terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Uma prova de coragem.

                      J. B. Pessoa

Capítulo - 55 do livro " Guris e Gibis".

Era uma noite de esplendoroso luar. O frio continuava a incomodar, porém sem a intensidade dos dias anteriores. As neblinas se dissiparam pela tarde e, logo após o anoitecer, uma modesta aragem começou a reinar por toda a região, trazendo de volta a lua prateada, em toda a sua plenitude, àquela peculiar cidade.

Nas noites enluaradas, após do jantar, os moradores de Jequié tinham o costume de se reunir e ficar proseando com seus vizinhos, por algum tempo, antes de irem dormir, enquanto suas crianças brincavam em seus folguedos infantis.

Logo nas primeiras horas daquela noite, Miguel Pereira e Francisco de Sousa, Juntamente com alguns vizinhos, aproveitaram o clima brando que fazia e sentaram na calçada do Senhor Gracindo Oliveira, para trocar ideias e ouvir as notícias em seu velho rádio. Eles estavam ansiosos, esperando um programa jornalístico, interessados nos acontecimentos, que fervilhavam o país naquele momento. Vários políticos e militares pediam a renuncia do presidente da república, acusando-o de ser o mandante em um atentado, que ceifou a vida de um major e feriu um jornalista. Naquele momento, o chefe da nação, acompanhado dos poucos correligionários que lhe restavam, iria fazer um pronunciamento em torno de sua defesa. Enquanto os adultos se concentravam em torno do aparelho, ligado a uma bateria de carro, a garotada se divertia nas mais diversas brincadeiras. As meninas costumavam ficar de mãos dadas, formando um círculo, para cantar as canções do folclore infantil, conhecidas como cantigas de roda. Os meninos preferiam outras brincadeiras, nas quais seus dotes varonis eram valorados.

Aproveitando o luar, Johnny e Pé de Pata foram encontrar Géo, Nêgo e Edgar, que esperavam por eles, sentados na pequena calçada, em volta do chafariz público. Os garotos se reuniram na intenção, de discutir os planos de reconstrução do novo clube do time. A turma conversava animadamente, quando apareceu Mipai, na companhia de um velho conhecido da turma: Antônio Balbino dos Santos. Edgar ao ver o amigo chegar acompanhado de um garoto, que ele detestava, chacoteou:

- Cuidado companheiro! “Quem anda com porcos, farelos come!”

Mipai sorriu com desdém, enquanto Balbino, com seu jeito debochado, disse para os garotos:

- Eu vim aqui pra ver se vocês são homens de coragem!

Edgar olhou para o rapazola, admirado com a sua ousadia, e perguntou:

- Ué sujeito! Você está querendo sair na mão grande com a gente?

- Nada disso! Eu vim desafiar vocês para uma prova de coragem! – Disse Balbino, temeroso, com seu sorriso amarelo.

Balbino era famoso pelas suas molecagens e os garotos sabiam disso. Era um tipo extravagante e estava sempre aprontando confusão. Morava na Santa Luzia e, mesmo sendo vizinho e amigo de infância de Mipai e Orlando, andava sempre com a turma da Caixa D’ água. Tinha dezesseis anos. Embora fosse pequeno e franzino para sua idade, gostava de se gabar das suas valentias. Ele considerava a sua prova de coragem como uma verdadeira façanha. Cada um dos garotos teria que ir sozinho até o cemitério, agarrar e sacudir com força o portão e gritar bem alto a

frase: “Alma penada, sua safada. Venha me pegar se for homem!”. Balbino inventou aquela brincadeira, para se vingar de uma turma que ele detestava. Como aqueles garotos tinham fama de valentes, eles seriam ridicularizados, se acaso recusassem o desafio. Edgar e Mipai acataram a proposta sem titubear. Seguiram Balbino até uma frondosa árvore, que ficava ao pé da colina, logo depois da rodovia, por onde começava uma das trilhas que davam ao cemitério, a qual era a mais próxima; porém, distante da estrada oficial. Dali, eles podiam ver, ao longe, o tétrico portão negro e o grande muro branco, que resplendia macabramente ao luar. O cemitério ficava no cume de uma colina, cercado de mato por todos os lados e, o fato de estar solitário, sem nenhuma casa em sua vizinhança, tornava o seu aspecto, ainda mais sombrio, cultivando a imaginação da meninada.

