J. B. Pessoa
Capítulo - 61 do livro " Guris e Gibis".
A
agitação dos garotos era enorme naquela manhã. Desde cedo eles procuravam
conseguir o dinheiro necessário, para a compra dos ingressos da matinê. O circo
havia estreado na noite anterior, com grande sucesso, motivando a garotada
naquela tarefa. As pessoas que assistiram ao espetáculo ficaram maravilhadas
com o que viram. A propaganda do boca a boca foi reforçada, pelos meninos que
tiveram acesso ao show, depois da liberação do juiz de menores, permitindo a
entrada dos maiores de dez anos. O grande circo não decepcionou a ninguém.
Depois dos números naturais, característicos de um espetáculo circense, o
público jequéense delirou com o drama intitulado “Sansão e Dalila”, o qual foi
executado em uma técnica, nunca vista em um teatro convencional, pelos moradores
da cidade. O Cine Teatro Jequié costumava exibir em seu palco, peças teatrais
vindas do Rio de Janeiro e de São Paulo; porém, a maioria era de comédias de
costumes, como também do chamado teatro rebolado, ou teatro de revista, o qual
apresentava as grandes vedetes nacionais e conhecidos cantores do rádio. Em
nada era parecido com aquilo que os espectadores viram no palco do Circo
Nerino. Após votarem nas eleições que se realizaram naquele domingo, as pessoas
alardeavam o fato, em bares e botequins da cidade, tomando tragos de aguardente
ou bebendo uma cerveja gelada.
Sentados
debaixo da grande mangueira, Mipai e Tõe Porcino, não falavam em outra coisa.
Os dois garotos tinham assistido a peça e estavam comparando com o filme de
Cecil B. de Mille. Johnny já tinha visto o filme e sorria dos exageros daqueles
garotos. Mesmo assim, ficou impressionado e queria assistir a afamada peça
teatral. Tõe Porcino articulava:
- Seu
moço, eu só vi aquilo em cinema! Quando Sansão derrubou o templo, eu tomei um
susto danado, que fiquei todo arrepiado. Como será que eles fizeram aquilo?!
E
Dalila? Que garota bonita é a artista que faz o papel de Dalila! – Disse Mamãe
eu Quero, que até então estava calado, apenas escutando o relato dos amigos:
-
Ué!... Como você sabe disso pirralho? Você não entrou no circo, porque só tem
nove anos! – Disse Mipai, querendo desmerecer o garoto.
Mamãe
eu Quero fez pose de superior e disse com soberba:
- O
mundo é dos espertos, meu chapa!... Eu fiquei de tocaia e quando o vigia deu
bobeira eu entrei por debaixo da lona e fiquei num canto na parte mais alta da
arquibancada!
-
Vocês estão vendo turma?!... O moleque está ficando cada vez mais ousado! –
Disse Mipai e, querendo elogiar o garoto, apertou a sua mão, dizendo a seguir:
- Você
acaba de subir no meu conceito!
Tõe
Porcino não concordou com a atitude do primo e disse preocupado:
- O
que você fez é muito perigoso, pois poderia ter sido pego e tomar alguns bolos
de palmatória.
- Eu
já vi isso acontecer! – disse Mamãe eu Quero sorrindo, para depois acrescentar:
- Por
isso tomei muito cuidado! O bom é que me sobrou dinheiro para assistir a matinê
de hoje, que vai apresentar a peça “Branca de Neve e os Sete Anões”.
Ué,
não vai apresentar “Sansão e Dalila”? – Perguntou Pé de Pata, decepcionado com
a notícia.
Mamãe
eu Quero tinha feito uma investigação completa e sabia tudo o que iria
acontecer com o famoso circo, em sua estadia na cidade. Por isso foi logo
informando aos garotos
- O
circo vai ficar em Jequié durante quinze dias. Para não sofrer concorrência dos
cinemas, resolveu começar o espetáculo da matinê às quatro horas da tarde. Nas
matinês de domingo e feriados vai apresentar peças infantis e nas soirées as
peças sérias. Se o povo pedir, o circo tem a intenção de ficar mais algum tempo
na cidade.
Nêgo e
Géo ficaram pensativos e, analisando com calma a situação, acharam melhor ir ao
circo na sessão soirée e assistir a matinê do Cine Bonfim, que ia passar um
filme policial, considerado bom pelos garotos. O que ninguém sabia e foi uma
surpresa geral, foi à estratégia do dono do cinema, Benjamim Alves de Souza
que, para competir com o circo, anunciou, repentinamente, naquele final de
semana, um seriado com o cowboy Tom Mix, de 15 episódios, chamado de “O
Cavaleiro Alado”, o qual foi antecipado e estava iniciando naquele domingo. Os
garotos vibraram, pois nunca tinham visto um filme com o famoso mocinho. Johnny
e Pé de Pata iriam à matinê do circo ver a peça infantil, após a matinê do Cine
Bonfim e, logo mais a noite, ele iria com o amigo, assistir ao afamado drama
“Sansão e Dalila”!
