terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

A Maravilhosa Matinê do Circo.

                                             J. B. Pessoa

Capítulo - 61 do livro " Guris e Gibis".

A agitação dos garotos era enorme naquela manhã. Desde cedo eles procuravam conseguir o dinheiro necessário, para a compra dos ingressos da matinê. O circo havia estreado na noite anterior, com grande sucesso, motivando a garotada naquela tarefa. As pessoas que assistiram ao espetáculo ficaram maravilhadas com o que viram. A propaganda do boca a boca foi reforçada, pelos meninos que tiveram acesso ao show, depois da liberação do juiz de menores, permitindo a entrada dos maiores de dez anos. O grande circo não decepcionou a ninguém. Depois dos números naturais, característicos de um espetáculo circense, o público jequéense delirou com o drama intitulado “Sansão e Dalila”, o qual foi executado em uma técnica, nunca vista em um teatro convencional, pelos moradores da cidade. O Cine Teatro Jequié costumava exibir em seu palco, peças teatrais vindas do Rio de Janeiro e de São Paulo; porém, a maioria era de comédias de costumes, como também do chamado teatro rebolado, ou teatro de revista, o qual apresentava as grandes vedetes nacionais e conhecidos cantores do rádio. Em nada era parecido com aquilo que os espectadores viram no palco do Circo Nerino. Após votarem nas eleições que se realizaram naquele domingo, as pessoas alardeavam o fato, em bares e botequins da cidade, tomando tragos de aguardente ou bebendo uma cerveja gelada.

Sentados debaixo da grande mangueira, Mipai e Tõe Porcino, não falavam em outra coisa. Os dois garotos tinham assistido a peça e estavam comparando com o filme de Cecil B. de Mille. Johnny já tinha visto o filme e sorria dos exageros daqueles garotos. Mesmo assim, ficou impressionado e queria assistir a afamada peça teatral. Tõe Porcino articulava:

- Seu moço, eu só vi aquilo em cinema! Quando Sansão derrubou o templo, eu tomei um susto danado, que fiquei todo arrepiado. Como será que eles fizeram aquilo?!

E Dalila? Que garota bonita é a artista que faz o papel de Dalila! – Disse Mamãe eu Quero, que até então estava calado, apenas escutando o relato dos amigos:

- Ué!... Como você sabe disso pirralho? Você não entrou no circo, porque só tem nove anos! – Disse Mipai, querendo desmerecer o garoto.

Mamãe eu Quero fez pose de superior e disse com soberba:

- O mundo é dos espertos, meu chapa!... Eu fiquei de tocaia e quando o vigia deu bobeira eu entrei por debaixo da lona e fiquei num canto na parte mais alta da arquibancada!

- Vocês estão vendo turma?!... O moleque está ficando cada vez mais ousado! – Disse Mipai e, querendo elogiar o garoto, apertou a sua mão, dizendo a seguir:

- Você acaba de subir no meu conceito!

Tõe Porcino não concordou com a atitude do primo e disse preocupado:

- O que você fez é muito perigoso, pois poderia ter sido pego e tomar alguns bolos de palmatória.

- Eu já vi isso acontecer! – disse Mamãe eu Quero sorrindo, para depois acrescentar:

- Por isso tomei muito cuidado! O bom é que me sobrou dinheiro para assistir a matinê de hoje, que vai apresentar a peça “Branca de Neve e os Sete Anões”.

Ué, não vai apresentar “Sansão e Dalila”? – Perguntou Pé de Pata, decepcionado com a notícia.

Mamãe eu Quero tinha feito uma investigação completa e sabia tudo o que iria acontecer com o famoso circo, em sua estadia na cidade. Por isso foi logo informando aos garotos

- O circo vai ficar em Jequié durante quinze dias. Para não sofrer concorrência dos cinemas, resolveu começar o espetáculo da matinê às quatro horas da tarde. Nas matinês de domingo e feriados vai apresentar peças infantis e nas soirées as peças sérias. Se o povo pedir, o circo tem a intenção de ficar mais algum tempo na cidade.

Nêgo e Géo ficaram pensativos e, analisando com calma a situação, acharam melhor ir ao circo na sessão soirée e assistir a matinê do Cine Bonfim, que ia passar um filme policial, considerado bom pelos garotos. O que ninguém sabia e foi uma surpresa geral, foi à estratégia do dono do cinema, Benjamim Alves de Souza que, para competir com o circo, anunciou, repentinamente, naquele final de semana, um seriado com o cowboy Tom Mix, de 15 episódios, chamado de “O Cavaleiro Alado”, o qual foi antecipado e estava iniciando naquele domingo. Os garotos vibraram, pois nunca tinham visto um filme com o famoso mocinho. Johnny e Pé de Pata iriam à matinê do circo ver a peça infantil, após a matinê do Cine Bonfim e, logo mais a noite, ele iria com o amigo, assistir ao afamado drama “Sansão e Dalila”!

