J. B. Pessoa
Capítulo - 52 do livro " Guris e Gibis".
Johnny
acordou bem disposto naquela manhã. Não tinha tomado nenhum cálice de licor, no
animado forró na casa da viúva Dona Joaninha. Tinha dormido maravilhosamente
bem, sem os pesadelos que haviam lhe atormentado, na noite anterior. Após o
desjejum, sua mãe lhe informou que seus amigos tinham aparecido e lhe esperavam
no lugar de sempre. Ouvindo o recado, o garoto partiu apressado e encontrou
toda a sua turma, conversando com o guarda Martins. Os garotos foram avisados,
com antecedência, pelo grande amigo, que um acontecimento, sem precedentes,
iria acontecer naquela manhã. Pediu para a garotada reunir o maior número de
meninos daquela periferia e esperassem por certa ocorrência, a qual iria
acontecer dentro de alguns minutos. Quando Johnny perguntou do que se tratava,
o amável policial respondeu com um ditado popular: “Vingança é um prato que se
come frio!” Dizendo isso, o guarda foi cuidar dos seus interesses, deixando os
garotos mais curiosos ainda, quando ele se despediu com outro provérbio: “Quem
espera, sempre alcança!”
O sol
brilhava com mais intensidade, depois de uma semana de neblina e frio, deixando
a meninada contente, com aquele tempo estável, cujo calor dava uma agradável
sensação de liberdade em todos. Os garotos estavam sentados embaixo da grande e
frondosa mangueira, à espera da novidade. Era a manhã de terça-feira, do dia de
São Pedro. Todos os amigos do time da Siqueira Campos estavam presentes no
local, inclusive Bill Elliott e Eduardo. As exceções ficaram por conta de Géo,
que havia bebido muito licor na festa da viúva, e de Edgar, o qual estava
trabalhando na loja. Johnny, sentindo a falta dos garotos, comentou:
- É
uma pena Edgar e Géo não estarem aqui com a gente!
- Um
escravo que atende pelo nome de Edgar Pé Grande esta sendo enforcado por uma
gravata nas Casas Pernambucanas. Não aceitou os conselhos do crioulo aqui, que
é livre que nem um passarinho! - Disse Tõe Porcino, mangando do rapaz.
Pé de
Pata comunicou aos amigos, com uma gargalhada:
- O
otário do Géo está dormindo. O pai dele está com uma palmatória na mão,
esperando o moleque acordar! Bebeu demais na noite passada, no forró de Dona
Joaninha!
Bill
Elliott ouvindo o amigo, falou com propriedade:
- Pois
é! Eu soube que na noite de São João todo mundo encheu a cara!... Vocês querem se
transformar em paus d’água, bando de otários?!
Johnny
ficou envergonhado ao ouvir o amigo, pois ele também havia tomado alguns
cálices, por conta da sua frustração. Tõe Porcino concordou com Bill Elliott, e
confessou que ele mesmo tinha bebido. Estava arrependido, principalmente pela
ressaca do dia seguinte. Coçou a cabeça e, olhando para Bill, lhe disse
chateado com a sua própria atitude:
- Logo
eu, que sempre faço propaganda contra bebidas!
- O
negócio é que um licorzinho de jenipapo é tão gostoso, que a gente acaba
repetindo! – Disse Pé de Pata sorrindo. Nêgo, vendo certo cinismo no amigo,
alardeou com emoção:
- O
nosso pastor disse que o Inferno está cheio de beberrões!
Mipai
estava calado lendo sua revista predileta. Ouvindo a vaticinação do amigo, resolveu
entrar conversa, achincalhando o garoto:
- Só
estão no inferno os protestantes que bebem; principalmente os evangélicos!
- Por
que somente os protestantes? – Contestou Pé de Pata, chateado com aquela
afirmação.
-
Porque os católicos têm a permissão de Deus para beber! – Respondeu Mipai com
seu sorriso cínico. Nêgo ouvindo aquele impropério bradou com indignação:
- Ah
é?!... De onde você ouviu esse absurdo?
- Está
na Bíblia!
-Você
está maluco rapaz!... Isso é blasfêmia!
Mipai
continuou com seu sorriso de deboche e perguntou ironicamente:
- Quem
foi que disse: “Bebei esse vinho, que é o meu sangue”?!
