J. B. Pessoa
Capítulo - 60 do livro " Guris e Gibis".
Toda a
classe estava em silêncio, concentrada em seus deveres escolares, quando
começou a ouvir uma voz cômica, dizendo coisas engraçadas, quebrando a
monotonia daquela singular manhã. Surpreendida com todo aquele barulho, a professora
Emília foi até a janela para ver o que estava acontecendo, sendo seguida pelos
seus alunos, os quais ficaram encantados com o inusitado acontecimento.
Tratava-se de um espirituoso palhaço, que desfilava pela avenida, usando longas
pernas de pau, sendo acompanhado pela alegre meninada. O palhaço gritava:
- Hoje
tem espetáculo?
A
garotada respondia:
- Tem
sim senhor!
O
palhaço continuava:
- Oito
horas da noite?
A
garotada continuava respondendo as perguntas do palhaço:
- Tem
sim senhor!
-
Palhaço o que é?
-
Ladrão de mulher! – Respondia a molecada numa alegria contagiante.
O
alegre palhaço abria caminho para o desfile de um circo, anunciando a sua
estreia, logo mais a noite. Era o famoso Circo Teatro Nerino, divulgado com
sensacionalismo, pelos serviços de alto-falantes da cidade, desde o início
daquela semana. Estava sendo armado no largo do Campo do America, perto do
Colégio Estadual, atraindo a curiosidade dos moradores daquele bairro. Havia
algum tempo, que aquele circo era aguardado em Jequié, pelas notícias que
traziam dele, os caixeiros viajantes de passagem pela cidade. O desfile do
circo pela avenida chamou a atenção de muitos transeuntes naquele momento, que
paravam as suas atividades, para apreciar aquele belo espetáculo. A professora
Emilia liberou seus alunos para irem ao pátio e assistir ao belo cortejo, o
qual apresentava seus artistas e fazia propaganda de suas principais atrações.
As crianças da escola ficaram maravilhadas com vários palhaços que, na mímica,
apresentavam suas estripulias, arrancando gargalhadas das pessoas que os
assistiam. Os guris ficaram deslumbrados com a estrela principal, uma bela
garota que atuava como malabarista e atriz das principais peças teatrais, que
deram fama ao grandioso circo.
Johnny
ficou maravilhado com tudo aquilo que via. Nunca tinha assistido a um
espetáculo circense em toda a sua vida e, agora diante daquele desfile, parecia
ser o mais animado daqueles colegiais. Depois da passagem daquela alegre
comitiva, todos voltaram à sala de aula, comentando a novidade. Luís Augusto,
depois de ouvir a opinião de todos, assegurou aos amigos:
- Esse
circo é considerado por todos que assistiram a seus espetáculos, como um dos
mais brilhantes do mundo! Suas peças teatrais tem feito muito sucesso pelas
cidades, que são visitadas por ele.
- Você
já assistiu alguns desses espetáculos? – Perguntou Eduardo, que só havia
conhecido circos pobres. Um deles nem sequer tinha a cobertura de lona.
- Sim,
em Salvador! Por isso posso garantir que a gente vai ter um grande entretenimento.
Luísa,
que se encontrava na companhia de Eduardo, perguntou:
- Ele
tem trapézios?
- Não!
O seu forte são os malabarismos de seus artistas, o seu grande mágico e suas
artes cênicas.
Johnny
se lembrou de uma cena, que tinha visto em um dos seriados que assistiu em uma
matinê, cujo enredo se ambientava em um circo. Nesse episódio, o mocinho fica
em perigo ao cair em uma jaula de leão. Ao recordar desse detalhe perguntou ao
primo:
- Esse
circo tem domador de leões?
Luísa
completou a pergunta:
Animais
selvagens!... Esse circo tem animais selvagens?
Não!
Mas isso pouco importa, pois os números apresentados pelo Circo Nerino superam,
de longe, outros circos que tem trapézios, domadores de leões e outras coisas
do gênero. – Insistiu o garoto na defesa do seu circo predileto.
Nesse
momento a professora pede silêncio aos seus alunos, pois ia começar uma
sabatina de verbos entre o quinto ano e os alunos do quarto, que pretendiam
fazer o exame de admissão ao ginásio. Naquele sábado, os alunos da professora
Emília foram desafiados pelos alunos do quarto ano da professora Terezinha
Café, os quais diziam estar mais preparados para enfrentar a prova de Português
no exame de admissão, a qual era a primeira e era a eliminatória, daquele
concurso nos dois colégios.