A tarde estava magnífica, com uma temperatura amena de uma primavera sertaneja. O frio que incomodou os moradores da cidade havia desaparecido, cedendo lugar a um sol brilhante de poucas nuvens, sem o causticante calor característico da região. Logo após o almoço, todos os garotos da Siqueira Campos seguiram juntos para a porta dos cinemas, na intenção de negociarem suas revistas e terem algum lucro para empregarem nas compras dos ingressos. Johnny não levou as suas, pois não tinha o talento necessário para negócios lucrativos. Comprava as revistas e depois de lê-las, vendia a preços que sempre favorecia ao comprador. Géo, Nêgo e Pé de Pata sabiam disso e, por vezes, abusavam da falta de apreço do seu amigo por um sentimento de posse mais apurado. Entretanto, quando se tratava de um jogo, Johnny era implacável e, dificilmente, era vencido por um deles.

Havia poucos garotos na porta do Cine Jequié. Naquele domingo o cinema estava apresentando uma comédia romântica, de produção italiana, o qual atraía muitas garotas adolescentes e alguns adultos, interessados em ver

uma famosa película de Luigi Comencini, intitulada “Pão, Amor e Fantasia”, estrelada por Vittorio De Sica e Gina Lollobrigida. Esse filme já era esperado e teve cinco sessões continuas. Os garotos da Siqueira Campos passaram pela porta daquele cinema, sem parar, torcendo o nariz para aquele tipo de filme. Em compensação, a porta do Cine Bonfim estava abarrotada com a molecada dos quatros cantos da cidade, querendo ver o que, os críticos do mundo inteiro consideravam como o maior cowboy de todos os tempos.

Como sempre acontecia em todas as matinês, o comércio de revistas, álbuns de figurinhas e fotograma de películas cinematográficas foi intenso naquela tarde. Como bom negociante, Géo fez excelentes negócios e, minutos antes de começar a projeção, ele já estava com o dinheiro que precisava para a compra de todos os ingressos, que necessitava. Quando a sirene do cinema tocou o último apito, toda a turma de Johnny estava dentro do cinema, acomodada em seus acentos.

A sessão da matinê do Cine Bonfim terminou às quatro horas em ponto, justamente no horário em que estava previsto, o começo da matinê do circo. Johnny e Pé de Pata seguiram apressados para o Campo do América, enquanto os amigos seguiram para a pista de patins, comentando as aventuras do famoso mocinho cowboy. Chagando ao seu destino depararam com um luxuoso circo, muito diferente, dos que costumavam chegar à cidade. Pé de Pata ficou surpreso com o que viu e comentou com Johnny:

- Puxa a vida!... Como é grande!

- Ele é muito luxuoso, porém não é tão grande quanto imaginei.

- Ué, por que você diz isso?

- Ele só tem dois mastros. Os circos realmente grandes têm mais de quatro.

- Como você sabe disso! Você me disse que nunca tinha visto um! – Perguntou Pé de Pata, intrigado com a observação do amigo.

Johnny sorriu e esclareceu ao garoto:

- Eu já li sobre os grandes circos e já vi alguns filmes, que a história se passa num circo.

- É devera! Esse está longe de ser comparado com aquele que a gente viu no filme “O Maior Espetáculo da Terra”! – Concordou Pé de Pata, pois dizia para todos que aquele era um dos melhores filmes que ele tinha assistido, principalmente por ser colorido e ter aparecido Hopalong Cassidy, um dos cowboys que ele admirava.

- Pois é!... Mas esse é muito famoso! Vamos entrar e verificar! – Finalizou Johnny, convidando o amigo para acompanhá-lo.

O espetáculo estava no seu começo, mesmo assim as filas eram muito grande, devido o atraso dos espectadores, que tinham assistido às matinês dos dois cinemas. Como Johnny e Pé de Pata já tinham os seus ingressos, entraram no circo, acomodando-se em um bom lugar nas arquibancadas, de frente para o palco, com boa visão para o picadeiro.

Geralmente um circo como aquele compunha de três espécies de acomodamento. Rodeando a arena, ficavam os camarotes, compostas de quatro confortáveis poltronas e era a área nobre e a mais cara do circo. Atrás vinham as cadeiras numeradas, as quais tomavam toda a área em volta dos camarotes e era separada por uma cerca, necessitando um bilhete especial para entrar e, por fim, as arquibancadas, onde acomodava povão em geral, por ser a parte mais barata do circo.