Géo, Nêgo e Pé de Pata estavam morrendo de medo. Johnny achava a brincadeira acriançada demais para o seu gosto. Naquele momento, o garoto só queria esvanecer a saudade que sentia de Berenice. Percebendo o medo estampado no semblante dos garotos, Balbino caçoou deles, dizendo:

- Isso é uma prova só para homens de coragem e não para guris metidos a bestas!

Quando ouviram a insinuação de Balbino, Edgar e Mipai ficaram fulos de raiva e exigiram que todos os seus amigos executassem a malfadada prova de coragem. Os três garotos estavam com medo e tremiam de pavor. Foi necessário Edgar ameaçar de expulsão do clube, caso algum deles se acovardasse.

Balbino sabia do temor da meninada pelo sobrenatural. A maioria dos adultos também temiam as chamadas assombrações. Cresceram ouvindo casos de almas penadas e isso já fazia parte do folclore regional. Os valentes daquela região tremiam de medo, quando tinham que enfrentar personagens fantasmagóricos. Eram, na maioria, pessoas de pouca cultura, sendo algumas totalmente analfabetas. Não adiantava o velho vigia do cemitério, Benedito da Silva Ribeiro, o Bené das Almas, afirmar que os defuntos não faziam mal a ninguém e que ele só tinha medo dos vivos, pois os mortos estavam com Deus. O Guarda Martins respondia que nos vivos ele mandava bala; porém, com as almas penadas, a coisa era bem diferente.

A temperatura começou a baixar e, apesar de fazer muito frio, a noite estava bela com aquele luar prateado, que encantava a todos. Quando a lua se escondia atrás de uma nuvem negra, a escuridão repentina enchia de terror os meninos. Balbino aproveitou o temor dos seus camaradas e acrescentando um boato que rolava na cidade, comentou, fingindo medo:

- Meu pai me disse que o “pegador de meninos” mora nesse cemitério!

- O pegador de meninos?!... Aquele que sangra as crianças e tira o sangue delas para jogar na sepultura de um vampiro? – perguntou Géo, morrendo de medo.

Esse mesmo! Diz o povo que ele adora uma lua cheia!

Edgar achou no acostamento da rodovia uma acha de lenha, que havia caído de um caminhão, e disse com raiva e medo:

- Se esse pegador de meninos se meter a besta comigo, eu racho a cabeça dele, com este pau aqui!

- E isso mesmo Edgar!... Pau nele! – Disse Johnny animado com a coragem do amigo.

Os garotos tinham idade bastante para não temer o famigerado personagem. Entretanto, surgiu mais tarde, uma fantasiosa versão, que se tratava de um vampiro, igual ao que eles viram no cinema. Por isso ficaram temerosos naquele momento.

Balbino fez uma espécie de sorteio, ficando Edgar Pezão com a incumbência de ser o primeiro a encarar a aventura. Johnny ficou por último e não escondia a sua satisfação, pois se não acontecesse nada com os outros, não iria acontecer consigo. Os meninos se posicionaram embaixo do arvoredo à espera dos acontecimentos. Edgar subiu a ladeira com tranquilidade e quando chegou à frente do portão, pegou-o com vontade, balançando várias vezes a grade de ferro, exagerando nos xingamentos. Segundos depois, ele desceu a ladeira, correndo numa louca debandada com o pedaço de pau na mão, gritando assustado:

- Eu vi uma coisa branca lá dentro!... Deve ser uma alma de outro mundo!

Os outros garotos tremiam de medo, enquanto Balbino escarnecia deles dizendo:

- Vocês são medrosos!... Homem que é homem não tem medo de nada. – Depois, virando-se para Mipai, acrescentou num sorriso de deboche:

- Agora é a sua vez de encarar a realidade!

O garoto respirou fundo, fez o sinal da cruz e subiu a ladeira, visivelmente preocupado, pois Edgar jurou para ele, que tinha visto uma coisa estranha dentro daquele cemitério. Lá chegando, realizou o combinado e desceu numa velocidade espantosa, que deixou a meninada perplexa.

- Tem uma alma penada lá dentro do cemitério! Eu vi com estes olhos que a terra há de comer! – Disse o garoto apavorado.

- Chamando o restante da turma à parte, Johnny tranqüilizou Pé de Pata, Nêgo e Géo dizendo:

- Vocês não notaram que eles estão querendo botar medo na gente? Meu pai me disse que não existe alma penada, que isso tudo é invenção do povo!

