domingo, 10 de maio de 2020

A queima do Judas.

J. B. Pessoa


Capítulo - 33 do livro "Guris e Gibi"

O relógio da matriz anunciava às vinte horas, quando Johnny e Luis encontraram a turma da Siqueira Campos na porta do cinema. A missa estava sendo finalizada naquele momento, despejando na praça uma multidão de pessoas, que saíam da igreja para ver a Queima do Judas. Era noite de lua cheia, e a luz esplendorosa do astro derramava seus raios prateados sobre aquela cidade, que comemorava suas tradições com vigor e entusiasmo. A banda filarmônica Amantes da Lira marchava com garbo, tocando suas polcas e dobrados com pertinência, indo em direção à Praça Ruy Barbosa, sendo acompanhados pela vibrante molecada, que viam com alegria, todo aquele movimento. Mamãe Eu Quero, abismado com o número de garotos que incentivava a banda, chacoteou com alegria:
- Cuidado pessoal, que lá vem a furiosa!
Johnny e Luis despediram-se da turma, que seguiu a delirante meninada atrás da banda. Os garotos ficaram esperando Eduardo, sentados na escadaria do Prédio Castro Alves, aproveitando a ocasião para admirar os foguetes que estouravam suas bombas ao ar. A igreja permaneceu aberta, com muitos fieis fazendo a vigília até a meia noite, quando então começaria a procissão noturna do Sábado de Aleluia, que terminaria no amanhecer do Domingo de Páscoa. Pouco depois, o garoto aparece numa elegância impar, trajando a sua melhor roupa e ostentando um belo casaco de casimira, que ganhou de sua madrinha no último Natal. Johnny notando o seu trejeito de galã, disse sorrindo:
- Puxa meu camarada, desta vez você botou pra quebrar! Bonito assim você pode conquistar a princesa que quiser.
- A gente faz o que pode! – Respondeu Eduardo com alegria e, numa mímica engraçada, compondo uma inexistente gravata, acrescentou:
- Quem pode, pode! Quem não pode se sacode! Porém a mim só interessa uma princesa especial!
- Você e algumas dúzias de garotos da cidade! – Observou Luis, sabendo que teria naquela noite uma marcação cerrada do rival.
Eduardo sorriu com desdém e não fez nenhum comentário. Johnny aproveitou a animação dos amigos, para tecer-lhes elogios:
- Os dois estão muito lordes hoje à noite e a praça está cheia de meninas bonitas!
Luis ergueu o peito e exclamou com bazofia:
- Como dizia o grande Castro Alves: “Senhores pais de famílias! Prendam suas donzelas, que o poeta está solto!”
Johnny, admirado com a citação, perguntou curioso:
- Ué!... Castro Alves dizia isso?!
- Não sei se ele dizia ou não! Porém é o que afirmam os boêmios baianos!
Johnny notou que os dois amigos estavam realmente bem vestidos, com roupas novas e caras, enquanto ele vestia uma simples calça de brim cáqui e uma camisa branca de algodão, com o corriqueiro cinto e sapatos do dia a dia. Sentiu um pouco de tristeza
por não poder ostentar uma elegância mais convincente. Mas, apesar dos trajes modestos, sabia que estava decentemente vestido, e não havia motivo algum de se envergonhar de sua postura. Antes de partir para a Praça Ruy Barbosa, os garotos resolveram ir até as portas dos dois cinemas, para conferir os filmes em cartaz, pois seriam os mesmos a serem oferecidos à garotada na matinê do dia seguinte. Aos sábados à noite apresentavam sempre os filmes faroestes B, preto & branco, acompanhados dos irresistíveis seriados. A grande surpresa ficou por conta do Cine Teatro Jequié que, pela primeira vez na cidade, apresentava um filme a cores do famoso cowboy Roy Rogers.
Os garotos seguiram para a praça, que naquele momento estava cheia de jovens passeando pelo seu belo jardim. A juventude se concentrava na Confeitaria Cristal tomando sorvete e refrigerantes, à espera do baile do Jequié Tênis Clube, cujo início seria às vinte e três horas. Enquanto isso, os beberrões, na maioria jovens estudantes da capital, faziam algazarras, na porta do Bar Joly.
Luis estava animado com aquela festança. Não sabia que o Sábado de Aleluia fosse tão divertido assim, com tanta gente alegre na praça, para ver a Queima do Judas. Admirado com a sua surpresa do amigo, Eduardo esclareceu:
- O Sábado de Aleluia é sempre animado. Mas, em geral, a animação das festas num ano de eleições, fica por conta dos políticos.
