sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

O circo.

                                             J. B. Pessoa

Capítulo - 60 do livro " Guris e Gibis".

Toda a classe estava em silêncio, concentrada em seus deveres escolares, quando começou a ouvir uma voz cômica, dizendo coisas engraçadas, quebrando a monotonia daquela singular manhã. Surpreendida com todo aquele barulho, a professora Emília foi até a janela para ver o que estava acontecendo, sendo seguida pelos seus alunos, os quais ficaram encantados com o inusitado acontecimento. Tratava-se de um espirituoso palhaço, que desfilava pela avenida, usando longas pernas de pau, sendo acompanhado pela alegre meninada. O palhaço gritava:

- Hoje tem espetáculo?

A garotada respondia:

- Tem sim senhor!

O palhaço continuava:

- Oito horas da noite?

A garotada continuava respondendo as perguntas do palhaço:

- Tem sim senhor!

- Palhaço o que é?

- Ladrão de mulher! – Respondia a molecada numa alegria contagiante.

O alegre palhaço abria caminho para o desfile de um circo, anunciando a sua estreia, logo mais a noite. Era o famoso Circo Teatro Nerino, divulgado com sensacionalismo, pelos serviços de alto-falantes da cidade, desde o início daquela semana. Estava sendo armado no largo do Campo do America, perto do Colégio Estadual, atraindo a curiosidade dos moradores daquele bairro. Havia algum tempo, que aquele circo era aguardado em Jequié, pelas notícias que traziam dele, os caixeiros viajantes de passagem pela cidade. O desfile do circo pela avenida chamou a atenção de muitos transeuntes naquele momento, que paravam as suas atividades, para apreciar aquele belo espetáculo. A professora Emilia liberou seus alunos para irem ao pátio e assistir ao belo cortejo, o qual apresentava seus artistas e fazia propaganda de suas principais atrações. As crianças da escola ficaram maravilhadas com vários palhaços que, na mímica, apresentavam suas estripulias, arrancando gargalhadas das pessoas que os assistiam. Os guris ficaram deslumbrados com a estrela principal, uma bela garota que atuava como malabarista e atriz das principais peças teatrais, que deram fama ao grandioso circo.

Johnny ficou maravilhado com tudo aquilo que via. Nunca tinha assistido a um espetáculo circense em toda a sua vida e, agora diante daquele desfile, parecia ser o mais animado daqueles colegiais. Depois da passagem daquela alegre comitiva, todos voltaram à sala de aula, comentando a novidade. Luís Augusto, depois de ouvir a opinião de todos, assegurou aos amigos:

- Esse circo é considerado por todos que assistiram a seus espetáculos, como um dos mais brilhantes do mundo! Suas peças teatrais tem feito muito sucesso pelas cidades, que são visitadas por ele.

- Você já assistiu alguns desses espetáculos? – Perguntou Eduardo, que só havia conhecido circos pobres. Um deles nem sequer tinha a cobertura de lona.

- Sim, em Salvador! Por isso posso garantir que a gente vai ter um grande entretenimento.

Luísa, que se encontrava na companhia de Eduardo, perguntou:

- Ele tem trapézios?

- Não! O seu forte são os malabarismos de seus artistas, o seu grande mágico e suas artes cênicas.

Johnny se lembrou de uma cena, que tinha visto em um dos seriados que assistiu em uma matinê, cujo enredo se ambientava em um circo. Nesse episódio, o mocinho fica em perigo ao cair em uma jaula de leão. Ao recordar desse detalhe perguntou ao primo:

- Esse circo tem domador de leões?

Luísa completou a pergunta:

Animais selvagens!... Esse circo tem animais selvagens?

Não! Mas isso pouco importa, pois os números apresentados pelo Circo Nerino superam, de longe, outros circos que tem trapézios, domadores de leões e outras coisas do gênero. – Insistiu o garoto na defesa do seu circo predileto.

Nesse momento a professora pede silêncio aos seus alunos, pois ia começar uma sabatina de verbos entre o quinto ano e os alunos do quarto, que pretendiam fazer o exame de admissão ao ginásio. Naquele sábado, os alunos da professora Emília foram desafiados pelos alunos do quarto ano da professora Terezinha Café, os quais diziam estar mais preparados para enfrentar a prova de Português no exame de admissão, a qual era a primeira e era a eliminatória, daquele concurso nos dois colégios.