Os garotos concordaram e realizaram suas façanhas um a um, voltando todos os três assustados, dizendo, sempre, a mesma coisa: dentro do cemitério tinha alguma coisa pavorosa.

Observando o comportamento exagerado da garotada, Johnny chegou à conclusão de que, a turma estava mentindo. Convencido de que os seus amigos queriam assustá-lo, resolveu esnobar aqueles guris com a sua coragem. Como era o último, pegou o pedaço de pau usado por Edgar e, imitando os caubóis do cinema, articulou com teatralidade:

- Podem deixar comigo, homens! Se tiver alguma alma penada nesse cemitério, eu a liquidarei!

Sem entender aquela repentina valentia, todos olharam admirados para o garoto que, com a acha de lenha nas mãos, sorria tranquilo.

Johnny subiu a ladeira que dava ao cemitério, com certa calma. Na medida em que ia se aproximando do portão, sua confiança foi se esvaindo. Olhou para os lados e verificou que, no silêncio da noite, aquele matagal era mais tétrico do que ele imaginava. O seu coração começou acelerar, quando ouviu o piar de uma coruja, em cima de um arbusto, no momento em que a lua se escondia atrás de uma nuvem negra. O vento frio soprava forte e, no cimo da colina, assoviava sinistramente. Querendo acabar depressa com tudo aquilo, o garoto largou o pau e correu em

direção do portão, que parecia mais apavorante de perto. Num frenesi nervoso, agarrou as grades com força e gritou a frase combinada. Nesse momento a lua apareceu e seu clarão focalizou, ao lado de um mausoléu, um vulto branco, que caminhava em sua direção. O garoto saiu dali voando numa correria apavorada; chegando ao começo da ladeira, alardeou com o coração aos pulos:

É verdade, turma!... Tem uma alma penada lá dentro!

Balbino morria de rir com aquela brincadeira. Tinha pregado uma peça naquela meninada e começava a escarnecer deles, sem o menor respeito. Nesse momento, Edgar levantou-se da pedra em que estava sentado e, encarando Balbino com raiva, disse:

- Todo mundo aqui cumpriu a sua tarefa e provamos que somos homens. Agora é a sua vez.

Balbino empalideceu na hora e seu sorriso foi sumindo aos poucos. A idéia de ir até portão do cemitério não estava em seus planos. Apesar de bancar o valentão com os mais novos, era medroso; além disso, como os demais meninos, ele tinha um medo horrível de assombração e de todas as coisas relacionadas com o além-túmulo. Tentou enganar os meninos, para sair daquela enrascada e, com argumentos poucos convincentes, disse a seguir:

- Nada disso! Eu já fui lá em cima com a turma da Rua Santa Luzia, em uma noite bem escura e mais horrível do que essa.

- Mentira! – Gritou Mipai, percebendo o medo de Balbino, para depois acrescentar:

- Eu moro na Santa Luzia! Se isso tivesse acontecido, todo mundo estaria sabendo.

- É isso mesmo! - Gritaram os meninos concordando com o colega.

Edgar, apesar de três anos mais jovem do que Balbino, era mais forte e ameaçou o garoto dizendo:

- Olha aqui, seu sacana! Se você não for lá em cima e fizer o mesmo que a gente fez, nós vamos lhe dar umas boas porradas e espalhar pra todo mundo que você é veado!

Balbino pensou um pouco e chegou à conclusão, que era melhor encarar uma alma penada, do que se meter com o valente Edgar Pezão; principalmente por ele ser companheiro de Mipai, outro famoso brigão. A turma ficou contente com a imposição feita por Edgar a Balbino e, principalmente, por ele haver desmascarado aquele poltrão, que dava ares de destemido a todo o momento. Balbino não teve outra saída e se pudesse adivinhar que os garotos iriam obrigar-lo a cumprir aquela empreitada, não teria proposto a brincadeira. Subiu a ladeira morrendo de medo, sob a vigilância da meninada, enquanto Edgar ordenava:

- Sacuda o portão com força e grite alto para todo mundo ouvir!