A
tarde estava magnífica, com uma temperatura amena de uma primavera sertaneja. O
frio que incomodou os moradores da cidade havia desaparecido, cedendo lugar a
um sol brilhante de poucas nuvens, sem o causticante calor característico da
região. Logo após o almoço, todos os garotos da Siqueira Campos seguiram juntos
para a porta dos cinemas, na intenção de negociarem suas revistas e terem algum
lucro para empregarem nas compras dos ingressos. Johnny não levou as suas, pois
não tinha o talento necessário para negócios lucrativos. Comprava as revistas e
depois de lê-las, vendia a preços que sempre favorecia ao comprador. Géo, Nêgo
e Pé de Pata sabiam disso e, por vezes, abusavam da falta de apreço do seu
amigo por um sentimento de posse mais apurado. Entretanto, quando se tratava de
um jogo, Johnny era implacável e, dificilmente, era vencido por um deles.
Havia
poucos garotos na porta do Cine Jequié. Naquele domingo o cinema estava
apresentando uma comédia romântica, de produção italiana, o qual atraía muitas
garotas adolescentes e alguns adultos, interessados em ver
uma
famosa película de Luigi Comencini, intitulada “Pão, Amor e Fantasia”,
estrelada por Vittorio De Sica e Gina Lollobrigida. Esse filme já era esperado
e teve cinco sessões continuas. Os garotos da Siqueira Campos passaram pela
porta daquele cinema, sem parar, torcendo o nariz para aquele tipo de filme. Em
compensação, a porta do Cine Bonfim estava abarrotada com a molecada dos
quatros cantos da cidade, querendo ver o que, os críticos do mundo inteiro
consideravam como o maior cowboy de todos os tempos.
Como
sempre acontecia em todas as matinês, o comércio de revistas, álbuns de
figurinhas e fotograma de películas cinematográficas foi intenso naquela tarde.
Como bom negociante, Géo fez excelentes negócios e, minutos antes de começar a
projeção, ele já estava com o dinheiro que precisava para a compra de todos os
ingressos, que necessitava. Quando a sirene do cinema tocou o último apito,
toda a turma de Johnny estava dentro do cinema, acomodada em seus acentos.
A
sessão da matinê do Cine Bonfim terminou às quatro horas em ponto, justamente
no horário em que estava previsto, o começo da matinê do circo. Johnny e Pé de
Pata seguiram apressados para o Campo do América, enquanto os amigos seguiram
para a pista de patins, comentando as aventuras do famoso mocinho cowboy.
Chagando ao seu destino depararam com um luxuoso circo, muito diferente, dos
que costumavam chegar à cidade. Pé de Pata ficou surpreso com o que viu e
comentou com Johnny:
- Puxa
a vida!... Como é grande!
- Ele
é muito luxuoso, porém não é tão grande quanto imaginei.
- Ué,
por que você diz isso?
- Ele
só tem dois mastros. Os circos realmente grandes têm mais de quatro.
- Como
você sabe disso! Você me disse que nunca tinha visto um! – Perguntou Pé de
Pata, intrigado com a observação do amigo.
Johnny
sorriu e esclareceu ao garoto:
- Eu
já li sobre os grandes circos e já vi alguns filmes, que a história se passa
num circo.
- É
devera! Esse está longe de ser comparado com aquele que a gente viu no filme “O
Maior Espetáculo da Terra”! – Concordou Pé de Pata, pois dizia para todos que
aquele era um dos melhores filmes que ele tinha assistido, principalmente por
ser colorido e ter aparecido Hopalong Cassidy, um dos cowboys que ele admirava.
- Pois
é!... Mas esse é muito famoso! Vamos entrar e verificar! – Finalizou Johnny,
convidando o amigo para acompanhá-lo.
O
espetáculo estava no seu começo, mesmo assim as filas eram muito grande, devido
o atraso dos espectadores, que tinham assistido às matinês dos dois cinemas.
Como Johnny e Pé de Pata já tinham os seus ingressos, entraram no circo,
acomodando-se em um bom lugar nas arquibancadas, de frente para o palco, com
boa visão para o picadeiro.
Geralmente
um circo como aquele compunha de três espécies de acomodamento. Rodeando a
arena, ficavam os camarotes, compostas de quatro confortáveis poltronas e era a
área nobre e a mais cara do circo. Atrás vinham as cadeiras numeradas, as quais
tomavam toda a área em volta dos camarotes e era separada por uma cerca,
necessitando um bilhete especial para entrar e, por fim, as arquibancadas, onde
acomodava povão em geral, por ser a parte mais barata do circo.