O espetáculo havia começado alguns minutos antes dos garotos entrarem na grande tenda de lona. Naquele momento estava sendo apresentada uma garota caminhando no arame, tendo em baixo as artimanhas dos palhaços, comandados pelo palhaço principal do circo, o famoso Picolino, o qual atuava com maestria nos dramas do Circo Teatro Nerino. A seguir, sempre intercalados pelas presepadas dos divertidíssimos palhaços, vieram os shows de ginástica olímpica, malabarismos, atiradores de faca e seu famoso mágico, que encantou a meninada, com os seus bem elaborados truques.

Do lugar onde assistia ao espetáculo, Johnny pode divisar sentado em um camarote, Berenice e Luís Augusto, juntos com Bill Elliott e Eva Marli. Em outro, ao lado deles, estavam Eduardo e Luísa na companhia de Edgar e Neide. Pé de Pata chamou a atenção de Johnny para o fato e notou a tristeza estampada no rosto do amigo. Querendo descontrair o garoto, Pé de Pata aproveitou o momento para caçoar de Edgar, dando mostras de certa inveja:

- Quem diria, hem!... Um dia desses o capiau ainda carregava feira. Hoje, ganhando bem como caixeiro de uma grande loja, tem uma bonita namorada e ainda senta nos camarotes do circo!

- Deixa o rapaz conquistar a sua felicidade. Todos tem o direito de subir na vida. – Disse Johnny, sorrindo da chacota do amigo.

Pé de Pata ficou pensativo, depois alisando o seu queixo, perguntou:

- Por que será que todo o cara quando arranja uma namorada, dá uma onda de sério e não procura mais os amigos?

Johnny olhou para o garoto e procurou responder, como se fosse um conselho a ser dado para todos:

- Na certa está crescendo e deixando de ser criança! Afinal quando se arranja uma namorada, as responsabilidades vêm juntas!

- É verdade! Com certeza deve ser isso! – Concluiu o garoto.

Terminada a primeira parte do espetáculo, houve um curto intervalo, a seguir o maestro anuncia a peça teatral.

Johnny ficou maravilhado com o que viu. O cenário era majestoso, assim como o figurino e os efeitos especiais. O roteiro foi bem adaptado, com bons atores em cena. Pé de Pata ficou encantado com a mocinha que viveu Branca de Neve, a qual era a mesma garota que andou no arame, e ficou sabendo, por um camarada ao lado, que ela era a mesma atriz que vivia Dalila, no drama da noite. Quando a peça chegou ao seu final, Johnny notou que Berenice foi a primeira pessoa a se levantar da cadeira e aplaudir os atores com uma grande emoção.

Todos os espectadores ficaram de pé, aplaudindo ao espetáculo, o qual agradou as crianças e os adultos, que assistiram aquela matinê.

Após o final do espetáculo, Johnny se despediu de Pé de Pata, alegando que tinha um compromisso a cumprir e foi um dos primeiros a sair da grande tenda de lona. O garoto não queria encontrar com Berenice na saída, para não mostrar a tristeza que ele sentia com a falta de sua companhia. Pé de Pata compreendeu a sua atitude e aproveitou a oportunidade para encontrar alguns companheiros presentes no local. Eram seis e meia e a noite despontava magnificamente, com a lua surgindo, impondo a sua luz prateada por entre as montanhas. O garoto seguiu apressado e foi para a sua casa, pois pretendia assistir a sessão de soirée logo mais, às oito horas da noite.

Naquele domingo, os cinemas da cidade tentaram concorrer, mas não conseguiram superar o número de expectadores do grande circo. O público compareceu em massa, para ver o tão afamado espetáculo. Muitos rapazes, que tinham visto a peça teatral no sábado anterior, retornaram para ver os efeitos especiais e se encantar com a bela Dalila, vivida por uma atriz adolescente, conhecida como Nicinha. Tõe Porcino foi um deles. Desde o início da noite, o gibi estava impaciente, dando pressa aos seus amigos, pois queria conseguir o melhor lugar nas arquibancadas, bem em frente ao palco. Johnny mal havia terminado o seu jantar e seus amigos já o esperavam, impacientemente, sentados na calçada de sua casa. O garoto se despediu de seus pais e aderiu à sua turma, indo todos juntos pela longa Siqueira Campos, naquela alacridade típica dos garotos de suas idades.

