quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

A volta das aulas.

                       J. B. Pessoa


Capítulo - 54 do livro " Guris e Gibis".

O dia amanheceu brumoso, com uma finíssima neblina caindo por toda a cidade, deixando os morros adjacentes, encobertos pelo nevoeiro que se formou em torno deles. Um gélido vento soprava constantemente, dando a impressão de uma temperatura mais elevada, que castigava a população pobre dos subúrbios jequieenses. Por toda a parte se via pessoas com trajes pesados, andando apressadas pelas ruas, com destino aos seus trabalhos. Cavaleiros com chapéus de abas largas, portando capas coloniais, trotavam pela rua, conduzindo suas tropas de burros com produtos de suas roças, para serem distribuídos no comércio. Não era raro ver nos subúrbios, algum pobre, sem condição de adquirir um casaco, andando pelas ruas, se agasalhando com o próprio cobertor de dormir. Até os animais pareciam sofrer com aquela friagem. Os porcos escavavam a terra com seus focinhos, para deixá-la fofa, se abrigando a ela, juntos aos seus irmãos, para se esquentar do frio, com o calor de seus corpos. As galinhas permaneciam encolhidas em seus poleiros, e outras em seus ninhos abrigando os pintinhos com suas asas. Os animais domésticos, como cães e gatos, permaneciam o tempo todo dentro de casa, protegidos pelos donos.

Johnny acordou naquela manhã com bastante preguiça e, pela primeira vez no ano, o garoto não protestou, quando a sua mãe o obrigou a tomar um banho quente, na grande bacia de zinco, que havia no quarto de banhos. Contudo, aquela manhã fria não o desanimou, pois o garoto estava com muitas saudades da vida escolar. Aquela era a última semana do mês e parecia que o próximo não seria melhor. O marasmo tendia a continuar na proporção do clima atípico e de um mês desprovido de festividades.

Após o café da manhã, Johnny vestiu sua farda escolar, não se esquecendo de usar as suas galochas, pois a longa Siqueira Campos e o largo do Maringá estavam totalmente enlameados, por falta de pavimentação. O chuvisco frio e fino continuava, parecendo que veio para ficar. O garoto respirou forte, abriu seu guarda-chuva e partiu contente para sua escola.

O relógio da matriz anunciava, sonoramente, às sete horas e quarenta e cinco minutos, quando Johnny chegou ao Castro Alves. Os portões da escola estavam sendo abertos naquele momento, sob a algazarra da meninada, que estava feliz em rever os seus colegas. Johnny encontrou com Eduardo e Luís, que haviam chegado mais cedo e, ambos saudaram o garoto animadamente. Depois de alguns segundos de conversa, Johnny pergunta a Eduardo:

- É verdade que você passou as férias na capital?

- Só uma semana! Fui com meus padrinhos, como prêmio da boa atuação que tive na escola, no primeiro semestre. – Respondeu o garoto, que acrescentou:

- Você não advinha quem eu encontrei em Salvador!

- Quem? – Perguntou Johnny, curioso.

-Eduardo abraçou Luis de lado, que sorria satisfeito.

- O meu amigo aqui presente, Luís Augusto!

-Puxa a vida, que coincidência! – Disse Johnny, surpreso com a novidade. Luis explicou o feliz acontecimento:

- Bom!... Depois da festa de São João, viajei com minha mãe para Salvador. Uma tarde, quando eu passeava pela Rua Chile, dei de cara com Eduardo saindo de uma confeitaria!

- Rapaz!... Você não imagina a minha satisfação! – Disse Eduardo, que ainda vibrava com aquela ocorrência.

Luís interveio, dizendo a sorrir, mangando do amigo:

- A princípio não acreditei que era ele! Porém, quando notei o jeito de tabaréu do cara, disse pra mim mesmo: é ele, o meu amigo Eduardo!

Johnny começou a sorrir, enquanto Eduardo protestava:

- Tabaréu, eu?!... Não foi isso que as meninas da Bahia acharam!

- Meninas?! ... Quais meninas, rapaz!

Eduardo sorrindo, fazendo pose de galã, disse a seguir:

- Aquela moreninha, amiga da sua prima! Só não a namorei, porque gosto muito de Luísa.

Os dois garotos começaram contar para Johnny, suas aventuras na capital baiana. O garoto ouvia tudo aquilo, deslumbrado com as maravilhas de Salvador. Ele sempre teve vontade de conhecer a famosa Cidade Presépio, tão decantada em prosas e versos pelos poetas e cancioneiros nacionais. Quando ainda morava na roça, veio a Jequié com seus pais e assistiu o famoso desenho animado de Walt Disney, “Você já foi à Bahia?”, no qual, a atriz e cantora Aurora Miranda contracenava Com Pato Donald, Zé Carioca, e o mexicano Panchito. O filme, que fez sucesso no mundo inteiro, é uma mistura de desenhos e atores, que se contracenam magicamente na tela. Depois de ouvir as narrativas dos amigos, Johnny perguntou:

- E as praias?!... Vocês tomaram banho de mar?

