sábado, 23 de maio de 2020

As novenas,


J. B. Pessoa

Capítulo - 35 do livro "Guris e Gibi"

O mês de maio é o mês de Maria.
Esta frase, que tem sabor de poesia, era ouvida constantemente durante as novenas dedicadas a Nossa Senhora, pelas vozes juvenis do coral da Paróquia de Santo Antonio. As noites são belas, cheias de luzes, parecendo estar sendo prestigiadas com a doce presença da Mãe de Jesus. Era o que dizia o padre Climério, tendo a sua fé confirmada pelas demais senhoras, que compareciam todas as noites na igreja matriz, para o ato religioso.
Durante todo o mês, logo após o jantar, muitos jovens apareciam na igreja, formando um verdadeiro encontro social. Enquanto alguns, contritos na sua devoção, rezavam em companhia das suas famílias, outros surgiam apenas para rever amigos ou simplesmente ouvir as novas intrigas politiqueiras, daquele ano de eleições. Trajando seus melhores ternos, os jovens ficavam sempre passeando pelo pátio ou estacionados nas laterais da igreja, observando as moças casadoiras, sob a eterna vigilância das mães e avós. A garotada também comparecia à igreja nas noites de novenas. Não com a intenção de rezar, pois os objetivos eram semelhantes aos dos rapazes; mas para ver as meninas e reencontrar os amigos de outras escolas, marcando suas peladas no areão do rio ou ficar sabendo dos acontecimentos diários do seu mundo juvenil.
Usando o pretexto de acompanhar a sua mãe, Orlando comparecia todas as noites à igreja matriz, onde se encontrava com Eduardo, Edgar, Luis e Johnny, na companhia de grande parte da costumeira garotada jequieense; alguns dos quais, faziam parte da cruzada paroquial. Edgar deixou claro que, a suas repentinas idas à igreja era devido o seu namoro com Neide. Para a garotada em geral, o motivo dessa constante devoção era o coro juvenil da igreja, onde a bela pianista Celina Lopes acompanhava ao órgão a fascinante Berenice Spencer e as demais maravilhosas meninas daquele coral.
Em uma bela noite de domingo, quando se comemorava o Dia das Mães, os garotos se encontraram em um dos pátios laterais da igreja, próximos à porta que dava visão para o coral das meninas. Orlando era o mais animado. Apesar da rígida descompostura sofrida de Berenice, ele continuava petulante em relação a Eduardo. Agora na certeza de que a sua irmã de leite, jamais daria confiança àquele metido a conquistador, ele poderia tratá-lo com menosprezo. Pensando assim, passou a limitar, não só a Eduardo, mas toda a turma com certo esnobismo, bajulando apenas a Luis Augusto, a quem respeitava, por acreditar que teria algumas vantagens nisso. A turma estava estacionada naquele local, por um bom tempo, proseando sobre diversos assuntos, quando apareceu Bill Elliott com alguns garotos do centro e a conversa descambou para o futebol, devido ao fato da copa do mundo estar prestes a ser realizada.
Os garotos estavam entusiasmados. O otimismo dos comentaristas das principais emissoras de rádio primava pelo ufanismo, contagiando com seus prenúncios a eufórica torcida brasileira, convencendo a todos, de que o Brasil seria campeão do mundo naquele ano. Johnny ouvia a opinião de todos sem emitir a sua, pois entendia
pouco de futebol. Enquanto os meninos aderiam ao contentamento reinante entre a maioria dos torcedores, Eduardo parecia acabrunhado, não vendo com bons olhos, aquela prematura comemoração. Bill Elliott notando o amigo taciturno, quieto em seu canto, perguntou:
- O que está acontecendo com você, meu camarada? Até agora não ouvimos nenhum comentário seu a respeito da copa do mundo!
O garoto olhou para todos e disse com certa preocupação:
- É que todo mundo está comemorando antecipadamente uma vitória que, com toda certeza, vai ser difícil de ser ganha pelo Brasil!
- Por que você diz isso? – Perguntou Edgar, que sempre acatava a opinião do amigo, quando o assunto era futebol.
- Ora!... Ele quer agourar a nossa sorte esse ano! – Afirmou Orlando com desdém.
- Não se trata disso! – Protestou o garoto com convicção, que discerniu no momento, o seu ponto de vista:
- Vocês se lembram da última copa?! Que decepção não foi? E olha que ela foi realizada aqui mesmo no Brasil, com todas as chances de ser ganha pela Seleção Brasileira, deixando a taça com a gente por quatro anos!
É verdade! Segundo meu pai os jogadores pecaram pelo excesso de otimismo! – Disse Luis Augusto corroborando com a opinião do amigo.
Aquela afirmação caiu como um balde de água fria na conversa da garotada, que estava quente pelo exagero dos prognósticos. Os garotos ficaram pensativos, temendo a possibilidade de repetir a derrota anterior. Na verdade, a preocupação de Eduardo estava baseada no fraco desempenho da Seleção Brasileira no Campeonato Sul-Americano, realizado um ano atrás em Lima, capital do Peru, no qual o Paraguai foi campeão, ficando o Brasil em segundo lugar; e também pelo fato de, apesar de ter saído invicto das eliminatórias, as vitórias vieram com algumas dificuldades, deixando apreensiva a torcida mais realista do país. Nesse momento o coral começa a cantar uma bela cantiga, homenageado as mães e exaltando a Mãe de Jesus. Imediatamente, a atenção dos garotos volta-se para as meninas, esquecendo momentaneamente do assunto que era freqüente em todos os cantos do território nacional. A garotada e todas as pessoas presentes no recinto ficaram fascinadas com a suavidade daquela majestosa polifonia, executada com brilho pelas meninas do coral. Logo após o ato musical, um seminarista dissertou sobre a sublimidade feminina, no papel de ser mãe e da sua árdua missão no desenvolvimento de uma sociedade moralmente conscienciosa.
