companhia de
Eduardo e Luísa, os quais cumprimentaram os meninos com jovialidade e,
desejando-lhes um feliz Natal, convidaram-nos à suas mesas. Johnny aceitou de
imediato aquele convite, enquanto Mipai e Porcino preferiram acompanhar o terno
das Baianinhas, em seu passeio pelas ruas do centro.
Naquele
momento o local estava repleto da brilhante juventude jequéense. A confeitaria
Cristal era um estabelecimento que primava pelo comportamento convencional da
sociedade, numa época em que os conceitos obedeciam a regras mais apuradas. O
consumo de álcool era proibido, mas,
mesmo
assim, alguns marotos levavam escondida alguma garrafa de vinho. Johnny notou
alguns jovens embriagados, que falavam alto e faziam baderna naquele momento,
incomodando outros, os quais protestavam pela falta de compostura dos bêbados,
que perturbavam o ambiente. Logo depois, quando apareceram Bill Elliott e Eva
Marli, todo o grupo resolveu sair do local e ir para a igreja, ficando à espera
da missa do galo.
Acompanhando
uma tradição brasileira, a Paróquia de Santo Antônio realizava, todos os anos,
uma missa campal na Praça Castro Alves, nas saudosas noites de Natal e Ano
Novo. Nesse peculiar ano, foi erguido um palco em frente à igreja, no espaço
entre as duas escadarias, no qual foi montado um majestoso altar, à espera dos
fieis para a tradicional missa. Depois de visitarem os presépios nas casas dos
amigos, a maioria dos católicos comparecia àquela missa, a qual funcionava como
um verdadeiro encontro social. Pobres, ricos e remediados se confraternizavam à
meia noite, obedecendo aos preceitos cristãos. Embora nostálgico, sentindo a
falta do seu amor, Johnny estava feliz na companhia dos seus amigos, ficando
com os casais de namorados até o final da missa. Quando todos se congratulavam
pelo feliz Natal, apareceram Géo e Nêgo e logo após, Mipai com Tõe Porcino. A
boa nova veio por parte de Pé de Pata, que na companhia de Gina, comunicou os
amigos, que tinham ouvido em um programa da Rádio Nacional do Rio de Janeiro,
no qual Orlando cantava, com o nome artístico de Orlando Santos. A grande
surpresa foi que ele mandou um abraço para os amigos de Jequié. Ouvindo a
noticia, Nêgo protestou zangado:
- Não
acredito nisso! Como vocês sabem que era ele mesmo?
- Ora
essa! Ele falou no rádio, o nosso nome! – retrucou Pé de Pata.
- E,
além disso, cantou a música “Sertão de Jequié” – Completou Gina.
Eva
Marli olhou para Johnny e apertou sua mão, dizendo:
- Esta
é a canção predileta de Berenice!
- Eu
sei disso! - Disse o garoto com os olhos lacrimejados.
Mipai
e Tõe Porcino ficaram satisfeitos com as notícias, enquanto Géo e Nêgo se roíam
de inveja de um sujeito que eles detestavam. Eduardo sorriu e proclamou
ironicamente:
-
Pelos menos ele vai ter condições de pagar o meu conto de réis!
Os
garotos riram bastante do comentário de Eduardo, relembrando a inusitada
aposta. Nesse momento o relógio da matriz anunciava a primeira hora da manhã de
Natal e todos foram para as suas casas.
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