- Com assim? Eu não entendi!
- Por exemplo: são eles que financiam a compra dos Judas, pagam os músicos da banda, farras para os estudantes e boêmios, etc., etc., etc.
- Ah, sim! Isso eu percebi. Desde o começo do ano, a gente vê as propagandas deles nas faixas penduradas nos postes.
Johnny se lembrou de que as meninas comentaram a respeito de um candidato a vereador, que ia ofertar fogos para a garotada soltar. Foi com os amigos conferir a veracidade da notícia; porém, chagaram atrasados. O candidato distribuiu algumas dúzias de foguetes e várias caixas de pistolão de três bombas, mas somente para os maiores de dezoito anos, deixando a garotada de fora, que protestava em vão pela discriminação. Luis Augusto louvou aquela atitude, pois tinha conhecimentos de graves acidentes relacionados com a queima de fogos, principalmente com crianças e adolescentes.
Os garotos ficaram um bom tempo passeando pelo jardim. Era mês de abril e um vento frio soprava levemente, anunciando um inverno precoce a ser começado em pleno outono. Geralmente nessa época do ano faz calor, pois a cidade está situada no vale do Rio das Contas, numa depressão relativa à maioria das cidades vizinhas. As terras do município se distribuem entre duas zonas fisiológicas, abrangendo paisagens diferentes e até opostas, como clima e vegetação. A cidade está situada na caatinga com clima semiúmido de altitude, que aparece no planalto sul baiano; com duas estações, uma seca e outra chuvosa, tendo uma temperatura média de vinte a trinta graus no outono. Naquele momento o frio começou a baixar, deixando Johnny um pouco incomodado, pois não estava adequadamente agasalhado. A súbita queda no termômetro é comum na cidade, que mesmo no verão oscilava com dias calorentos e noites amenas. Os meninos resolveram ir até a pista de patins, onde a banda filarmônica se estacionou, executando
músicas folclóricas, regida pelo maestro Abel, que animava uma multidão à espera da Queima do Judas.
No instante em que os meninos retiravam-se daquela agitação, Eduardo divisou Berenice e Eva Marli, sentadas em um banco, bem no centro do jardim. Os garotos se apressaram indo ao encontro delas, que estavam na companhia de Orlando, Edgar e Neide, juntamente com Norma e algumas meninas da Rua Santa Luzia, que tinham vindo ver a Malhação do Judas e mais tarde acompanhar a procissão da aleluia.
Eva Marli quando viu os garotos se aproximando, disse fingindo indignação:
- Como é que os senhores têm coragem de deixar duas senhoritas esperando, sem dar a menor satisfação de suas demoras, seus marotos?
Johnny respondeu sorrindo para as meninas:
- A gente estava procurando por vocês em toda a praça e aproveitamos para ver a banda tocar, ali na pista de patins!
Eva fez um ar de surpresa e disse para as garotas:
- Vocês estão vendo meninas?!... Temos menos importância para eles do que uma simples banda furiosa!
- Não para mim! – Disse Eduardo, que acrescentou:
- Fui eu quem viu vocês sentadas aqui e imediatamente corri para cá!
- Nós todos corremos! – Corrigiu Luis.
Eduardo aproveitando o ensejo da menina, disse em tom garboso:
- A demora é o alimento da saudade!
Orlando olhou para Eduardo com desconsideração e, usando uma frase feita, lida numa revista qualquer, disse em tom de zombaria:
- A lisonja é o alimento dos tolos!
Querendo inibir Orlando nas suas pretensões em ofendê-lo, Eduardo proferiu zangado:
- A falta de apreço aos amigos é uma estupidez qualificada!
Chateado com os impropérios de Orlando, Edgar comenta com Neide e Norma:
- Esse nosso camarada apanha e não aprende!
Berenice ouve o comentário do garoto e percebendo a animosidade que estava surgindo naquele momento, indaga aos amigos:
- Vocês têm motivos para alguma hostilidade uns com os outros?!
Não contendo uma indignação que há muito tempo lhe corroia, Eduardo desabafa:
- Orlando acha que não merecemos a amizade de vocês!
Neide, que estava ciente de tudo, explicou:
- Esse sujeito nos considera plebeus; indignos da afeição de duas nobres como vocês e joga isso na cara dos meninos, constantemente!