Após o
final da aula Eduardo se despediu de Luísa, marcando um encontro no dia
seguinte com a sua namorada, para ambos irem juntos à matinê do grande circo. O
pessoal do quinto ano havia ganhado a disputada sabatina e naquele momento
saboreavam a vitória diante da pretensão de uma turma, que era liderada por um
garoto esnobe de treze anos, o qual dava ares de pequeno gênio, e era
reverenciado como um ordeiro estudioso pelas professoras do Prédio. Ele nutria
certo despeito por Eduardo, Johnny e Luís, principalmente pelo sucesso que os
meninos faziam junto às meninas. Era um garoto magro, de pele muito branca, e
rosto ossudo. Tinha uma bela e vasta cabeleira negra, penteada à maneira dos
poetas condoreiros do final do século anterior. Seu nome era Ricardo Macedo de
Almeida e era conhecido pelas turmas do centro como Ricardo Coração de Frango,
devido ao seu grande nariz aquilino e um enorme pomo de adão, que se destacava
em seu pescoço fino. Na saída da escola, Coração de Frango se aproximou dos
garotos e, com ar zombeteiro, se dirigiu a Luís, dizendo:
- Já
que você é muito bom em verbos, conjugue para a gente o condicional do verbo
pelocupar!
Luís
não perdeu a compostura e respondeu à altura:
- Já
que você é considerado o melhor aluno da escola em Língua Pátria, deveria saber
que essa palavra, não existe na língua portuguesa.
Diante
da resposta de Luís para uma velha pegadinha, bastante conhecida pelos
espertos, os garotos presentes ao local presentearam ao pretensioso, uma grande
vaia. Coração de Frango, humilhado com as zombarias que recebia, tratou de se
retirar dali, rapidamente, levando consigo a sua turma, que devolvia as vaias
numa grande algazarra.
Os
três amigos se despediram de seus colegas e seguiram juntos para suas casas.
Johnny e Luís acompanharam Eduardo até o início de sua rua, no Morro do
Cruzeiro. Luís Augusto aproveitou a oportunidade para conversar com os dois
meninos a respeito de suas aventuras no domingo passado. Durante toda a semana
ele ouviu os comentários pilhéricos da meninada, sem emitir nenhuma crítica;
principalmente pelo fato dos garotos elogiarem seu primo como um grande
estrategista e o herói principal daquela contenda. Ele considerava toda aquela
escaramuça como um ato irresponsável por parte de seus amigos, e queria dar a sua
discreta opinião naquele momento. Ao passar pela igreja matriz, Luís convidou
os dois garotos para sentarem em suas escadarias, pois queria conversar com
eles, sem ter ninguém que o pudesse incomodar. Johnny estava prevendo o
assunto, pois durante o horário dos recreios, enquanto Eduardo e a turma do seu
clube narrava suas bravatas, o garoto mostrava-se sério, sem participar das
fanfarrices da imprudente garotada. Luís abordou o assunto, pedindo desculpas
por dar a sua opinião, dizendo que se tratava apenas do seu ponto de vista, mas
que ele achava necessário, ter aquela conversa com seus amigos. Johnny
concordou com o primo. Ele mesmo, em diversos momentos, ficou tenso e cheio de
dúvidas e, por várias vezes, ficou temeroso com o rumo dos acontecimentos. Eduardo
ficou calado, ouvindo o amigo sem o interromper. Sabia que ele tinha razão e
que tudo aquilo foi, realmente, uma imprudência. Entretanto, estava convicto de
que, a reação de sua turma tornava-se necessária, na medida em que a agressão
era prolongada. Cobrou isso do amigo, dizendo:
- O
que a gente poderia fazer?... Eles nos invadiram, iam roubar nossas coisas e
incendiar o nosso clube!
- O
que qualquer pessoa sensata faria: chamar a polícia! – Respondeu Luís com
convicção.
Chamar
a polícia?!... Por acaso não somos homens e não sabemos resolver nossos
problemas?
- Sim!
Vocês resolveram, pois tiveram sorte. E se houvesse algum acidente fatal?
Johnny
concordou com o primo, dizendo:
- As
possibilidades eram muitas!
Eduardo
ficou imaginando o que aconteceria se ele pedisse ajuda policial. Coçou a
cabeça nervosamente, e disse para Luís:
- Se a
gente chamasse a polícia, todo mundo iria dizer que somos mariquinhas. Agora
todos nos respeitam. Duvido muito se alguém irá querer nos atacar de novo.
Johnny
avaliou a questão e concluiu:
- Eu
não pensei nisso naquela manhã, mas nem era preciso chamar a polícia. Era só
aparecer na presença de Seu Martins, Benigno e Belmiro, que aqueles putos iriam
tremer de medo!
Eduardo
concordou com uma bela gargalhada:
-
Principalmente Bem-te-vi. O sacana se caga de medo toda vez que vê um policial!