Após o final da aula Eduardo se despediu de Luísa, marcando um encontro no dia seguinte com a sua namorada, para ambos irem juntos à matinê do grande circo. O pessoal do quinto ano havia ganhado a disputada sabatina e naquele momento saboreavam a vitória diante da pretensão de uma turma, que era liderada por um garoto esnobe de treze anos, o qual dava ares de pequeno gênio, e era reverenciado como um ordeiro estudioso pelas professoras do Prédio. Ele nutria certo despeito por Eduardo, Johnny e Luís, principalmente pelo sucesso que os meninos faziam junto às meninas. Era um garoto magro, de pele muito branca, e rosto ossudo. Tinha uma bela e vasta cabeleira negra, penteada à maneira dos poetas condoreiros do final do século anterior. Seu nome era Ricardo Macedo de Almeida e era conhecido pelas turmas do centro como Ricardo Coração de Frango, devido ao seu grande nariz aquilino e um enorme pomo de adão, que se destacava em seu pescoço fino. Na saída da escola, Coração de Frango se aproximou dos garotos e, com ar zombeteiro, se dirigiu a Luís, dizendo:

- Já que você é muito bom em verbos, conjugue para a gente o condicional do verbo pelocupar!

Luís não perdeu a compostura e respondeu à altura:

- Já que você é considerado o melhor aluno da escola em Língua Pátria, deveria saber que essa palavra, não existe na língua portuguesa.

Diante da resposta de Luís para uma velha pegadinha, bastante conhecida pelos espertos, os garotos presentes ao local presentearam ao pretensioso, uma grande vaia. Coração de Frango, humilhado com as zombarias que recebia, tratou de se retirar dali, rapidamente, levando consigo a sua turma, que devolvia as vaias numa grande algazarra.

Os três amigos se despediram de seus colegas e seguiram juntos para suas casas. Johnny e Luís acompanharam Eduardo até o início de sua rua, no Morro do Cruzeiro. Luís Augusto aproveitou a oportunidade para conversar com os dois meninos a respeito de suas aventuras no domingo passado. Durante toda a semana ele ouviu os comentários pilhéricos da meninada, sem emitir nenhuma crítica; principalmente pelo fato dos garotos elogiarem seu primo como um grande estrategista e o herói principal daquela contenda. Ele considerava toda aquela escaramuça como um ato irresponsável por parte de seus amigos, e queria dar a sua discreta opinião naquele momento. Ao passar pela igreja matriz, Luís convidou os dois garotos para sentarem em suas escadarias, pois queria conversar com eles, sem ter ninguém que o pudesse incomodar. Johnny estava prevendo o assunto, pois durante o horário dos recreios, enquanto Eduardo e a turma do seu clube narrava suas bravatas, o garoto mostrava-se sério, sem participar das fanfarrices da imprudente garotada. Luís abordou o assunto, pedindo desculpas por dar a sua opinião, dizendo que se tratava apenas do seu ponto de vista, mas que ele achava necessário, ter aquela conversa com seus amigos. Johnny concordou com o primo. Ele mesmo, em diversos momentos, ficou tenso e cheio de dúvidas e, por várias vezes, ficou temeroso com o rumo dos acontecimentos. Eduardo ficou calado, ouvindo o amigo sem o interromper. Sabia que ele tinha razão e que tudo aquilo foi, realmente, uma imprudência. Entretanto, estava convicto de que, a reação de sua turma tornava-se necessária, na medida em que a agressão era prolongada. Cobrou isso do amigo, dizendo:

- O que a gente poderia fazer?... Eles nos invadiram, iam roubar nossas coisas e incendiar o nosso clube!

- O que qualquer pessoa sensata faria: chamar a polícia! – Respondeu Luís com convicção.

Chamar a polícia?!... Por acaso não somos homens e não sabemos resolver nossos problemas?

- Sim! Vocês resolveram, pois tiveram sorte. E se houvesse algum acidente fatal?

Johnny concordou com o primo, dizendo:

- As possibilidades eram muitas!

Eduardo ficou imaginando o que aconteceria se ele pedisse ajuda policial. Coçou a cabeça nervosamente, e disse para Luís:

- Se a gente chamasse a polícia, todo mundo iria dizer que somos mariquinhas. Agora todos nos respeitam. Duvido muito se alguém irá querer nos atacar de novo.

Johnny avaliou a questão e concluiu:

- Eu não pensei nisso naquela manhã, mas nem era preciso chamar a polícia. Era só aparecer na presença de Seu Martins, Benigno e Belmiro, que aqueles putos iriam tremer de medo!

Eduardo concordou com uma bela gargalhada:

- Principalmente Bem-te-vi. O sacana se caga de medo toda vez que vê um policial!

