sábado, 30 de maio de 2020

Os Festejos de Santo Antonio.

J. B. Pessoa


Capítulo - 36 do livro "Guris e Gibi"

Luis Augusto despertou naquela madrugada com o barulho dos fogos, anunciando a alvorada do primeiro dia dos festejos do santo padroeiro de Jequié. Levantou-se e foi até a janela do seu quarto, para ver os foguetes estourando no ar, em torno da torre da igreja matriz, que estava parcialmente envolta no denso nevoeiro daquele frio amanhecer. De sua casa, situada na parte mais alta do Largo do Maringá, no início da Rua Bela Vista, podia observar a saraivada de foguetes que eram soltos na Praça Castro Alves, cujas flechas caiam em todas as direções. Sentiu vontade de voltar para o calor de sua cama; porém, lembrou-se que aquela terça-feira, era o dia da prova de Português, que iria compor o primeiro exame parcial do ano e ele queria revisar todo o assunto estudado na noite anterior. Faltavam poucos dias para terminar o semestre e o garoto aspirava entrar nas férias juninas, gozando o privilegio de estar entre os melhores alunos de sua escola. Após o café da manhã, pegou seus livros e vestiu uma capa impermeável sob a farda escolar, não se esquecendo do guarda-chuva, pois a fina neblina insistia em cair naquela brumosa manhã, e partiu contente para mais um dia de estudos.
A névoa matinal já tinha se dissipado quando o garoto chegou ao seu destino. Porém, a friagem permanecia castigando, principalmente aos estudantes dotados de poucos recursos, que não estavam devidamente agasalhados. O uniforme oficial do colégio dava para suprir o típico inverno da região. Era composto de uma calça comprida e um blusão de brim cáqui, vestido sobre uma camisa branca de mangas compridas, adornada com uma gravata preta. Entretanto não era obrigatório e as crianças pobres, que usavam apenas calças curtas com camisas de mangas, também curtas, penavam sob aquele inesperado frio. A farda das meninas era composta de uma saia com pregas, de cor azul marinho, cujo comprimento era abaixo dos joelhos e ia até o meio das pernas. Variava de tecidos, que ia do mais simples brim até a nobre casimira, conforme o poder aquisitivo de cada uma. Quanto à blusa branca, a mesma regra era aplicada. Havia algumas meninas que usavam cambraias de linho, adornada com gravatas da mesma cor, portando listas azuis que indicava o grau escolar de cada uma. Como o frio era intenso, muitas estavam agasalhadas com grossos capotes grã-finos, enquanto outras sofriam com a brusca temperatura. Luis Augusto encontrou Johnny e Eduardo encostados no tronco de umas das árvores, que existiam em volta do prédio, à espera dos portões serem abertos. O garoto saúda os dois colegas com contentamento e pergunta sobre a disposição deles na tarefa do dia:
- Então pessoal, estão preparados para os exames escolares do semestre?
Eduardo franziu a testa com preocupação, dizendo:
- Mais ou menos! Porém esse negócio de prova é uma questão de sorte. Às vezes um sujeito se mata nos estudos e cai à pequena parte que ele não estudou, ou tem poucos conhecimentos do assunto.
- É por isso que temos de estudar todo o conteúdo para não depender da sorte! Afinal ela não é confiável – Disse Johnny com convicção, que concluiu:
- Minha mãe costuma dizer que a gente estuda é para aprender e não só para exibir boas notas no boletim!
- Concordo com a Tia Nonnita, pois a minha mãe diz a mesma coisa. Por isso perguntei a vocês se estão afinados para a prova de hoje! – Disse Luis, finalizando o assunto. Nesse momento chega Orlando, todo enxovalhado e pergunta com ironia:
- Nessa cidade cai neve?! Cadê o nosso sol de todo o dia?
Eduardo responde, pilheriando:
- Vai ver que ele deu o fora, indignado com o comportamento de algumas pessoas na cidade!
- Como assim sujeito?... Do que é que você está falando?! – Perguntou Orlando, desconfiado de que Eduardo estava querendo caçoar dele.
- Ora essa!... De certos políticos! Afinal esse é um ano de eleições! – Respondeu Eduardo, com um leve sorriso de canto de boca, percebendo que atirou e acertou na mosca. Ele costumava fazer pilhérias com seus desafetos, de uma maneira inteligente, que podia se esquivar no momento preciso. Luis Augusto notando a intenção do amigo em chatear o outro e ciente do antagonismo entre eles, tratou de mudar o assunto dizendo:
- Realmente, o frio está de doer! Em Salvador, a temperatura nessa época é mais amena.
Eduardo, querendo demonstrar conhecimento do assunto, disse para o amigo:
- Meu camarada: se você quiser conhecer o frio, eu sugiro que vá a Vitória da Conquista! Lá sim, que o frio é de lascar!