Eduardo respondeu com certa decepção:

- Infelizmente, choveu pra chuchu!

Luís completou, com orgulho de sua cidade:

- Mas, em compensação, conheceu os melhores cinemas da Bahia.

- Ah, isso é verdade! – Disse Eduardo com euforia, para depois completar:

- Johnny, você precisava ver o luxo dos cinemas!

- Eu o levei para os melhores da cidade! – Disse Luís Augusto, feliz por ter proporcionado ao amigo, uma boa assessoria.

- Rapaz, nós fomos a uma matinê, que para assistir o filme, tinha que usar óculos!

Luís Augusto não agüentou e emitiu uma sonora gargalhada. Olhou para Johnny e começou a zombar do amigo:

- O tabaréu aí se assustou com um filme em terceira dimensão! Ele não sabia que existiam filmes assim.

Johnny olhou surpreso para Eduardo, que balançava a cabeça negativamente, querendo se defender de sua gafe. Ele nunca tinha visto um filme desses, mas sabia que existia essa sofisticada tecnologia, a qual foi lançada nos Estados Unidos, no final dos anos quarenta. O garoto avisou o amigo, dizendo:

- Tem um cartaz na sala de espera do Cine Jequié, anunciando em breve, um filme em terceira dimensão. É um faroeste com Rock Hudson, intitulado “Irmãos Inimigos”!

Eduardo alisou o queixo, lembrando-se do fato:

É devera! ... Só que eu não sabia o que era terceira dimensão. Perguntei a turma e eles não souberam responder.

Nesse momento, bate o sino da escola, convidando os alunos a se reunir em um dos pátios, para os atos cívicos. Logo após, todos foram para suas salas, para mais uma atividade escolar.

O primeiro dia de aula, após as férias juninas, era de muita alegria para todos. A algazarra reinava em toda a classe, com muita gente falando ao mesmo tempo. O garoto ficou feliz em rever seus colegas; alguns dos quais moravam em bairros distantes, como Jequiezinho e Mandacaru. A meninada relembrou a noite de São João e de São Pedro em suas ruas e já estavam sonhando com as próximas festividades da cidade. Luís e Eduardo sentaram-se no lugar de costume e Johnny foi para a sua carteira, no fundo da sala. De repente chega Orlando e o alvoroço que imperava na sala aumenta, quando ele anuncia as novidades, em tom de discurso:

- Caros colegas. É com profundo pesar que venho me despedir de vocês. Vou deixar a escola por motivo de força maior! Fui contratado como cantor na Rádio Nacional!

Nesse momento vários colegas batem palmas, saudando Orlando pela vitória. Alguns achando que era uma piada, começam vaiar o rapaz. Orlando vira-se para eles e diz com deboche a sua frase predileta:

- Quem pode, pode: quem não pode se sacode!

A garotada começa a rir, mangando de Orlando, aumentando ainda mais a zoada na sala. Nesse mesmo instante entra a professora Emília e, como um passe de mágica, a barulheira cede lugar a um silêncio respeitoso. A mestra põe seus pertences na cátedra e, séria, cumprimenta a garotada:

- Bom dia caríssimos alunos!

Toda a classe responde uníssona:

- Bom dia professora Emília!

A professora segue a sua aula, fazendo uma retrospectiva do conteúdo do primeiro semestre. Elogia os alunos que não se esqueceram do programa dado e chama a atenção de alguns, alertando que, eles estão na escola para aprender e não só para exibir boas notas. Dando pouco apreço aos conselhos da mestra, Orlando olha para Johnny e diz com seu jeito debochado:

- Ainda bem que eu vou me livrar de tudo isso!

- Como assim? – Perguntou Johnny, curioso.

O rapaz explicou tudo ao colega nos mínimos detalhes. Um notável radialista de Salvador chamado Fred Guedes, o qual era famoso como descobridor de talentos, resolveu investir em Orlando. Aproveitando as férias juninas, contratou o famoso violonista Jônatas Pithon e saiu com o rapaz pelos pequenos burgos do planalto baiano, para testar a sua capacidade. Anunciando como a nova sensação do rádio e televisão, onde poucas pessoas tinham um receptor radiofônico, e em um estado da federação que não tinha uma emissora de televisão, todos acreditaram na novidade. Orlando não decepcionou, fazendo grande sucesso por onde se apresentava. O radialista lucrou bastante com o empreendimento, compensando o violonista e o jovem cantor com retidão. Como Orlando era menor de idade, ele conseguiu, legalmente, ser empresário do rapaz, via contrato assinado pelos seus pais. Orlando noticia com alegria:

- Pois é!... Na semana que vem viajo com Seu Fred para o Rio de Janeiro!

