quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

A Vingança.

                                                                    J. B. Pessoa


Capítulo - 52 do livro " Guris e Gibis".


Johnny acordou bem disposto naquela manhã. Não tinha tomado nenhum cálice de licor, no animado forró na casa da viúva Dona Joaninha. Tinha dormido maravilhosamente bem, sem os pesadelos que haviam lhe atormentado, na noite anterior. Após o desjejum, sua mãe lhe informou que seus amigos tinham aparecido e lhe esperavam no lugar de sempre. Ouvindo o recado, o garoto partiu apressado e encontrou toda a sua turma, conversando com o guarda Martins. Os garotos foram avisados, com antecedência, pelo grande amigo, que um acontecimento, sem precedentes, iria acontecer naquela manhã. Pediu para a garotada reunir o maior número de meninos daquela periferia e esperassem por certa ocorrência, a qual iria acontecer dentro de alguns minutos. Quando Johnny perguntou do que se tratava, o amável policial respondeu com um ditado popular: “Vingança é um prato que se come frio!” Dizendo isso, o guarda foi cuidar dos seus interesses, deixando os garotos mais curiosos ainda, quando ele se despediu com outro provérbio: “Quem espera, sempre alcança!”

O sol brilhava com mais intensidade, depois de uma semana de neblina e frio, deixando a meninada contente, com aquele tempo estável, cujo calor dava uma agradável sensação de liberdade em todos. Os garotos estavam sentados embaixo da grande e frondosa mangueira, à espera da novidade. Era a manhã de terça-feira, do dia de São Pedro. Todos os amigos do time da Siqueira Campos estavam presentes no local, inclusive Bill Elliott e Eduardo. As exceções ficaram por conta de Géo, que havia bebido muito licor na festa da viúva, e de Edgar, o qual estava trabalhando na loja. Johnny, sentindo a falta dos garotos, comentou:

- É uma pena Edgar e Géo não estarem aqui com a gente!

- Um escravo que atende pelo nome de Edgar Pé Grande esta sendo enforcado por uma gravata nas Casas Pernambucanas. Não aceitou os conselhos do crioulo aqui, que é livre que nem um passarinho! - Disse Tõe Porcino, mangando do rapaz.

Pé de Pata comunicou aos amigos, com uma gargalhada:

- O otário do Géo está dormindo. O pai dele está com uma palmatória na mão, esperando o moleque acordar! Bebeu demais na noite passada, no forró de Dona Joaninha!

Bill Elliott ouvindo o amigo, falou com propriedade:

- Pois é! Eu soube que na noite de São João todo mundo encheu a cara!... Vocês querem se transformar em paus d’água, bando de otários?!

Johnny ficou envergonhado ao ouvir o amigo, pois ele também havia tomado alguns cálices, por conta da sua frustração. Tõe Porcino concordou com Bill Elliott, e confessou que ele mesmo tinha bebido. Estava arrependido, principalmente pela ressaca do dia seguinte. Coçou a cabeça e, olhando para Bill, lhe disse chateado com a sua própria atitude:

- Logo eu, que sempre faço propaganda contra bebidas!

- O negócio é que um licorzinho de jenipapo é tão gostoso, que a gente acaba repetindo! – Disse Pé de Pata sorrindo. Nêgo, vendo certo cinismo no amigo, alardeou com emoção:

- O nosso pastor disse que o Inferno está cheio de beberrões!

Mipai estava calado lendo sua revista predileta. Ouvindo a vaticinação do amigo, resolveu entrar conversa, achincalhando o garoto:

- Só estão no inferno os protestantes que bebem; principalmente os evangélicos!

- Por que somente os protestantes? – Contestou Pé de Pata, chateado com aquela afirmação.

- Porque os católicos têm a permissão de Deus para beber! – Respondeu Mipai com seu sorriso cínico. Nêgo ouvindo aquele impropério bradou com indignação:

- Ah é?!... De onde você ouviu esse absurdo?

- Está na Bíblia!

-Você está maluco rapaz!... Isso é blasfêmia!