- Mas isso é um absurdo! De onde você tirou essa ideia, Orlando? – Perguntou a menina, melindrada com a atitude do rapaz.
Orlando pigarreou surpreso com o que estava ocorrendo e, sem encontrar uma explicação convincente, ficou calado por uns instantes. Depois, percebendo que a sua vileza tinha vindo à tona, tentou reverter à situação.
- Eu fiz isso para lhe proteger dos abusados a mando de seu pai!
Eva Marli não tinha muito apreço a Orlando. Achava o rapaz petulante e a sua amizade com ele, era basicamente devido ao carinho da amiga. Aproveitando a onda de lances do momento, perguntou em tom de deboche:
- Alguém da minha família deu a você o direito de falar por mim?
- Claro que não! Mas você e Berenice são amigas e há muitos pilantras na cidade iguais a Marcelo Peru, que anda rondando vocês!
- Bom isso é verdade! Porém esse fato não lhe dá o direito de destratar os meus amigos. Por isso tome termos ou ponho fim a minha amizade com você. – Disse Berenice, visivelmente aborrecida com o rapaz.
Eva Marli aproveitou o ensejo da ocasião, proferindo:
- Assino embaixo da determinação de minha amiga!
Eduardo estava adorando os expurgos sofridos pelo rapaz. A turma permanecia em silêncio, enquanto ocorria aquela compostura, que trazia satisfação aos olhos de todos os presentes. Orlando percebendo o sorriso irônico estampado no rosto de Eduardo, não conteve a sua irritação e disse para Berenice, proferindo numa zanga pueril.
- Eduardo anda dizendo pra todo o mundo, que quer e vai namorar com você!
- Querer não é sempre poder! Além disso, esse é um problema que diz respeito a minha pessoa.
Bastante irritada diante da ousadia de Orlando, ela perguntou:
- Afinal de contas, que negócio é esse de nobres e plebeus?
- O que eu quis dizer é que você é uma moça de família!
- Ué, Eduardo e os meninos não são também de família?
- Claro que são, mas é diferente!
- Diferente em que? Podemos saber?!
- Ora, você sabe!
- Não sei de nada! Esclareça a minha ignorância!
Nesse momento Luis Augusto interferiu na discussão e explanou a Berenice, tudo que aconteceu no final das tertúlias, no dia que em eles conheceram as meninas. Berenice ouviu as queixas de Edgar e Eduardo, no tocante às suas pessoas, depois virou para Orlando e disse calmamente:
- Depois eu acerto essas coisas com você! Mas agora, vá se embora que eu não quero lhe ver, nem pintado de ouro!
Orlando saiu cabisbaixo sem se despedir de ninguém. Em seguida Berenice, virando-se para toda a turma, esclareceu a situação:
Devo dizer pra vocês que tenho um pouco de culpa nesse equívoco. Algum tempo atrás eu era importunada por um cara chato, toda a vez em que ia a matinê. Aí então eu pedi pra Orlando dizer a todo mundo que eu era sua namorada! Não sabia que ele havia abusado da confiança que lhe dei.
Eduardo aproveitou a ocorrência para tecer elogios à menina, e se justificar de suas pretensões, dizendo:
- É do conhecimento de todos que você é considerada a menina mais bonita da cidade e que a maioria da garotada anseia namorar você. Eu jamais disse a alguém as
minhas aspirações. Orlando chegou a essa conclusão devido ao apreço que tenho à sua pessoa.
Berenice querendo por um fim ao assédio dos meninos, disse gentilmente:
- Agradeço os elogios, embora não concorde com eles. Digo apenas que não quero namorar ninguém! Gosto de todos como amigos e espero assim ser tratada, pois acho que sou muito nova para pensar em namoro.
- É isso aí menina! Vamos viver a nossa vida e ir pra frente, porque muitas águas ainda irão rolar! Não se preocupe com essas coisas que, no tempo certo, o cupido irá flechar seu coração! – Profetizou Norma, que presenciou todo o drama sem dar opinião.
Concordo com você garota! Mas pelo sim ou pelo não, revesti meu coração com um colete invisível, para nenhum cupido malandro me passar à perna! - Disse Eva Marli com um sorriso brejeiro no rosto.
Todos riram do gracejo da menina e trataram de reverter o constrangimento, provocado pelo inesperado episódio. Os jovens ficaram, ainda, por um bom tempo papeando, e foram sentar em um banco, bem em frente à confeitaria. Norma observava a elegância dos rapazes em seus trajes completos, esperando o início da festa e, lamentando não ter idade para aquele evento, disse num profundo suspiro:
- Que pena!... Esta festa vai marcar época!