O
espetáculo havia começado alguns minutos antes dos garotos entrarem na grande tenda
de lona. Naquele momento estava sendo apresentada uma garota caminhando no
arame, tendo em baixo as artimanhas dos palhaços, comandados pelo palhaço
principal do circo, o famoso Picolino, o qual atuava com maestria nos dramas do
Circo Teatro Nerino. A seguir, sempre intercalados pelas presepadas dos
divertidíssimos palhaços, vieram os shows de ginástica olímpica, malabarismos,
atiradores de faca e seu famoso mágico, que encantou a meninada, com os seus
bem elaborados truques.
Do
lugar onde assistia ao espetáculo, Johnny pode divisar sentado em um camarote,
Berenice e Luís Augusto, juntos com Bill Elliott e Eva Marli. Em outro, ao lado
deles, estavam Eduardo e Luísa na companhia de Edgar e Neide. Pé de Pata chamou
a atenção de Johnny para o fato e notou a tristeza estampada no rosto do amigo.
Querendo descontrair o garoto, Pé de Pata aproveitou o momento para caçoar de
Edgar, dando mostras de certa inveja:
- Quem
diria, hem!... Um dia desses o capiau ainda carregava feira. Hoje, ganhando bem
como caixeiro de uma grande loja, tem uma bonita namorada e ainda senta nos
camarotes do circo!
-
Deixa o rapaz conquistar a sua felicidade. Todos tem o direito de subir na
vida. – Disse Johnny, sorrindo da chacota do amigo.
Pé de
Pata ficou pensativo, depois alisando o seu queixo, perguntou:
- Por
que será que todo o cara quando arranja uma namorada, dá uma onda de sério e
não procura mais os amigos?
Johnny
olhou para o garoto e procurou responder, como se fosse um conselho a ser dado
para todos:
- Na
certa está crescendo e deixando de ser criança! Afinal quando se arranja uma
namorada, as responsabilidades vêm juntas!
- É
verdade! Com certeza deve ser isso! – Concluiu o garoto.
Terminada
a primeira parte do espetáculo, houve um curto intervalo, a seguir o maestro
anuncia a peça teatral.
Johnny
ficou maravilhado com o que viu. O cenário era majestoso, assim como o figurino
e os efeitos especiais. O roteiro foi bem adaptado, com bons atores em cena. Pé
de Pata ficou encantado com a mocinha que viveu Branca de Neve, a qual era a
mesma garota que andou no arame, e ficou sabendo, por um camarada ao lado, que
ela era a mesma atriz que vivia Dalila, no drama da noite. Quando a peça chegou
ao seu final, Johnny notou que Berenice foi a primeira pessoa a se levantar da
cadeira e aplaudir os atores com uma grande emoção.
Todos
os espectadores ficaram de pé, aplaudindo ao espetáculo, o qual agradou as
crianças e os adultos, que assistiram aquela matinê.
Após o
final do espetáculo, Johnny se despediu de Pé de Pata, alegando que tinha um
compromisso a cumprir e foi um dos primeiros a sair da grande tenda de lona. O
garoto não queria encontrar com Berenice na saída, para não mostrar a tristeza
que ele sentia com a falta de sua companhia. Pé de Pata compreendeu a sua
atitude e aproveitou a oportunidade para encontrar alguns companheiros
presentes no local. Eram seis e meia e a noite despontava magnificamente, com a
lua surgindo, impondo a sua luz prateada por entre as montanhas. O garoto
seguiu apressado e foi para a sua casa, pois pretendia assistir a sessão de
soirée logo mais, às oito horas da noite.
Naquele
domingo, os cinemas da cidade tentaram concorrer, mas não conseguiram superar o
número de expectadores do grande circo. O público compareceu em massa, para ver
o tão afamado espetáculo. Muitos rapazes, que tinham visto a peça teatral no
sábado anterior, retornaram para ver os efeitos especiais e se encantar com a
bela Dalila, vivida por uma atriz adolescente, conhecida como Nicinha. Tõe
Porcino foi um deles. Desde o início da noite, o gibi estava impaciente, dando
pressa aos seus amigos, pois queria conseguir o melhor lugar nas arquibancadas,
bem em frente ao palco. Johnny mal havia terminado o seu jantar e seus amigos
já o esperavam, impacientemente, sentados na calçada de sua casa. O garoto se
despediu de seus pais e aderiu à sua turma, indo todos juntos pela longa
Siqueira Campos, naquela alacridade típica dos garotos de suas idades.