O Circo Teatro Nerino estava esplendidamente iluminado. Possuía um gerador próprio, o qual supria as suas necessidades, não ficando à mercê dos burgos que não tinham energia suficiente para sustentá-lo. No momento da chegada dos garotos, as filas para a compra das entradas eram enorme, fato que não preocupou a prevenida turma, pois tinham adquirido as suas anteriormente. Havia em volta do circo, um grande número de pipoqueiros, vendedores de roletes de cana e baleiros, os quais não podiam entrar e comerciar os seus produtos, pois o circo fornecia as suas próprias guloseimas aos seus frequentadores. Os garotos foram se acomodar no mesmo lugar das arquibancadas, perto da entrada do público, onde na matinê Johnny e Pé de Pata ficaram, o qual dava uma visão melhor do palco e picadeiro. Os garotos esperavam alegremente pelo início do espetáculo, observando as pessoas que adentravam na grande arena, todos em trajes de festa. Géo e Pé de Pata eram os mais animados sempre cumprimentando e acenando para os conhecidos, quando os viam. Em dado momento, entram Berenice e Luís, acompanhados de Bill Elliott, Eduardo e Edgar ao lado de suas namoradas. Géo não se conteve e gritou festivamente para Edgar:

- Edgar, meu camarada!... Então você veio ver o circo?!

Nesse momento Berenice se vira e percebe Johnny entre os meninos. A garota olha tristemente para ele e baixa as vistas. Johnny saúda a todos com amabilidade. Edgar acena para os seus amigos e responde sorrindo para Géo:

- Não! Eu fiquei em casa dormindo! Quem está aqui é outro sujeito!

Mipai e Porcino caem na gargalhada, levando outras pessoas, por perto, a fazerem o mesmo. Géo balança a cabeça negativamente e diz:

- Tá certo, eu mereço isso!

Os casais de namorados vão se acomodar nos camarotes em frente ao picadeiro. Johnny acompanha o trajeto da menina com muita emoção. De repente, antes de sentar em sua poltrona, Berenice se volta e dirige o seu olhar a Johnny e o contempla de longe por breves instantes. Percebendo aquele olhar, o garoto lança com a sua mão um ósculo apaixonado. A menina baixa o olhar e se acomoda na espera do espetáculo. Johnny continua com os seus olhos para os camarotes, enquanto a sua turma prossegue caçoando do desventurado Géo.

Ao tempo em que as pessoas vão entrando, e se acomodando em seus lugares, a orquestra do circo vai executando as típicas músicas circenses. Johnny já tinha ouvido muitas delas em famosos filmes, cujas histórias se ambientavam em circos. Às oito horas em ponto, a orquestra para de tocar e o apresentador, com seu traje de casaca e cartola, anuncia o espetáculo:

- Respeitável público! O grande Ciro Nerino tem o prazer de apresentar o mais engraçado palhaço de todos os tempos! O famoso Picolino!

Nesse momento entra o palhaço principal, acompanhado de outros, inclusive alguns anões, e as peripécias acontecem, arrancando gargalhadas da alegre plateia.

O show é basicamente o mesmo das matinês. Apenas as piadas dos palhaços são mais picantes e alguns números perigosos são acrescidos, pois o espetáculo noturno é dedicado ao público adulto. O que realmente faz com que o espectador volte todos os dias são os dramas diferentes apresentados todas as noites e algumas clássicas comédias e tragédias conhecidas. A reapresentação do drama “Sansão e Dalila” encantou a todos, sendo muito aplaudido no final. O espetáculo terminou às vinte e duas horas e trinta minutos, com um público satisfeito, comentando as artimanhas dos palhaços, os malabarismos, a arte do grande mágico e, sobretudo, a extraordinária montagem da peça apresentada naquela noite.

Como estavam sentados perto da entrada, Johnny e sua turma foram os primeiros a sair da grande tenda. Géo, envergonhado com a sua mancada, pediu aos amigos para ir logo embora, alegando ser tarde demais. Ele não queria encontrar Edgar e seus companheiros, principalmente com as garotas. Johnny sentia a mesma coisa, porém por motivo diferente. Não queria ver de novo Berenice na companhia do primo, pois na certa ele notaria o seu amor pela menina. Todos os garotos seguiram juntos para suas casas, entrando na Avenida Rio Branco, que naquele momento estava deserta. Os dois cinemas tinham terminado as suas sessões e havia pouca gente andando pelas ruas. Quando os garotos entraram no Largo do Maringá, separando Mipai e Tõe Porcino de Johnny e os meninos da Siqueira Campos, o relógio da matriz badalava as vinte e três horas, de uma noite esplendidamente enluarada.

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