Johnny estava em pé junto a Neide e Edgar, que recostados no tronco de uma árvore, pareciam estar fora do mundo. Berenice se aproxima do garoto e pergunta delicadamente:
- Johnny, você pode me acompanhar até a farmácia?
- Estou ao seu dispor! – Disse o garoto sorrindo.
Os dois jovens saíram juntos, conversando animadamente, deixando Eduardo intrigado, que comenta com despeito:
- Vocês repararam como Berenice prefere sempre a companhia de Johnny?
Norma vira para Eduardo e pergunta paulatinamente:
- Não será porque o menino não a aborrece com galanteios despropositados?
Eva Marli concorda com a garota e Luis, taciturno em seu canto, prefere não fazer nenhum comentário.
A única farmácia aberta naquela noite ficava um pouco distante da praça, em uma parte da avenida, perto do Ginásio de Jequié. Berenice astuciou aquela ideia para ficar sozinha com Johnny, dando para a turma uma desculpa, que lhe parecia mais convincente. Johnny e Berenice foram se sentar na escadaria do Prédio Castro Alves, no lado movimentado da praça, que dava acesso à igreja. Os dois ficaram juntinhos um do outro, trocando olhares de ternura. A menina, de mãos dadas a ele, segredou-lhe ao ouvido:
- Sabia que você é o meu primeiro namorado?
Johnny resolveu caçoar um pouco a garota, dizendo a sorrir:
- Claro que sei, pois Orlando me contou!
- Orlando?!... Como assim?
- Quando ele me disse que você nunca teve nenhum namorado, sua bobinha!
- Ah sim! E você? Já namorou alguma menina?
- Johnny se lembrou do domingo de carnaval que passou na companhia da encantadora Vera Olivia. Porém, o termo namoro não foi usado e não houve nenhuma declaração nesse sentido. Além disso, não sentiu a mesma afeição e devoção que sentia por Berenice. Resolvendo brincar, um pouco mais, com a menina, procurou responder à sua pergunta, tentando esconder um sorriso que teimava em aparecer:
- Pouquíssimas! Apenas meia dúzia!
A menina se afastou dele, colocando as mãos na cintura e, arregalando os olhos, fingindo indignação, disse sorrindo:
- O que?!... Quer dizer que você é um Don Juan?! Se eu sonhar que você anda me traindo com outra, eu lhe enforco, seu maroto!
Johnny riu bastante da brincadeira e os dois ficaram, por um bom tempo, falando um do outro e de suas aspirações, que esqueceram o tempo passar. De repente uma saraivada de foguetes estourava no ar, na direção da Praça Ruy Barbosa. Os jovens namorados concluíram então, que a queima do Judas ia começar e se apressaram em ir ao encontro dos amigos, que os esperavam em frente da confeitaria. No trajeto de volta, Johnny assegura a menina, um tanto preocupado:
- A turma vai estranhar a nossa demora!
- Não se preocupe com isso! – Disse a menina sorrindo.
Desconfiada do motivo daquela demora, Neide questiona, maliciosamente, os dois jovens ao chegarem apressados. Berenice tirou de sua bolsa um pequeno pacote, comprado antecipadamente, e disse sorrindo para todos:
- Eu fui comprar uns comprimidos de Cibalena para minha velha babá, mas a farmácia estava entupida de gente, com um só caixeiro para atender!
Luís e Eduardo entreolharam-se desconfiados e ficaram calados. Após alguns segundos de pilhérias entre eles, a turma seguiu em direção do local onde estava armado o Judas, se posicionando um pouco distante, debaixo de uma árvore, na espera da folclórica malhação. A Queima do Judas é uma tradição católica, que foi introduzida no Brasil pelos portugueses, simbolizando a morte do traidor de Jesus Cristo. Era um boneco bem grande, confeccionado por um famoso fogueteiro, que era o melhor artesão de fogos de artifícios da região. Estava no alto de um grande poste de madeira em cima de uma roda, parecendo que ria das pessoas, pois tinha a aparência, um tanto descaracterizada de um Alerquin.