Enquanto seguia pelo caminho, que dava acesso ao portão do cemitério, Balbino sentia suas pernas fraquejarem. Subindo a ladeira numa tremedeira alarmante, o garoto imaginava as almas que iria encontrar. Porém, logo se lembrou da crença popular, de que elas só apareciam depois da meia noite. Sendo assim, não haveria perigo algum, pois o relógio da matriz acabava de dar as oito badaladas. Portanto, ele poderia encarar o desafio, sem o menor contratempo. Pensando assim, respirou fundo e, munido de uma repentina coragem, agarrou o portão do cemitério, gritando com vontade:

- Alma penada, sua safada!... Venha me pegar se for homem!

De repente, uma mão forte agarrou o seu pulso e um vulto branco apareceu, dando umas bofetadas em Balbino, presenciado por todos os garotos no pé da ladeira. Balbino deu um berro tão terrível desmaiando no momento. A meninada não esperou o desfecho dos acontecimentos e partiram dali em disparada para suas casas. Pé de Pata e Johnny ficaram escondidos por um algum tempo, atrás de uma moita, pois o terror era tanto que suas pernas tremiam. Quando viram o portão abrir e o vulto branco sair dele, os dois correram apavorados para junto dos pais que no momento ouviam o rádio. O medo estampado em seus rostos chamou a atenção de todos, no momento em que finalizava o famoso noticiário nacional.

Sr. Miguel, quando viu os dois meninos naquela excitação, perguntou o que tinha acontecido. Johnny, ofegante como estava, não conseguiu responder. Pé de Pata, numa excitação anormal, demorando em emitir a sua voz, disse que o “pegador de meninos” tinha corrido atrás deles.

O pai de Pé de Pata pegou o seu revolver e junto com o Sr. Miguel Pereira, que era comissário de menores, partiram em busca do famoso bandido, que aterrorizava as famílias jequieenses.

Corria um boato na cidade a respeito de um inusitado assassino. A polícia local estava investigando a morte de uma criança, que apareceu morta, sem uma gota de sangue em seu corpo e os jornais da cidade alardeavam o fato com muita preocupação.

No momento em que Miguel Pereira e Francisco de Sousa passavam em frente de um botequim, apareceram Edgar Pezão, com sua mãe, uma jovem viúva, que chorava bastante, lamentando o fato de seu filho ser órfão de pai, não tendo ninguém que o defendesse. Edgar havia mentido para a mãe, dizendo que tinha sido atacado. Alguns bêbados daquele boteco se prontificaram para defender a jovem senhora; possibilidade logo descartada pelo guarda e pelo comissário, que não queriam ninguém tumultuando aquela diligência. De repente apareceu Géo, pendurado pelas orelhas, nas mãos fortes do pedreiro José Nascimento, seu pai, o qual já estava ciente do ocorrido e explicou o fato acontecido para todos. O vigia do cemitério havia contado para ele, que os moleques tinham aprontado novamente. Bené das Almas estava ouvindo as notícias, em seu rádio de pilhas, quando os meninos começaram a bater no portão, gritando muito alto, perturbando o silêncio. Ele apareceu para reclamar do barulho e um dos moleques, que estava com o bando, se assustou com a roupa branca que ele usava. Achando que ele era uma alma penada, desmaiou se borrando todo! Dona Adelaide, enfermeira do hospital, que mora por perto, estava cuidando do moleque.

O alarido que se formou na rua, trouxe muitos curiosos, que morreram de rir com história contada pelo pedreiro. O guarda e comissário de menores, acompanhados de José Nascimento, foram ver Balbino e lá o encontraram, ainda sendo medicado pela enfermeira, que tinha levado o garoto para sua casa, onde ele se banhou, lavando-se da sujeira acometida pela sua evacuação nervosa. O vigia aproveitou a multidão ali formada e se queixou da falta de respeito para com os mortos e dos boatos afirmando, que naquele cemitério existia um vampiro sanguinário.

Os pais dos garotos pediram desculpas ao velho vigia, o qual tinha orgulho do seu trabalho, e prometendo uma boa sova nos moleques, partiram para suas casas, levando os seus desventurados filhos.

No dia seguinte, um novo boato havia se espalhado em toda a cidade: O Vampiro de Jequié tinha atacado novamente, vitimando um sujeito chamado Balbino. O velho boato do “pegador de meninos” continuou por um bom tempo na cidade de Jequié e o crime da criança que apareceu morta, sem uma gota de sangue em suas veias, continua insolúvel até hoje.

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