- É justamente isso que eu queria dizer para vocês. Foram os meninos de rua, induzidos por Alcides, que atacaram o clube. Eles morrem de medo, pois são constantemente maltratados por uma sociedade, protegida pela polícia. – Disse Luís, satisfeito em constatar que seus amigos acataram a sua opinião.

- Você está certo! A coisa poderia feder se alguém fosse ferido gravemente! - Concluiu Johnny, depois de avaliar toda a situação.

Eduardo levantou-se do batente onde estava sentado e, erguendo as mãos para o ar, se espreguiçando, bradou com satisfação:

- É isso aí!... O que passou, passou!... “Não adianta chorar pelo leite derramado”. “Vamos pra frente, que atrás da gente vem gente”. Lembre-se de que amanhã é dia de circo e eu não quero perder o espetáculo.

Luís abraçou os dois garotos, bradando alegremente:

- Amanhã é dia de circo! Vamos todos à matinê!

Os dois garotos se despediram de Eduardo e seguiram juntos pela Rua Nestor Ribeiro, que termina no Largo do Maringá.

Naquela tarde não se falava noutra coisa a não ser no afamado circo que chegou a cidade. A possibilidade de conhecer um grande circo deixava os garotos excitados, pois os que haviam aparecido em Jequié, principalmente nos últimos anos, não passavam de trupes de mambembes, que apresentavam peças melodramáticas, cujo enredo piegas emocionava os modestos expectadores. Outros tinham como atração principal, uma envelhecida vedete dançando rumba, para um público de gosto duvidoso. Ás vezes apareciam alguns, que faziam muito sucesso entre os expectadores, devido à genialidade dos seus palhaços.

Sentado debaixo da mangueira na área de seus quintais, Johnny conversava animadamente com os amigos, que moravam na vizinhança, os quais relembravam os circos que tinham conhecido. Pé de Pata fazia apologias ao último circo que apareceu na cidade e o único que ele viu. Era o mesmo circo que Eduardo e a maioria dos garotos tinham conhecido. Foi apelidado pela população de “Tomara Que Não Chova” devido à inexistência de uma cobertura de lona. Géo ria e cantava, mudando a letra do famoso frevo carnavalesco, que ouviu e viu no filme “Aviso aos Navegantes” na voz de Emilhinha Borba:

Tomara que não chova, três dias sem parar.

Pois naquele circo, todos irão se molhar!

Mipai e Nêgo riam das artimanhas cômicas do garoto. Tõe Porcino, que havia adorado aquele circo, alegou a todos os presentes:

- O circo era peba, mas tinha o melhor palhaço que eu já vi!

- É a única atração que esses circos pobres têm. Um bom palhaço e nada mais! - Afirmou Mipai, que completou:

- Vamos ver o que esse Circo Nerino tem a nos oferecer!

- Com certeza, um ingresso muito caro! – Disse Géo, preocupado com as suas despesas.

Mamãe eu Quero, que já tinha se informado de tudo a respeito do circo, disse aos amigos:

- O preço é o mesmo dos cinemas da cidade!

- E o espetáculo só começa após as quatro horas da tarde, depois das matinês dos cinemas! – Completou Tõe Porcino.

Pé de Pata notando Johnny pensativo em seu canto, perguntou:

- E você Johnny? Vai ao circo com a gente depois da matinê?

Antes que Johnny respondesse, Nêgo disse, achincalhando o garoto:

- Esse aí é fã das tertúlias e não de circos!

Mipai continuou a brincadeira em torno do garoto:

- Se ele estiver pretendendo ver certa garota, amanhã na casa paroquial, irá perder a viagem, pois Edgar me disse que ela está animada com a vinda do circo para a cidade!

Johnny respondeu, fazendo-se de desentendido:

- Eu nunca vi um circo ao vivo, só no cinema. Além disso, eu e Pé de Pata ganhamos o nosso ingresso!

- Claro! Cortesia do padrinho Miguel, que ganhou algumas entradas do gerente do circo.

Vocês ganharam um camarote? – Perguntou Géo, com inveja da sorte dos meninos.

- Sim, mas o camarote ficou pra minha mãe e irmã, e os pais de Pé de Pata. A gente vai assistir ao espetáculo das arquibancadas - Respondeu Johnny para toda a turma.

Os garotos ficaram por muito tempo proseando, debaixo da frondosa mangueira, que protegia a meninada das alternativas do tempo. O sol estava se escondendo por trás dos morros, quando todos retornaram às suas casas, marcando um encontro no mesmo local, para o dia seguinte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário