J. B. Pessoa
Capítulo - 54 do livro " Guris e Gibis".
O dia
amanheceu brumoso, com uma finíssima neblina caindo por toda a cidade, deixando
os morros adjacentes, encobertos pelo nevoeiro que se formou em torno deles. Um
gélido vento soprava constantemente, dando a impressão de uma temperatura mais
elevada, que castigava a população pobre dos subúrbios jequieenses. Por toda a
parte se via pessoas com trajes pesados, andando apressadas pelas ruas, com
destino aos seus trabalhos. Cavaleiros com chapéus de abas largas, portando
capas coloniais, trotavam pela rua, conduzindo suas tropas de burros com
produtos de suas roças, para serem distribuídos no comércio. Não era raro ver
nos subúrbios, algum pobre, sem condição de adquirir um casaco, andando pelas
ruas, se agasalhando com o próprio cobertor de dormir. Até os animais pareciam
sofrer com aquela friagem. Os porcos escavavam a terra com seus focinhos, para
deixá-la fofa, se abrigando a ela, juntos aos seus irmãos, para se esquentar do
frio, com o calor de seus corpos. As galinhas permaneciam encolhidas em seus poleiros,
e outras em seus ninhos abrigando os pintinhos com suas asas. Os animais
domésticos, como cães e gatos, permaneciam o tempo todo dentro de casa,
protegidos pelos donos.
Johnny
acordou naquela manhã com bastante preguiça e, pela primeira vez no ano, o
garoto não protestou, quando a sua mãe o obrigou a tomar um banho quente, na
grande bacia de zinco, que havia no quarto de banhos. Contudo, aquela manhã
fria não o desanimou, pois o garoto estava com muitas saudades da vida escolar.
Aquela era a última semana do mês e parecia que o próximo não seria melhor. O
marasmo tendia a continuar na proporção do clima atípico e de um mês desprovido
de festividades.
Após o
café da manhã, Johnny vestiu sua farda escolar, não se esquecendo de usar as
suas galochas, pois a longa Siqueira Campos e o largo do Maringá estavam
totalmente enlameados, por falta de pavimentação. O chuvisco frio e fino
continuava, parecendo que veio para ficar. O garoto respirou forte, abriu seu
guarda-chuva e partiu contente para sua escola.
O relógio
da matriz anunciava, sonoramente, às sete horas e quarenta e cinco minutos,
quando Johnny chegou ao Castro Alves. Os portões da escola estavam sendo
abertos naquele momento, sob a algazarra da meninada, que estava feliz em rever
os seus colegas. Johnny encontrou com Eduardo e Luís, que haviam chegado mais
cedo e, ambos saudaram o garoto animadamente. Depois de alguns segundos de
conversa, Johnny pergunta a Eduardo:
- É
verdade que você passou as férias na capital?
- Só
uma semana! Fui com meus padrinhos, como prêmio da boa atuação que tive na
escola, no primeiro semestre. – Respondeu o garoto, que acrescentou:
- Você
não advinha quem eu encontrei em Salvador!
-
Quem? – Perguntou Johnny, curioso.
-Eduardo
abraçou Luis de lado, que sorria satisfeito.
- O
meu amigo aqui presente, Luís Augusto!
-Puxa
a vida, que coincidência! – Disse Johnny, surpreso com a novidade. Luis
explicou o feliz acontecimento:
-
Bom!... Depois da festa de São João, viajei com minha mãe para Salvador. Uma
tarde, quando eu passeava pela Rua Chile, dei de cara com Eduardo saindo de uma
confeitaria!
-
Rapaz!... Você não imagina a minha satisfação! – Disse Eduardo, que ainda
vibrava com aquela ocorrência.
Luís
interveio, dizendo a sorrir, mangando do amigo:
- A
princípio não acreditei que era ele! Porém, quando notei o jeito de tabaréu do
cara, disse pra mim mesmo: é ele, o meu amigo Eduardo!
Johnny
começou a sorrir, enquanto Eduardo protestava:
-
Tabaréu, eu?!... Não foi isso que as meninas da Bahia acharam!
-
Meninas?! ... Quais meninas, rapaz!
Eduardo
sorrindo, fazendo pose de galã, disse a seguir:
-
Aquela moreninha, amiga da sua prima! Só não a namorei, porque gosto muito de
Luísa.
Os
dois garotos começaram contar para Johnny, suas aventuras na capital baiana. O
garoto ouvia tudo aquilo, deslumbrado com as maravilhas de Salvador. Ele sempre
teve vontade de conhecer a famosa Cidade Presépio, tão decantada em prosas e
versos pelos poetas e cancioneiros nacionais. Quando ainda morava na roça, veio
a Jequié com seus pais e assistiu o famoso desenho animado de Walt Disney,
“Você já foi à Bahia?”, no qual, a atriz e cantora Aurora Miranda contracenava
Com Pato Donald, Zé Carioca, e o mexicano Panchito. O filme, que fez sucesso no
mundo inteiro, é uma mistura de desenhos e atores, que se contracenam
magicamente na tela. Depois de ouvir as narrativas dos amigos, Johnny
perguntou:
- E as
praias?!... Vocês tomaram banho de mar?
Eduardo
respondeu com certa decepção:
-
Infelizmente, choveu pra chuchu!
Luís
completou, com orgulho de sua cidade:
- Mas,
em compensação, conheceu os melhores cinemas da Bahia.
- Ah,
isso é verdade! – Disse Eduardo com euforia, para depois completar:
-
Johnny, você precisava ver o luxo dos cinemas!
- Eu o
levei para os melhores da cidade! – Disse Luís Augusto, feliz por ter
proporcionado ao amigo, uma boa assessoria.
-
Rapaz, nós fomos a uma matinê, que para assistir o filme, tinha que usar
óculos!
Luís
Augusto não agüentou e emitiu uma sonora gargalhada. Olhou para Johnny e
começou a zombar do amigo:
- O
tabaréu aí se assustou com um filme em terceira dimensão! Ele não sabia que
existiam filmes assim.
Johnny
olhou surpreso para Eduardo, que balançava a cabeça negativamente, querendo se
defender de sua gafe. Ele nunca tinha visto um filme desses, mas sabia que
existia essa sofisticada tecnologia, a qual foi lançada nos Estados Unidos, no
final dos anos quarenta. O garoto avisou o amigo, dizendo:
- Tem
um cartaz na sala de espera do Cine Jequié, anunciando em breve, um filme em
terceira dimensão. É um faroeste com Rock Hudson, intitulado “Irmãos Inimigos”!
Eduardo
alisou o queixo, lembrando-se do fato:
É
devera! ... Só que eu não sabia o que era terceira dimensão. Perguntei a turma
e eles não souberam responder.
Nesse
momento, bate o sino da escola, convidando os alunos a se reunir em um dos
pátios, para os atos cívicos. Logo após, todos foram para suas salas, para mais
uma atividade escolar.
O
primeiro dia de aula, após as férias juninas, era de muita alegria para todos.
A algazarra reinava em toda a classe, com muita gente falando ao mesmo tempo. O
garoto ficou feliz em rever seus colegas; alguns dos quais moravam em bairros
distantes, como Jequiezinho e Mandacaru. A meninada relembrou a noite de São
João e de São Pedro em suas ruas e já estavam sonhando com as próximas festividades
da cidade. Luís e Eduardo sentaram-se no lugar de costume e Johnny foi para a
sua carteira, no fundo da sala. De repente chega Orlando e o alvoroço que
imperava na sala aumenta, quando ele anuncia as novidades, em tom de discurso:
-
Caros colegas. É com profundo pesar que venho me despedir de vocês. Vou deixar
a escola por motivo de força maior! Fui contratado como cantor na Rádio
Nacional!
Nesse
momento vários colegas batem palmas, saudando Orlando pela vitória. Alguns
achando que era uma piada, começam vaiar o rapaz. Orlando vira-se para eles e
diz com deboche a sua frase predileta:
- Quem
pode, pode: quem não pode se sacode!
A
garotada começa a rir, mangando de Orlando, aumentando ainda mais a zoada na
sala. Nesse mesmo instante entra a professora Emília e, como um passe de
mágica, a barulheira cede lugar a um silêncio respeitoso. A mestra põe seus
pertences na cátedra e, séria, cumprimenta a garotada:
- Bom
dia caríssimos alunos!
Toda a
classe responde uníssona:
- Bom
dia professora Emília!
A professora
segue a sua aula, fazendo uma retrospectiva do conteúdo do primeiro semestre.
Elogia os alunos que não se esqueceram do programa dado e chama a atenção de
alguns, alertando que, eles estão na escola para aprender e não só para exibir
boas notas. Dando pouco apreço aos conselhos da mestra, Orlando olha para
Johnny e diz com seu jeito debochado:
-
Ainda bem que eu vou me livrar de tudo isso!
- Como
assim? – Perguntou Johnny, curioso.
O
rapaz explicou tudo ao colega nos mínimos detalhes. Um notável radialista de
Salvador chamado Fred Guedes, o qual era famoso como descobridor de talentos,
resolveu investir em Orlando. Aproveitando as férias juninas, contratou o
famoso violonista Jônatas Pithon e saiu com o rapaz pelos pequenos burgos do
planalto baiano, para testar a sua capacidade. Anunciando como a nova sensação
do rádio e televisão, onde poucas pessoas tinham um receptor radiofônico, e em
um estado da federação que não tinha uma emissora de televisão, todos
acreditaram na novidade. Orlando não decepcionou, fazendo grande sucesso por
onde se apresentava. O radialista lucrou bastante com o empreendimento,
compensando o violonista e o jovem cantor com retidão. Como Orlando era menor
de idade, ele conseguiu, legalmente, ser empresário do rapaz, via contrato
assinado pelos seus pais. Orlando noticia com alegria:
- Pois
é!... Na semana que vem viajo com Seu Fred para o Rio de Janeiro!