Mipai continuou com seu sorriso de deboche e perguntou ironicamente:

- Quem foi que disse: “Bebei esse vinho, que é o meu sangue”?!

Johnny, não agüentando ouvir tanta asneira, explicou a todos:

- O pão, vinho e queijo eram e ainda é, em alguns países, o principal alimento. O ritual da Igreja segue aos preceitos bíblicos, e isso não é desculpa para ninguém abusar de uma bebida alcoólica.

Nêgo ouviu a explicação de Johnny com certo desdém. Sentindo que suas palavras estavam tirando o mérito do seu pastor, perguntou com petulância:

- De que igreja você está falando rapaz?

Antes que Johnny respondesse, Bill Elliott interveio:

- Da única que nos livros de História se escreve com a letra maiúscula!

- Ué, que igreja é essa? – Perguntou Pé de Pata, curioso com a afirmação.

Bill Elliott respondeu com precisão:

- Da histórica Igreja Católica Apostólica Romana, a qual foi idealizada por Jesus Cristo e criada por Pedro e Paulo e, mais tarde, codificada pelo imperador romano Constantino.

Sem ter nenhum conhecimento de História, principalmente da sua igreja, Nêgo protestou:

- Você quer dizer que nossa igreja não foi criada pelo Cristo?!

- Cristo e seus apóstolos criaram o cristianismo, Constantino a Igreja Católica e, mil e duzentos anos depois, Lutero e Calvino fundaram as igrejas protestantes. As chamadas igrejas evangélicas apareceram nos Estados Unidos, no século passado.

Toda a garotada presente ficou boquiaberta com o esclarecimento do rapaz. Havia entre os meninos uma ignorância natural, fruto da baixa escolaridade de seus pais e dos preconceitos elaborados pelos próprios sacerdotes. Para Nêgo nada daquilo era verdade, porque seu pastor havia dito

que, a sua igreja seguia a verdadeira lei do Cristo e que as outras tinham sido corrompidas pelo diabo. Olhou para Bill Elliott e disse saliente:

- Eu não tenho conhecimento dessas coisas!

Eduardo, que até então só ouvia e nada dizia, resolveu entrar na querela:

- Ué, desde quando você é uma pessoa bem informada?

- Me respeita seu sujeito! Eu vou ao culto todos os domingos!

- Isso não é informação, e sim, catequização! - Explicou Eduardo ao enfezado Nêgo, que recusava a admitir qualquer coisa contrária à sua doutrinação. Como ele insistia em defender as idéias esdrúxulas do seu pastor, Eduardo resolveu mangar um pouco do garoto. Piscou o olho para os amigos e, abraçando Nêgo de lado, lhe disse com ar professoral:

- Estude meu caro rapaz!... Lembre-se que o saber dá asas a liberdade!

A garotada caiu na gargalhada diante do humorismo repentino de Eduardo, o qual aproveitou o momento para achincalhar certo desafeto:

- Você está andando demais com Orlando! Sou obrigado a lhe avisar que

burrice pega!

- Desde quando eu ando com aquele sujeito?

- Você estava torcendo por ele, quando o sacana me desafiou naquela aposta – Disse Eduardo, ressentido com o garoto.

Diante daquela acusação, Nêgo ficou calado, pois esteve do lado de Orlando, contra Eduardo e participou das represálias sofridas pelo garoto. Nêgo se desculpou de sua falha e quis trazer de volta a discussão, tentando protestar a respeito das explanações feita por Bill Elliott. Porém, naquele momento, um acontecimento chamou a atenção dos garotos, que esqueceram a contenda e foram ver o que estava acontecendo. Uma aglomeração de pessoas começou a se formar em frente da casa do velho Manequito. Os garotos, pasmados, assistiram o velho e seus comparsas saírem algemados de sua casa, conduzidos presos pelo delegado Quixadá e pelos três policiais que o acompanhavam. A casa do velho Manequito estava abarrotada de objetos roubados, que ia de rádios a bicicletas; de talheres de prata a eletrodomésticos. A rua estava cheia de curiosos. Todos os moradores da vizinhança presenciaram o acontecimento e muitos deles aplaudiram a polícia, enquanto a meninada vaiava e insultava o velho inimigo. Johnny sabia que algo semelhante iria acontecer, mas não previu a satisfação da maioria das pessoas presentes àquela ocorrência. Nesse momento o Guarda Martins chamou os meninos e explicou, nos mínimos detalhes, todo aquele episódio.