Antes de ser queimado, aquele Judas da Praça Ruy Barbosa foi julgado e condenado como traidor da cidade, personificado em um eleitor que vendeu o seu voto. A justificativa para isso é que o Nordeste Brasileiro tinha a triste fama de acolher muitos eleitores, sem o menor sentimento cívico de justiça e democracia. Antes de ser queimado, um candidato a vereador tirou do bolso do condenado, um pedaço de papel e revela que aquele é o testamento do Judas. Em seguida lê para a hilariante multidão o seu legado, o qual deixava coisas boas para o grupo político que tinha patrocinado a festa e as coisas más ou comprometedoras para a oposição. Todos riam das piadas, pois o humor daquele folclore primava pelo bom gosto e decência, características de uma cidade ordeira. Em seguida o Judas é queimado. Porém antes, uma saraivada de foguetes se elevou ao ar, seguida de muitos pistolões com fogos de artifícios, um dos quais foi direcionado ao Judas, começando a sua queima.
Aquele Judas foi especial. Quando o fogo pegou em seu corpo, e os fogos estourarem, começou a dançar em cima da roda, com movimentos de vai e vem seguido de sons, provocados habilmente por composições químicas diferente na pólvora, que davam impressão de uma grotesca gargalhada.
Os garotos estavam se divertindo a valer. Luis Augusto e Eduardo pareciam entender que, para conquistar Berenice teriam que mudar de estratégia. Por isso trataram de serem amáveis, porém sem dar muita marcação, para não incomodar a garota com excesso de agrados. A suspeita de que Johnny fosse um adversário perigoso, tinha se dissipado, pois a menina deu a entender que não pretendia namorar ninguém. Cada um dos dois nutria a esperança de conquistar a garota, que era fundamentada numa certeza, fruto de um otimismo varonil, que é, e sempre foi à maior fortuna de um jovem.
Eram onze horas da noite quando a Queima do Judas chegou ao fim. Nesse momento a maioria dos boêmios que estavam no Bar Joly se retirava para a festa do Tênis Clube. O mesmo acontecia com a confeitaria, que aos poucos ia se esvaziando porque era frequentada somente por famílias e, as que não pretendiam ir ao baile, começavam a se retirar para suas casas ou irem para a igreja à espera da procissão. O Bar Joly amanhecia o dia nas noites de festas, pois era um estabelecimento, que acolhia em suas dependências, os diversos notívagos, que tinham meios para isso. Era a hora da chegada dos seresteiros e boêmios, que com seus violões começavam a cantar suas belas e românticas canções.
Naquele momento Neide se despediu de Edgar e na companhia de Norma foi se encontrar com seus pais na vigília da igreja. Como os pais de Berenice e Eva Marli pretendiam ir para a festa do clube, a avó de Eva ficou na incumbência de tomar conta das duas garotas durante a procissão. Antes, porém, de irem embora, Berenice convidou os meninos a ficarem perto delas durante todo o cortejo. Após a despedida, os garotos seguiram juntos e foram dar uma olhada na porta do Tênis para ver o movimento.
O Baile do Sábado de Aleluia do Jequié Tênis Clube era sempre animado. Nesse ano, porém, a política ditou as regras e os interesses eleitoreiros fizeram com que a festa tomasse proporções nunca dantes acontecidas. Um candidato a governador do Estado financiou a festa, levando a tiracolo seus correligionários, pois a maioria deles eram candidatos a deputados e vereadores. O político de Salvador trouxe a Orquestra Tabajara, considerada uma das mais importantes Big Band daquele momento.
A aristocracia agropecuária da região e os grandes comerciantes da cidade apresentaram-se ao baile, trajados a rigor, acompanhados de suas elegantíssimas senhoras, que ostentavam belas joias e vestiam modelos comprados diretamente de Paris. Setores da classe média, como comerciários, bancários e funcionários públicos, compareceram em massa, usando seus escuros trajes completos, enchendo o salão e ocupando todas as mesas disponíveis. A rapaziada desfilava pelas dependências do clube, cortejando as elegantes senhoritas, com seus belos vestidos, costurados pelas modistas mais famosas da cidade. Os mais desinibidos convidavam-nas para dançarem ao ritmo do maestro Severino Araújo.
Os garotos ficaram um bom tempo na porta do clube, juntamente com outros curiosos admirando toda aquela conjuntura. Quando o relógio soou às vinte e três horas
e quarenta e cinco minutos, partiram para a igreja matriz, pois o início da procissão de aleluia seria à meia noite em ponto.