- É
justamente isso que eu queria dizer para vocês. Foram os meninos de rua,
induzidos por Alcides, que atacaram o clube. Eles morrem de medo, pois são
constantemente maltratados por uma sociedade, protegida pela polícia. – Disse
Luís, satisfeito em constatar que seus amigos acataram a sua opinião.
- Você
está certo! A coisa poderia feder se alguém fosse ferido gravemente! - Concluiu
Johnny, depois de avaliar toda a situação.
Eduardo
levantou-se do batente onde estava sentado e, erguendo as mãos para o ar, se
espreguiçando, bradou com satisfação:
- É
isso aí!... O que passou, passou!... “Não adianta chorar pelo leite derramado”.
“Vamos pra frente, que atrás da gente vem gente”. Lembre-se de que amanhã é dia
de circo e eu não quero perder o espetáculo.
Luís
abraçou os dois garotos, bradando alegremente:
-
Amanhã é dia de circo! Vamos todos à matinê!
Os
dois garotos se despediram de Eduardo e seguiram juntos pela Rua Nestor
Ribeiro, que termina no Largo do Maringá.
Naquela
tarde não se falava noutra coisa a não ser no afamado circo que chegou a
cidade. A possibilidade de conhecer um grande circo deixava os garotos
excitados, pois os que haviam aparecido em Jequié, principalmente nos últimos
anos, não passavam de trupes de mambembes, que apresentavam peças
melodramáticas, cujo enredo piegas emocionava os modestos expectadores. Outros
tinham como atração principal, uma envelhecida vedete dançando rumba, para um
público de gosto duvidoso. Ás vezes apareciam alguns, que faziam muito sucesso
entre os expectadores, devido à genialidade dos seus palhaços.
Sentado
debaixo da mangueira na área de seus quintais, Johnny conversava animadamente
com os amigos, que moravam na vizinhança, os quais relembravam os circos que
tinham conhecido. Pé de Pata fazia apologias ao último circo que apareceu na
cidade e o único que ele viu. Era o mesmo circo que Eduardo e a maioria dos
garotos tinham conhecido. Foi apelidado pela população de “Tomara Que Não
Chova” devido à inexistência de uma cobertura de lona. Géo ria e cantava,
mudando a letra do famoso frevo carnavalesco, que ouviu e viu no filme “Aviso
aos Navegantes” na voz de Emilhinha Borba:
Tomara
que não chova, três dias sem parar.
Pois
naquele circo, todos irão se molhar!
Mipai
e Nêgo riam das artimanhas cômicas do garoto. Tõe Porcino, que havia adorado
aquele circo, alegou a todos os presentes:
- O
circo era peba, mas tinha o melhor palhaço que eu já vi!
- É a
única atração que esses circos pobres têm. Um bom palhaço e nada mais! -
Afirmou Mipai, que completou:
-
Vamos ver o que esse Circo Nerino tem a nos oferecer!
- Com
certeza, um ingresso muito caro! – Disse Géo, preocupado com as suas despesas.
Mamãe eu
Quero, que já tinha se informado de tudo a respeito do circo, disse aos amigos:
- O
preço é o mesmo dos cinemas da cidade!
- E o
espetáculo só começa após as quatro horas da tarde, depois das matinês dos
cinemas! – Completou Tõe Porcino.
Pé de
Pata notando Johnny pensativo em seu canto, perguntou:
- E
você Johnny? Vai ao circo com a gente depois da matinê?
Antes
que Johnny respondesse, Nêgo disse, achincalhando o garoto:
- Esse
aí é fã das tertúlias e não de circos!
Mipai
continuou a brincadeira em torno do garoto:
- Se
ele estiver pretendendo ver certa garota, amanhã na casa paroquial, irá perder
a viagem, pois Edgar me disse que ela está animada com a vinda do circo para a
cidade!
Johnny
respondeu, fazendo-se de desentendido:
- Eu
nunca vi um circo ao vivo, só no cinema. Além disso, eu e Pé de Pata ganhamos o
nosso ingresso!
-
Claro! Cortesia do padrinho Miguel, que ganhou algumas entradas do gerente do
circo.
Vocês
ganharam um camarote? – Perguntou Géo, com inveja da sorte dos meninos.
- Sim,
mas o camarote ficou pra minha mãe e irmã, e os pais de Pé de Pata. A gente vai
assistir ao espetáculo das arquibancadas - Respondeu Johnny para toda a turma.
Os
garotos ficaram por muito tempo proseando, debaixo da frondosa mangueira, que
protegia a meninada das alternativas do tempo. O sol estava se escondendo por
trás dos morros, quando todos retornaram às suas casas, marcando um encontro no
mesmo local, para o dia seguinte.
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