A polícia civil estava na pista de Manequito, desde o dia que o Guarda Martins denunciou as atividades do velho, ao delegado Quixadá. Não como falsificador de bebidas, pois isso era corriqueiro e muita gente praticava esse delito na cidade. Martins descobriu que velho era receptador de furtos, cometidos em toda a região. As suspeitas do guarda tiveram o seu início, quando ele começou a implicar com os garotos, por jogar bola em seus quintais. Os meninos pediram ao guarda para conversar com o velho, o qual se mostrou irredutível. Manequito não queria testemunhas. Às vezes, no momento em que

ele recebia os furtos, os meninos estavam, sempre, jogando bola perto do seu portão. Por isso ele ficava possesso, a ponto de atiçar o seu cachorro na meninada. Havia bastante tempo que Manequito fornecia mercadorias roubadas, a lojas desonestas na capital baiana, as quais entravam no comércio legal, através de notas frias. O Guarda Martins comunicou o fato aos seus colegas Belmiro, Benigno e Francisco, que ficaram de olho em toda a movimentação da casa, muitas vezes feita à noite, às escondidas. O grande erro do velho foi adquirir de dois ladrões juvenis, algumas jóias caríssimas, roubadas de certo cidadão, morador na Praça da Estação. Esse senhor deu queixa a policia e incumbiu Martins de investigar o roubo, prometendo uma grande recompensa se o guarda alcançasse sucesso na empreitada. O Guarda Martins convocou os amigos Belmiro, Benigno e Francisco Dias de Souza, os quais colaboram na investigação do roubo das jóias e estava ciente das atividades do velho.

Como o prêmio era significativo, os guardas não perderam tempo e arregaçaram as mangas, fazendo uma grande devassa pela cidade. Visitaram os cabarés do Maracujá, da colina do Barro Preto e todos os pontos suspeitos do Jequiezinho ao Mandacaru. O guarda Martins resolveu ir ao Bar Caixa D’Água, pois sabia que a meninada, que jogava sinuca naquele estabelecimento, praticava pequenos furtos. Comunicou o fato ao dono do bar, o qual apontou dois moleques como suspeitos. Eram dois desordeiros de quinze anos, conhecidos como Zé Biribano e Chico Sarará. Martins prendeu os moleques e ameaçou os dois com a palmatória. Zé Biribano, morrendo de medo, confessou o roubo e apontou Manequito como o receptou.

Finalmente o inimigo tinha sido vencido. Os garotos ficaram exultantes em saber que o velho não iria mais atrapalhar suas recreações e que seus pais não iriam ouvir os péssimos conselhos daquele hipócrita, que dava ares de homem culto. Alguns moradores da rua lamentavam o ocorrido, pois Emanuel Quirino de Souza, conhecido como Seu Manequito, era visto por muita gente, como homem de bem e temente a Deus. Achavam que o velho tinha sido vítima de alguma intriga e se recusavam a acreditar que ele havia queimado o clube dos meninos. O guarda Martins mostrou a todos, os produtos dos furtos e explicou para aquela gente de boa fé, que a policia havia descoberto o passado do meliante. Manequito era um malandro e cafetão do Maciel, zona do baixo meretrício de Salvador, o qual tinha várias passagens pela polícia soteropolitana. Decepcionados com o velho, seus irmãos em religião ouviram, consternados, os depoimentos de Martins, Belmiro, Benigno e Francisco. Após o final do relato, o Senhor Gracindo de Oliveira, pai do jovem Alípio, relembrou um provérbio popular, e disse com convicção:

- “Quem ver cara, não vê coração”!

O Sol estava a pino quando todos se retiraram para suas casas. Era meio dia, à hora sagrada do almoço. Johnny foi para sua casa, após ouvir o chamado de sua mãe.

 

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