Johnny,
não agüentando ouvir tanta asneira, explicou a todos:
- O
pão, vinho e queijo eram e ainda é, em alguns países, o principal alimento. O
ritual da Igreja segue aos preceitos bíblicos, e isso não é desculpa para
ninguém abusar de uma bebida alcoólica.
Nêgo
ouviu a explicação de Johnny com certo desdém. Sentindo que suas palavras
estavam tirando o mérito do seu pastor, perguntou com petulância:
- De
que igreja você está falando rapaz?
Antes
que Johnny respondesse, Bill Elliott interveio:
- Da
única que nos livros de História se escreve com a letra maiúscula!
- Ué,
que igreja é essa? – Perguntou Pé de Pata, curioso com a afirmação.
Bill
Elliott respondeu com precisão:
- Da
histórica Igreja Católica Apostólica Romana, a qual foi idealizada por Jesus
Cristo e criada por Pedro e Paulo e, mais tarde, codificada pelo imperador
romano Constantino.
Sem
ter nenhum conhecimento de História, principalmente da sua igreja, Nêgo
protestou:
- Você
quer dizer que nossa igreja não foi criada pelo Cristo?!
-
Cristo e seus apóstolos criaram o cristianismo, Constantino a Igreja Católica
e, mil e duzentos anos depois, Lutero e Calvino fundaram as igrejas
protestantes. As chamadas igrejas evangélicas apareceram nos Estados Unidos, no
século passado.
Toda a
garotada presente ficou boquiaberta com o esclarecimento do rapaz. Havia entre
os meninos uma ignorância natural, fruto da baixa escolaridade de seus pais e
dos preconceitos elaborados pelos próprios sacerdotes. Para Nêgo nada daquilo
era verdade, porque seu pastor havia dito
que, a
sua igreja seguia a verdadeira lei do Cristo e que as outras tinham sido
corrompidas pelo diabo. Olhou para Bill Elliott e disse saliente:
- Eu
não tenho conhecimento dessas coisas!
Eduardo,
que até então só ouvia e nada dizia, resolveu entrar na querela:
- Ué,
desde quando você é uma pessoa bem informada?
- Me
respeita seu sujeito! Eu vou ao culto todos os domingos!
- Isso
não é informação, e sim, catequização! - Explicou Eduardo ao enfezado Nêgo, que
recusava a admitir qualquer coisa contrária à sua doutrinação. Como ele
insistia em defender as idéias esdrúxulas do seu pastor, Eduardo resolveu
mangar um pouco do garoto. Piscou o olho para os amigos e, abraçando Nêgo de
lado, lhe disse com ar professoral:
-
Estude meu caro rapaz!... Lembre-se que o saber dá asas a liberdade!
A
garotada caiu na gargalhada diante do humorismo repentino de Eduardo, o qual
aproveitou o momento para achincalhar certo desafeto:
- Você
está andando demais com Orlando! Sou obrigado a lhe avisar que
burrice
pega!
-
Desde quando eu ando com aquele sujeito?
- Você
estava torcendo por ele, quando o sacana me desafiou naquela aposta – Disse
Eduardo, ressentido com o garoto.
Diante
daquela acusação, Nêgo ficou calado, pois esteve do lado de Orlando, contra
Eduardo e participou das represálias sofridas pelo garoto. Nêgo se desculpou de
sua falha e quis trazer de volta a discussão, tentando protestar a respeito das
explanações feita por Bill Elliott. Porém, naquele momento, um acontecimento
chamou a atenção dos garotos, que esqueceram a contenda e foram ver o que
estava acontecendo. Uma aglomeração de pessoas começou a se formar em frente da
casa do velho Manequito. Os garotos, pasmados, assistiram o velho e seus
comparsas saírem algemados de sua casa, conduzidos presos pelo delegado Quixadá
e pelos três policiais que o acompanhavam. A casa do velho Manequito estava
abarrotada de objetos roubados, que ia de rádios a bicicletas; de talheres de
prata a eletrodomésticos. A rua estava cheia de curiosos. Todos os moradores da
vizinhança presenciaram o acontecimento e muitos deles aplaudiram a polícia,
enquanto a meninada vaiava e insultava o velho inimigo. Johnny sabia que algo
semelhante iria acontecer, mas não previu a satisfação da maioria das pessoas
presentes àquela ocorrência. Nesse momento o Guarda Martins chamou os meninos e
explicou, nos mínimos detalhes, todo aquele episódio.