A aula continuou com a professora arguindo seus alunos, preparando-os para o exame de admissão ao ginásio. Lá fora a neblina continuava e o gélido vento soprava sem cessar. Johnny espiou pelos vidros da janela fechada e verificou que os morros continuavam escondidos por trás dos espessos nevoeiros e não dava, sequer, para distinguir a colina onde estava situado bairro do Jequiezinho. O garoto voltou ao seu canto e sentou-se novamente em sua carteira. Uma doce recordação aflorou-lhe a alma naquele instante, quando a imagem de Berenice veio à sua mente. Perguntou a si mesmo, o que ela estaria fazendo naquele momento e a lembrança de uma bela menina jogando peteca, penetrou em seus pensamentos. O Ginásio de Jequié tinha retornado as suas aulas, naquele mesmo dia e Johnny imaginou a garota brincando com as colegas. Ficou pensativo, relembrando os suaves momentos em que passou em sua companhia e uma infinita tristeza tomou conta do seu coração. Olhou para Orlando e verificou que o rapazola estava alheio a tudo aquilo e observava seus colegas com deboche. Sabia que ele tinha articulado a sua separação de Berenice, entretanto não conseguia odia-lo. Porcino afirmava que ele não era mau, apenas tinha uma visão desvirtuada dos valores morais, fruto de uma precária educação familiar. A mestra desempenhava a sua função, com toda a classe atenta às suas explicações, enquanto o garoto sofria mergulhado em suas recordações. Nesse momento bate o sino, anunciando o recreio e todos saem da sala, indo para as parte cobertas do pátio, pois o chuvisco continuava com intensidade.

Depois de conversar com as professoras Alíria e Emilia, Orlando foi encontrar Johnny na biblioteca da escola. O garoto ocupava uma mesa, na companhia de Eduardo e Luís. Orlando sentou-se numa cadeira e gabou-se de sua situação e da sorte que o esperava no Rio de Janeiro. Os garotos desejaram-lhe uma longa e prodigiosa carreira de cantor. Eduardo, depois de congratulá-lo, resolveu provocar o rapaz, dizendo:

- Espero que você ganhe muito dinheiro, pois só assim, vai poder pagar o que me deve!

Orlando olhou surpreso para Eduardo e perguntou com desdém:

- Pagar o que sujeito? Eu não lhe devo nada!

- Ah é?!... E o conto de réis que você me deve?

- Você acha que vou pagar aquela aposta? Senta e espera.

Eduardo sorriu do convencimento de Orlando e alertou o rapaz:

- Eu tenho uma nota promissória assinada por você!

- Só que ela não tem valor legal, seu otário!

Eduardo balançou a cabeça negativamente e disse a seguir:

- Só se você não fizer sucesso. Se você ficar famoso eu mostro a promissória aos jornais e a opinião pública irá lhe cobrar. Você não terá outra saída, a não ser me pagar; senão ficará desmoralizado! De qualquer forma eu guardarei sempre a promissória e a exibirei quando achar necessário.

- Isso é verdade! – Disse Luís, alertando Orlando das fofocas sofridas pelos astros, de uma imprensa sensacionalista.

Orlando não contestou e, contendo a sua raiva, declarou:

- Eu vou ser rico! E uns míseros contos de réis não irão me fazer falta.

Eduardo disse sorrindo:

- Assim espero. Que os anjos digam amém às suas palavras! O que eu quero, é o meu tutuzinho em meu bolso!

Orlando saiu dali resmungando e, sem se despedir de ninguém, deu o fora, deixando os garotos morrendo de rir de sua credulidade. O rapaz não retornou mais às aulas. No dia seguinte sua mãe entrou em contacto com a direção da escola, esclarecendo a sua desistência. Logo após a saída de Orlando, Luisa aparece, saudando a todos com alegria. Eduardo despede-se dos amigos e sai para conversar com sua namorada. O garoto aproveitou o momento e a convidou para merendar os quitutes de Dona Amália.

Ficando a sós com o primo, Johnny procurou saber das novidades referentes às meninas. Luís também não sabia de nada. Ele e Eduardo tinham chegado de Salvador, naquela madrugada. Antes de viajar, soube por Bill Elliott, que Berenice só ia voltar para casa no começo das aulas. Ele também estava preocupado, pois não via a menina desde a noite de São João. Assegurou para o primo, que pretendia fazer uma visita a garota, logo mais à tarde. De repente Luís sorriu, e comentou ao primo:

- Sabe de uma coisa?!... Já que Orlando está indo embora, não vai mais dar nenhuma marcação em relação à Berenice!... Legal, não?

- Com certeza! – Disse Johnny, esboçando um sorriso.

O resto da manhã continuou com a professora Emilia repassando o conteúdo do semestre passado e, quando as aulas chegam ao fim, os alunos voltam a se encontrar no pátio externo do prédio, na área que dá para a avenida, aproveitando a aragem que apareceu ao meio dia.

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