- Não é preciso ir tão longe! – Disse Johnny, que completou:
- Em Itiruçu, minha terra, faz tanto frio quanto Conquista, e em Jaguarquara também, principalmente em Maracás!
Orlando olhou para os amigos com ar esnobe e disse desdenhando deles:
- É por isso que vou passar as minhas férias no calor do Rio!
Eduardo, não conseguindo conter a sua perplexidade com aquela afirmação, pois passar férias no Rio de Janeiro era privilégio de poucos, perguntou sorridente:
- Rio?!... Que Rio?... Rio das Cobras?!
- Me respeita seu sujeito, que eu não sou tabaréu como você! – Respondeu Orlando, indignado com a pretensão do colega em arreliá-lo.
Eduardo olhou para Orlando e, fingindo não estar entendendo a sua suscetibilidade, inventou uma estória no momento:
- O único lugar do país, que poderá estar fazendo calor nesse instante é o Riacho das Cobras, na caatinga do Ceará! Porém, se você estiver se referindo a Capital Federal, fique sabendo que hoje cedo, a Rádio Nacional noticiou que, a temperatura da cidade estava em torno de doze graus.
- Isso é verdade! O Rio de Janeiro faz muito frio no inverno! – Explicou Luis Augusto para Orlando, dizendo a seguir:
- Nessa época as praias ficam desertas, pois o frio é de matar!
Nesse momento bate o sino da escola e os portões são abertos. A garotada entra na maior algazarra, protestando com a demora, e acusa as serventes de fazerem pouco caso de suas necessidades. A seguir vão se reunir em um dos pátios internos para
fazerem suas orações e cantar os hinos cívicos. Logo após a rotineira cerimônia, cada classe segue para sua sala de aula, começando assim, uma nova jornada escolar.
Todos os anos havia os exames parciais em junho e os finais em novembro, que somada à média de curso determinaria a nota final do aluno. Naquela manhã haveria a prova escrita de Língua Pátria, ficando as outras matérias para os dias seguintes. Após as provas escritas os alunos se submeteriam a uma banca examinadora para as provas orais.
A professora Emilia entrou na sala de aula acompanhada da secretária escolar Alíria Argolo, determinando as regras a serem cumpridas. Desejou boa sorte a todos, alertando a garotada da necessidade de uma postura honesta, ameaçando a classe de punição, caso não acatasse as normas determinadas pela inspetora municipal de educação.
Após o ditado oral de um texto, seguido da redação de uma carta e de outra redação, descrevendo sobre a visão que cada um tinha de sua escola, a professora Emilia escreveu no quadro negro as questões de Gramática, para os alunos copiar e responder em um papel especial. Os garotos meditaram sobre os quesitos e puseram as mãos em obras, tentando um melhor desempenho possível. Orlando, como sempre, aproximou-se de Johnny, pedindo ajuda em certas questões. O garoto o auxiliou discretamente, burlando a vigilância da mestra. Luis Augusto e Eduardo não tiveram dificuldades em resolver os assuntos caídos na prova e no horário do recreio cantavam suas vitórias.
As férias juninas se iniciariam depois dos festejos de Santo Antonio e terminariam na primeira semana do mês de julho. A tradição do Castro Alves era comemorar o São João com uma grande festa no último dia de aula. Como sempre, haveria o concurso de quadrilhas e muita comida típica da região. Por isso, no segundo período do turno matutino, depois do recreio, a meninada se dedicava na composição dos artefatos que iriam decorar o evento daquele ano. A classe da professora Emília era mista e nessas semanas a garotada aproveitava a oportunidade para estreitar o laço de amizade com as meninas. Era a fase dos amores platônicos, inesquecíveis para muitos, que seriam relembrados com doces saudades, em dias vindouros. Nesse ano haveria a encenação de uma pequena comédia, baseada numa cantiga junina. Tratava-se de uma canção interpretada por Dalva de Oliveira, intitulada Pedro, Antonio e João, a qual foi adaptada pela professora Mary Rabello. Johnny foi convidado para um dos papeis, mas recusou devido à sua timidez. Luis Augusto fez o mesmo, porém por motivo diferente. Ele esperava encontrar Berenice na tarde programada para o dia da festa e queria estar disponível naquele momento, sem nenhuma obrigação a cumprir. O papel do pai da noiva foi aceito por um garoto que tinha experiência, pois atuava sempre nas peças juvenis da casa paroquial. O noivo seria interpretado por Orlando, que estava de olho numa menina branquinha de cabelos aloirados e olhos verdes, chamada Luiza, a qual seria a noiva. A garota tinha doze anos e era muito bonita. Ela convidou Eduardo para viver o Pedro naquela encenação. O garoto aceitou imediatamente aquele simpático pedido, ficando surpreso e feliz com a escolha de sua pessoa pela bela menina. Orlando, que não tinha o menor conhecimento do enredo, quando soube que a personagem Pedro fugia com a noiva, caiu fora na hora e não quis saber da peça. Ele não queria, nem no faz-de-conta, Eduardo tripudiar dele.