A
polícia civil estava na pista de Manequito, desde o dia que o Guarda Martins
denunciou as atividades do velho, ao delegado Quixadá. Não como falsificador de
bebidas, pois isso era corriqueiro e muita gente praticava esse delito na
cidade. Martins descobriu que velho era receptador de furtos, cometidos em toda
a região. As suspeitas do guarda tiveram o seu início, quando ele começou a
implicar com os garotos, por jogar bola em seus quintais. Os meninos pediram ao
guarda para conversar com o velho, o qual se mostrou irredutível. Manequito não
queria testemunhas. Às vezes, no momento em que
ele
recebia os furtos, os meninos estavam, sempre, jogando bola perto do seu
portão. Por isso ele ficava possesso, a ponto de atiçar o seu cachorro na
meninada. Havia bastante tempo que Manequito fornecia mercadorias roubadas, a
lojas desonestas na capital baiana, as quais entravam no comércio legal,
através de notas frias. O Guarda Martins comunicou o fato aos seus colegas
Belmiro, Benigno e Francisco, que ficaram de olho em toda a movimentação da
casa, muitas vezes feita à noite, às escondidas. O grande erro do velho foi
adquirir de dois ladrões juvenis, algumas jóias caríssimas, roubadas de certo
cidadão, morador na Praça da Estação. Esse senhor deu queixa a policia e
incumbiu Martins de investigar o roubo, prometendo uma grande recompensa se o
guarda alcançasse sucesso na empreitada. O Guarda Martins convocou os amigos
Belmiro, Benigno e Francisco Dias de Souza, os quais colaboram na investigação
do roubo das jóias e estava ciente das atividades do velho.
Como o
prêmio era significativo, os guardas não perderam tempo e arregaçaram as
mangas, fazendo uma grande devassa pela cidade. Visitaram os cabarés do
Maracujá, da colina do Barro Preto e todos os pontos suspeitos do Jequiezinho
ao Mandacaru. O guarda Martins resolveu ir ao Bar Caixa D’Água, pois sabia que
a meninada, que jogava sinuca naquele estabelecimento, praticava pequenos
furtos. Comunicou o fato ao dono do bar, o qual apontou dois moleques como
suspeitos. Eram dois desordeiros de quinze anos, conhecidos como Zé Biribano e
Chico Sarará. Martins prendeu os moleques e ameaçou os dois com a palmatória.
Zé Biribano, morrendo de medo, confessou o roubo e apontou Manequito como o
receptou.
Finalmente
o inimigo tinha sido vencido. Os garotos ficaram exultantes em saber que o
velho não iria mais atrapalhar suas recreações e que seus pais não iriam ouvir
os péssimos conselhos daquele hipócrita, que dava ares de homem culto. Alguns
moradores da rua lamentavam o ocorrido, pois Emanuel Quirino de Souza,
conhecido como Seu Manequito, era visto por muita gente, como homem de bem e
temente a Deus. Achavam que o velho tinha sido vítima de alguma intriga e se
recusavam a acreditar que ele havia queimado o clube dos meninos. O guarda
Martins mostrou a todos, os produtos dos furtos e explicou para aquela gente de
boa fé, que a policia havia descoberto o passado do meliante. Manequito era um
malandro e cafetão do Maciel, zona do baixo meretrício de Salvador, o qual
tinha várias passagens pela polícia soteropolitana. Decepcionados com o velho,
seus irmãos em religião ouviram, consternados, os depoimentos de Martins,
Belmiro, Benigno e Francisco. Após o final do relato, o Senhor Gracindo de
Oliveira, pai do jovem Alípio, relembrou um provérbio popular, e disse com
convicção:
-
“Quem ver cara, não vê coração”!
O Sol
estava a pino quando todos se retiraram para suas casas. Era meio dia, à hora
sagrada do almoço. Johnny foi para sua casa, após ouvir o chamado de sua mãe.
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