A aula
continuou com a professora arguindo seus alunos, preparando-os para o exame de
admissão ao ginásio. Lá fora a neblina continuava e o gélido vento soprava sem
cessar. Johnny espiou pelos vidros da janela fechada e verificou que os morros
continuavam escondidos por trás dos espessos nevoeiros e não dava, sequer, para
distinguir a colina onde estava situado bairro do Jequiezinho. O garoto voltou
ao seu canto e sentou-se novamente em sua carteira. Uma doce recordação
aflorou-lhe a alma naquele instante, quando a imagem de Berenice veio à sua
mente. Perguntou a si mesmo, o que ela estaria fazendo naquele momento e a
lembrança de uma bela menina jogando peteca, penetrou em seus pensamentos. O
Ginásio de Jequié tinha retornado as suas aulas, naquele mesmo dia e Johnny
imaginou a garota brincando com as colegas. Ficou pensativo, relembrando os
suaves momentos em que passou em sua companhia e uma infinita tristeza tomou
conta do seu coração. Olhou para Orlando e verificou que o rapazola estava
alheio a tudo aquilo e observava seus colegas com deboche. Sabia que ele tinha
articulado a sua separação de Berenice, entretanto não conseguia odia-lo.
Porcino afirmava que ele não era mau, apenas tinha uma visão desvirtuada dos
valores morais, fruto de uma precária educação familiar. A mestra desempenhava
a sua função, com toda a classe atenta às suas explicações, enquanto o garoto
sofria mergulhado em suas recordações. Nesse momento bate o sino, anunciando o
recreio e todos saem da sala, indo para as parte cobertas do pátio, pois o
chuvisco continuava com intensidade.
Depois
de conversar com as professoras Alíria e Emilia, Orlando foi encontrar Johnny
na biblioteca da escola. O garoto ocupava uma mesa, na companhia de Eduardo e
Luís. Orlando sentou-se numa cadeira e gabou-se de sua situação e da sorte que
o esperava no Rio de Janeiro. Os garotos desejaram-lhe uma longa e prodigiosa
carreira de cantor. Eduardo, depois de congratulá-lo, resolveu provocar o
rapaz, dizendo:
-
Espero que você ganhe muito dinheiro, pois só assim, vai poder pagar o que me
deve!
Orlando
olhou surpreso para Eduardo e perguntou com desdém:
-
Pagar o que sujeito? Eu não lhe devo nada!
- Ah
é?!... E o conto de réis que você me deve?
- Você
acha que vou pagar aquela aposta? Senta e espera.
Eduardo
sorriu do convencimento de Orlando e alertou o rapaz:
- Eu
tenho uma nota promissória assinada por você!
- Só
que ela não tem valor legal, seu otário!
Eduardo
balançou a cabeça negativamente e disse a seguir:
- Só
se você não fizer sucesso. Se você ficar famoso eu mostro a promissória aos
jornais e a opinião pública irá lhe cobrar. Você não terá outra saída, a não
ser me pagar; senão ficará desmoralizado! De qualquer forma eu guardarei sempre
a promissória e a exibirei quando achar necessário.
- Isso
é verdade! – Disse Luís, alertando Orlando das fofocas sofridas pelos astros,
de uma imprensa sensacionalista.
Orlando
não contestou e, contendo a sua raiva, declarou:
- Eu
vou ser rico! E uns míseros contos de réis não irão me fazer falta.
Eduardo
disse sorrindo:
-
Assim espero. Que os anjos digam amém às suas palavras! O que eu quero, é o meu
tutuzinho em meu bolso!
Orlando
saiu dali resmungando e, sem se despedir de ninguém, deu o fora, deixando os
garotos morrendo de rir de sua credulidade. O rapaz não retornou mais às aulas.
No dia seguinte sua mãe entrou em contacto com a direção da escola,
esclarecendo a sua desistência. Logo após a saída de Orlando, Luisa aparece,
saudando a todos com alegria. Eduardo despede-se dos amigos e sai para
conversar com sua namorada. O garoto aproveitou o momento e a convidou para
merendar os quitutes de Dona Amália.
Ficando
a sós com o primo, Johnny procurou saber das novidades referentes às meninas.
Luís também não sabia de nada. Ele e Eduardo tinham chegado de Salvador,
naquela madrugada. Antes de viajar, soube por Bill Elliott, que Berenice só ia
voltar para casa no começo das aulas. Ele também estava preocupado, pois não
via a menina desde a noite de São João. Assegurou para o primo, que pretendia
fazer uma visita a garota, logo mais à tarde. De repente Luís sorriu, e
comentou ao primo:
- Sabe
de uma coisa?!... Já que Orlando está indo embora, não vai mais dar nenhuma
marcação em relação à Berenice!... Legal, não?
- Com
certeza! – Disse Johnny, esboçando um sorriso.
O resto da manhã continuou com a professora Emilia repassando o conteúdo do semestre passado e, quando as aulas chegam ao fim, os alunos voltam a se encontrar no pátio externo do prédio, na área que dá para a avenida, aproveitando a aragem que apareceu ao meio dia.
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