Entretanto, naquela noite especial, a vigília demorou mais do que o costume, devido uma serie de contratempos. Um desses foi à demora do bispo de Amargosa a chegar, devido um acidente acontecido na rodovia. O seu carro quebrou e foi preciso providenciar uma condução para o seu imediato transporte. O imprevisto atrasou a procissão em quase duas horas, Contudo, essa pausa proporcionou entre os jovens adolescentes a uma aproximação maior em suas cortes românticas. O cortejo começou com os fieis levando o andor com a imagem de Cristo, simbolizando a Ascensão do Senhor. Neide acompanhava a procissão perto de seus pais na companhia de Norma. Edgar, junto a Johnny, Luis e Eduardo; seguia sua garota, mantendo distância, pois o namoro dos dois continuava em segredo. Um pouco mais a frente ia Berenice e Eva Marli, acompanhada da avó. De repente o inesperado aconteceu. Dona Nonna, mãe de Johnny, na companhia de outras senhoras, se encontrou com os pais de Neide e a avó de Eva, ficando todos unidos na procissão, pois era colega deles na Congregação Mariana. Esse fato deixou os meninos e meninas seguirem juntos um do outro, sem suspeita de namoros entre eles por partes dos pais. Berenice distribuiu velas para Johnny, Eduardo e Luis. Edgar ganhou a sua vela de Neide, já com a proteção adequada para a borra derretida não queimar suas mãos.
A procissão da aleluia percorreu mais ruas, do que a do Senhor Morto. As pessoas seguiam o cortejo portando velas acesas, cantando o Hino da Aleluia em latim:
- “Rainha do céu, alegrai-vos, aleluia!”
Johnny gravou para sempre essa melodia em seu coração. Seguia junto a Berenice sem dizer nada, ouvindo aquele cântico sacro, como se fosse uma canção de amor. Do mais puro amor angelical concebido por uma alma pura e virginal, cuja harmonia seria ecoada por toda a sua vida. Quando a sua vela apagava em virtude de uma brisa mais forte, a menina acendia a sua com a dela, numa espécie de comunhão etérea.
Os jovens seguiam juntos, contritos e felizes. Pela madrugada quando o préstito religioso passou pela porta do clube a orquestra parou de tocar em sinal de reverência e todos vieram ver o cortejo, aplaudindo com acatamento aquele evento religioso.
No momento em que a procissão entrou na avenida, a aragem gélida do alvorecer começou a soprar com mais intensidade, deixando Berenice estremecida pelo frio. Eduardo, percebendo a garota com os braços encolhidos, gentilmente ofereceu o seu casaco, que foi aceito de bom grado pela menina. A penumbra da noite ainda era notada, quando a procissão chegou ao fim, concentrando os féis na praça da matriz, que aguardavam a missa campal a ser rezada pelo Padre Climério. Nesse momento, os galos das adjacências cantavam numa singularidade, formando uma espécie de polifonia agradável de ouvir. Um fino sereno começou a cair no momento da missa, aproximando os jovens um do outro, para melhor se aquecerem. Johnny postou-se juntinho a Berenice e, assegurando que ninguém percebia, segurou as suas mãos. Os dois permaneceram de mãos dadas até a neblina se dissipar. O garoto ficou tão feliz naquele encanto, que não percebeu o raiar de um novo dia.
De repente amanheceu. Parecendo um passe de mágica, a claridade diurna começou a tomar conta da praça, deixando Johnny perplexo com tudo aquilo, pois nunca tinha presenciado um amanhecer. O aroma agradável da manhã penetrava em suas narinas, enlevando a felicidade sentida naquele momento. Johnny e Berenice permaneceram juntos até o final da missa, quando as pessoas começaram congratula-se, uns aos outros, pela Ressurreição do Senhor.
Eram quase seis horas da manhã quando as pessoas começaram a se retirar para as suas casas. Berenice aproveitou a oportunidade para conhecer o pai e a mãe de Neide, e abraçar Dona Nonnita, desejando-lhe uma feliz páscoa. A garotada se despediu, marcando encontro nas portas dos cinemas. Berenice agradeceu e devolveu o casaco a Eduardo, comunicando a todos, que ela e Eva Marli iriam passar aquele domingo na fazenda do seu avô, no município de Ipiaú.
Eduardo subiu para sua casa no morro do Cruzeiro, enquanto Johnny, Luis e Edgar acompanharam Dona Nonnita. Seguiram todos juntos com os pais de Neide, que àquela altura já tinham travado conhecimentos com os garotos, simpatizando-se com todos, principalmente com o esperto Edgar.

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