A novena daquele domingo demorou mais do que nos dias comuns. Os fieis estavam saindo da igreja, quando a sirene do Cine Bonfim apitava o seu último chamado, deixando apressado o pessoal que queria assistir às sessões dos dois cinemas. Edgar avistou Neide na companhia de sua mãe, que acenou para ele, convidando-o para estar consigo. O garoto despediu-se dos amigos e foi ao encontro da namorada. Johnny foi se despedir de sua mãe e irmã, que foram para casa e, acompanhado de Luis, Eduardo e Orlando ficaram na escadaria da Igreja esperando pelas meninas, que logo depois aparecem, despejando alegrias naquela noite enluarada.
Berenice e Eva Marli resolveram passar pela porta do Cine Bonfim para ver os cartazes de um filme romântico, que estava sendo muito comentado na cidade. Orlando torceu o nariz e fez careta, com a simples menção do título do filme. Tratava-se do melodrama mexicano “A Mulher sem Lágrimas” com a atriz Libertad Lamarque, que também fazia muito sucesso como cantora. Berenice, que gostava muito daquela artista argentina e possuía alguns discos seus, lamentou:
- Que pena a gente não ter idade para as sessões da noite!
Eduardo aproveitou o momento para entrar nas graças da menina, dizendo:
- Estou muito chateado com isso, pois eu também pretendia ver essa fita!
- Ué, você gosta de filmes de amor? – Pergunta Eva Marli, surpresa com a afirmação do garoto naquele momento.
Eduardo sorriu satisfeito, dizendo sem o menor pejo:
- Não perco um! Principalmente os de Libertad Lamarque! Vocês não se lembram de que as conhecemos após o final da matinê, onde assistimos ao filme “O Direito de Nascer”?
- Ah sim, é verdade! – Disse a garota, recordando-se da tarde em que fez amizade com os meninos.
Indignado com a mentira de Eduardo, Orlando vira-se para Johnny e lhe diz ao pé do ouvido:
- Olha aí, o otário se entregando, dando uma de maricão!
Luis Augusto, percebendo a esperteza do amigo, contra-ataca:
- É uma excelente película! Se você quiser, a gente pode assistir na matinê de terça-feira!
- Você tem certeza que o filme será exibido nessa tarde? – Perguntou a menina, contente com aquela possibilidade.
- Com toda a certeza! Nas terças-feiras, os dois cinemas exibem em suas matinês, os filmes que passam no domingo em soirée. – Afirmou Luis, sentindo que aquela era a sua chance de ficar a sós com a garota.
Notando a estratégia do garoto para ficar com Berenice, Eva Marli diz para a amiga:
- Nós temos banca de estudos marcados na terça-feira à tarde!
- Puxa a vida! Eu tinha me esquecido disso! – Disse a garota percebendo a ardileza da amiga. Ela queria realmente assistir o filme, porém na companhia do seu namorado.
Luis Augusto sorriu com discernimento e disse com gentileza:
- É uma pena! Fica para outra ocasião. Afinal, “primeiro a obrigação e depois a devoção”!
A turma ficou por um momento em silêncio, olhando a programação da semana. De repente Johnny se lembrou de um pequeno detalhe. Chamando as meninas em particular, afirmou que um menor de quinze anos e maior de dez, podia entrar no cinema à noite, se estiver acompanhado por um adulto responsável. A seguir assegurou para as garotas:
- Se vocês quiserem assistir o filme agora à noite, eu mando chamar meu pai, que é comissário de menores e ele põe vocês duas para dentro do cinema, sem pagar nada!
- Você faria isso para gente? - Perguntou a garota, alegre com a novidade.
- Claro que sim! Você entra com Eva Marli e eu vou com Orlando avisar seus pais, para que eles não fiquem preocupados com a demora de vocês.
A garota adorou a idéia e sua amiga também. Naquele momento as luzes da sala de projeção estavam sendo apagadas e se ouvia a música de abertura, que era o tema daquele cinema. Johnny conversou com seu pai e o Senhor Miguel fez entrar no cinema, não só as meninas, mas toda a turma; só ficando de fora Orlando, que foi incumbido por Berenice de avisar a sua família e a da amiga, que elas chegariam mais tarde em casa e providenciar o transporte para elas.
Orlando se despediu das meninas e saiu do cinema bufando de raiva. A simples idéia de deixar as garotas na companhia daqueles metidos a bacanas doía-lhe os nervos. - “Bando de mariquinhas! Onde já se viu um homem de verdade, gostar de uma porcaria daquelas?” - Pensava e perguntava a si mesmo a todo o momento. Sentiu vontade de ir para casa, não dando recado algum. Porém, se tratava de Berenice e ele não queria perder as boas graças da menina. Restava-lhe agora tirar partido da situação e se apresentar como um bom rapaz, amigo daquelas distintas famílias.
Quando o pessoal saiu do cinema, logo após o final do filme, encontrou o velho Xavier e o cadilac de prontidão. Berenice fez questão de conduzir todo mundo até as suas residências. Levou em primeiro lugar a sua amiga; a seguir despachou Eduardo e Luis em suas casas, deixando por último Johnny e seu pai. A garota aproveitou a oportunidade para agradecer ao comissário de menores pela gentileza e tecer elogios ao seu filho. O Senhor Miguel ficou adorando a menina, congratulando a mesma pela sua esmerada educação. Depois das despedidas, Berenice entrou no carro e seguiu pela rua, em direção ao centro da cidade.

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