A professora Mary Rabello riu a valer diante da justificativa do rapaz e balançando a cabeça, pasmada com tanta asneira, tratou logo de escolher outro aluno para o papel de Antonio. Não teve dificuldades, pois toda a meninada queria tomar parte em numa atividade, que dava prestígio e popularidade na escola para quem participasse. Um garoto de outra classe, quando soube da desistência de Orlando, se candidatou e foi o escolhido, pois pertencia a cruzada juvenil da casa paroquial e também havia participado de outras montagens teatrais.
O segundo período daquela manhã escolar transcorreu na mais completa harmonia, com a meninada trabalhando em equipes, caprichando para desenvolver uma decoração, que superasse a dos anos anteriores. Enquanto a turma do teatro foi ensaiar a peça na biblioteca da escola, Luis Augusto e Johnny foram ajudar as meninas na confecção de balões e bandeirolas. Orlando ficou todo o tempo sozinho, amuado em um canto, com ar de preocupação, não querendo participar de nada. Luis Augusto, notando aquilo, alertou para Johnny:
- O que será que nosso camarada está aprontando?
- Eu não tenho certeza, mas acho que ele está com ciúmes!
- Ciúmes?!... Ué, de quem?
Johnny chamou o seu primo à parte e cochichou no seu ouvido:
- Você não notou que ele está interessado na menina que vai fazer o papel da noiva?
- Eu não percebi isso! E daí?
- Hoje pela manhã, encontrei Neide e Edgar e os dois me disseram que a garota é apaixonada por Eduardo!
- Será que isso é verdade? – Perguntou Luis Augusto bastante interessado no assunto, vendo naquela notícia uma possibilidade de se livrar do seu rival, na conquista de Berenice. Johnny, que costumava observar as coisas em seus pequenos detalhes, respondeu:
- Isso eu não sei, mas notei que Eduardo ficou muito empolgado com a menina e Orlando não está gostando disso!
Luis Augusto sorriu e comentou satisfeito:
- Tomara que isso seja verdade, pois só assim me livro dos dois, que me importunam a todo o momento!
- Com certeza, mas a antipatia entre eles vai aumentar consideravelmente! – Afirmou Johnny, preocupado com a nova realidade das coisas; prevendo que em pouco tempo, grandes rusgas iriam acontecer com os garotos.
A meninada continuava contente em seus afazeres, enquanto lá fora, a fria e fina chuva iniciada pela madrugada, caía constantemente, insistindo em não dar tréguas às pessoas que transitavam pelo centro da cidade. Johnny foi até a janela da sala de aula e ficou observando o vai e vem daquele povo, que não estava acostumado com aquele frio, notando que todos estavam agasalhados com seus capotes ou portando capas e guarda-chuvas. O garoto ficou admirado pelo nevoeiro incomum, que voltou a aparecer, dando uma fisionomia diferente a Jequié, e permaneceu um bom tempo na janela, tentando obter uma visão panorâmica da zona leste. Verificou que a névoa encobria todo o Jequiezinho e os morros adjacentes, além de dar às praças e ruas centrais um
colorido diferente. Achou aquela singularidade atraente, parecendo cidades que ele via em filmes policiais. A sua fértil imaginação começou a criar cenas que envolviam alguns dos heróis do cinema, castigando alguns notórios meliantes da cidade e capturando o famoso pegador de meninos. Ficou absorto em suas fantasias por alguns minutos, quando o barulho dos foguetes o trouxe de volta à plausível realidade. Naquele momento outras saraivadas de foguetes anunciavam o primeiro meio dia dos festejos de Santo Antonio.
O sino da escola começou a tocar anunciando o final de mais um turno letivo. A professora Emília pediu que seus alunos guardassem os artefatos confeccionados, por todos, com muito cuidado, pedindo para deixar na secretaria; pois no turno vespertino, aquela sala seria de outra classe de crianças, que estavam no segundo ano primário. Todos os alunos das diversas salas saíram em filas de dois, com os menores à frente, numa disciplina sem igual, que dava fama àquela escola, fazendo com que todos os pais desejassem que seus filhos estudassem no Grupo Escolar Castro Alves.

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