O
Circo Teatro Nerino estava esplendidamente iluminado. Possuía um gerador
próprio, o qual supria as suas necessidades, não ficando à mercê dos burgos que
não tinham energia suficiente para sustentá-lo. No momento da chegada dos
garotos, as filas para a compra das entradas eram enorme, fato que não
preocupou a prevenida turma, pois tinham adquirido as suas anteriormente. Havia
em volta do circo, um grande número de pipoqueiros, vendedores de roletes de
cana e baleiros, os quais não podiam entrar e comerciar os seus produtos, pois
o circo fornecia as suas próprias guloseimas aos seus frequentadores. Os garotos
foram se acomodar no mesmo lugar das arquibancadas, perto da entrada do
público, onde na matinê Johnny e Pé de Pata ficaram, o qual dava uma visão
melhor do palco e picadeiro. Os garotos esperavam alegremente pelo início do
espetáculo, observando as pessoas que adentravam na grande arena, todos em
trajes de festa. Géo e Pé de Pata eram os mais animados sempre cumprimentando e
acenando para os conhecidos, quando os viam. Em dado momento, entram Berenice e
Luís, acompanhados de Bill Elliott, Eduardo e Edgar ao lado de suas namoradas.
Géo não se conteve e gritou festivamente para Edgar:
-
Edgar, meu camarada!... Então você veio ver o circo?!
Nesse
momento Berenice se vira e percebe Johnny entre os meninos. A garota olha
tristemente para ele e baixa as vistas. Johnny saúda a todos com amabilidade.
Edgar acena para os seus amigos e responde sorrindo para Géo:
- Não!
Eu fiquei em casa dormindo! Quem está aqui é outro sujeito!
Mipai
e Porcino caem na gargalhada, levando outras pessoas, por perto, a fazerem o mesmo.
Géo balança a cabeça negativamente e diz:
- Tá
certo, eu mereço isso!
Os
casais de namorados vão se acomodar nos camarotes em frente ao picadeiro.
Johnny acompanha o trajeto da menina com muita emoção. De repente, antes de
sentar em sua poltrona, Berenice se volta e dirige o seu olhar a Johnny e o
contempla de longe por breves instantes. Percebendo aquele olhar, o garoto
lança com a sua mão um ósculo apaixonado. A menina baixa o olhar e se acomoda
na espera do espetáculo. Johnny continua com os seus olhos para os camarotes,
enquanto a sua turma prossegue caçoando do desventurado Géo.
Ao
tempo em que as pessoas vão entrando, e se acomodando em seus lugares, a
orquestra do circo vai executando as típicas músicas circenses. Johnny já tinha
ouvido muitas delas em famosos filmes, cujas histórias se ambientavam em
circos. Às oito horas em ponto, a orquestra para de tocar e o apresentador, com
seu traje de casaca e cartola, anuncia o espetáculo:
-
Respeitável público! O grande Ciro Nerino tem o prazer de apresentar o mais
engraçado palhaço de todos os tempos! O famoso Picolino!
Nesse
momento entra o palhaço principal, acompanhado de outros, inclusive alguns
anões, e as peripécias acontecem, arrancando gargalhadas da alegre plateia.
O show
é basicamente o mesmo das matinês. Apenas as piadas dos palhaços são mais
picantes e alguns números perigosos são acrescidos, pois o espetáculo noturno é
dedicado ao público adulto. O que realmente faz com que o espectador volte
todos os dias são os dramas diferentes apresentados todas as noites e algumas
clássicas comédias e tragédias conhecidas. A reapresentação do drama “Sansão e
Dalila” encantou a todos, sendo muito aplaudido no final. O espetáculo terminou
às vinte e duas horas e trinta minutos, com um público satisfeito, comentando
as artimanhas dos palhaços, os malabarismos, a arte do grande mágico e,
sobretudo, a extraordinária montagem da peça apresentada naquela noite.
Como estavam sentados perto da entrada, Johnny e sua turma foram os primeiros a sair da grande tenda. Géo, envergonhado com a sua mancada, pediu aos amigos para ir logo embora, alegando ser tarde demais. Ele não queria encontrar Edgar e seus companheiros, principalmente com as garotas. Johnny sentia a mesma coisa, porém por motivo diferente. Não queria ver de novo Berenice na companhia do primo, pois na certa ele notaria o seu amor pela menina. Todos os garotos seguiram juntos para suas casas, entrando na Avenida Rio Branco, que naquele momento estava deserta. Os dois cinemas tinham terminado as suas sessões e havia pouca gente andando pelas ruas. Quando os garotos entraram no Largo do Maringá, separando Mipai e Tõe Porcino de Johnny e os meninos da Siqueira Campos, o relógio da matriz badalava as vinte e três horas, de uma noite esplendidamente enluarada.
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