sexta-feira, 27 de março de 2020

O encontro da turma na porta do cinema.

J. B. Pessoa

Capítulo - 27 do livro "Guris e Gibis"

O cadilac seguiu para o centro da cidade, conduzido por Seu Xavier, o velho chofer da família, que tentava puxar conversa com o amuado Orlando, enquanto Berenice e Eva Marli analisavam o desempenho dos colegas na peça teatral. Era uma comédia musical intitulada “A Caixa da Felicidade”, escrita e musicada pelo professor Jason Wilson, sendo dirigida pelo professor Antonin Brioude, o qual compôs a cenografia, e teve como assistente, o jovem Robson Roberto. O professor Jason Wilson adaptou os personagens de Monteiro Lobato, com os da Commedia dell’arte, em um espetáculo, onde o canto e a dança apareciam, de forma brilhante. O roteiro tinha diálogos interessantes, que primavam pelo humor, sendo o improviso sua característica dominante. Berenice, no papel da Colombina, dava mostras do seu talento para o balé, dançando e cantando numa comédia infantil, contracenando com os personagens Jeca Tatu, a boneca Emilia, Arlequim, pierrô, além de alguns palhaços. Chegando ao centro, Berenice ordenou o motorista, que seguisse para a Rua das Pedrinhas, onde residia Eva Marli. Depois de deixar a amiga em casa, seguiu para sua residência na Rua da Itália, entre as praças Luis Viana e Ruy Barbosa.
A garota convidou Orlando para o almoço, o qual aceitou de bom grado. Entrando em casa, a menina conduziu o moço para a biblioteca da residência, onde também funcionava o gabinete particular de seu pai. Visivelmente aborrecida, ela pediu explicações a Orlando sobre a sua conduta em relação aos convites, os quais foram enviados sob sua responsabilidade. Berenice repreendeu o rapaz com indignação e se declarou decepcionada com a sua atitude. Afirmou que estava perdendo a confiança em uma pessoa, a quem ela considerava como um irmão. Orlando fingiu arrependimento, e procurou se desculpar, alegando que o desaparecimento dos convites se devia ao atarefamento que sofreu naquele no sábado. O rapaz convenceu a menina de que, devido aos serviços que estava prestando à sua família, entregando doces e salgados aos bares da cidade, acabou se esquecendo do fato, só se lembrando naquela manhã, quando o assunto veio à tona em conversa com Johnny the Kid.
Berenice acabou perdoando Orlando. Ela sabia de suas espertezas, mas jamais poderia supor que o seu irmão de leite pudesse ser desonesto consigo. O rapaz tinha certas regalias naquela casa, e o próprio George Wood Spencer gostava dele. Sabia o motivo da afeição de sua mulher em relação à mãe daquele rapazola, a quem ele considerava como um maroto muito esperto. Orlando era o único dos servidores daquela casa, que tinha o privilégio de sentar-se à sua mesa e almoçar consigo. Tinha se acostumado a valores, um tanto esquisito, do seu ponto de vista, e tão diferentes da sua velha Inglaterra. Esse tratamento diferenciado gerava despeitos do resto da criadagem; principalmente diante da arrogância, que o rapaz fazia questão de exibir. O único empregado que ele mantinha um relacionamento mais estreito, era com o motorista da família, assim mesmo por puro interesse, pois o velho Xavier lhe dava caronas quanto não estava a serviço, satisfazendo assim, a sua vaidade de maneira corrompida.
Depois do almoço Berenice subiu ao seu quarto e foi descansar, para mais tarde repassar o texto da peça, o qual nunca era seguido à risca. Havia sempre as trapalhadas de um garoto que fazia o papel de um dos palhaços, junto a outro que fazia a boneca Emília. Esta, perdendo a característica original, arrancava muitas gargalhadas de uma platéia acriançada, composta por pais e felizes avós, que acompanhavam suas crianças naquele lazer despretensioso. Orlando ficou ainda algum tempo, conversando com o pai de Berenice, esperando uma oportunidade para conseguir o dinheiro para o ingresso da matinê. O Senhor Spencer deu-lhe uma nota de cinco cruzeiros, que dava para assistir o filme e fazer uma boa merenda mais tarde. Satisfeito com o rumo dos acontecimentos, Orlando despediu-se de todos e seguiu para encontrar a turma na porta do Cine Bonfim.
O relógio da matriz badalava às duas horas e quinze minutos, quando Orlando encontrou a turma sentada no batente de um dos portões do Prédio Castro Alves, que ficava de frente para a igreja, ao lado do Cine Bonfim. Pela primeira vez numa porta de cinema, a conversa da meninada sobre futebol suplantava a do cinema e quadrinhos. Géo era o mais animado. Naquele instante parecia que seu desejo de ser um craque do gramado, superava a velha aspiração de ser um artista de cinema. Gesticulava bastante, relembrando lances produzidos por ele, dando uma conotação superior à realidade do ato. Todos estavam felizes, sentindo-se como verdadeiros heróis. Nêgo, que andava chateado com a desclassificação do Siqueira Campos, naquele momento deixou a sua rabugice de lado e entrou na onda de satisfação que reinava entre a meninada. Não estava havendo nenhuma pilhéria ou gozação entre a garotada e até o incorrigível Mipai, mestre na arte da zombaria, naquela tarde, estava solidário com seus camaradas. Afinal, um time suburbano, o seu time, suplantou o mais famoso time juvenil da cidade.
A turma estava tão envolvida naquela animação especial, que os meninos não notaram a presença de Orlando no recinto. Havia alguns segundos que ele se postou em frente da garotada, com os braços cruzados e olhar de deboche. De repente todos pararam de falar, surpresos com aquela patética figura, que tentava se equilibrar na ponta dos pés, olhando para todos de cima para baixo, balançando a cabeça negativamente. Tõe Porcino, surpreso com aquela postura, perguntou admirado:
- Ué sujeito!... Há quanto tempo você está por aí?
- Até parece uma assombração! – disse Nêgo.
- Se fosse uma cobra me mordia! – Acrescentou Géo.
Orlando olhou para Géo com menosprezo e virando-se para a turma, disse com um sorriso de canto de boca:
-Eu sei com qual cobra ele quer ser mordido. É com cobra de Nicodemos!
Géo olhou para Orlando com ódio, e partiu enfurecido para a briga, deixando todo mundo pasmado com aquela atitude violenta; tendo sido contido pelos seus companheiros, com muita dificuldade. Foi difícil até para Edgar e Mipai, que eram os mais fortes, segurar o garoto. Orlando apavorado com a repentina ira de Géo, tratou logo de se desculpar:
- Calma, calma, calma que o petróleo é nosso!... Eu só estava brincando com você, irmãozinho!
- Você me respeita seu sujeito, que eu não sou nenhum veado! – Protestou Géo, já mais calmo, depois de ser dominado pela turma.
Tõe Porcino ralhou com Orlando e chamou-o à sua atenção, dizendo que, até para zombarias, é necessário haver certo acatamento, pois nenhum homem gosta de ter sua masculinidade posta em dúvida.
Orlando pediu mil desculpas, alegando que a sua intenção não era ofender a ninguém, que aquilo era apenas uma simples brincadeira.
Havia um conceituado cidadão na região, chamado Nicodemos, famoso nas zonas boêmias por uma particularidade especial. Os boêmios da cidade afirmavam que, o seu órgão sexual chegava às raias de quarenta e oito centímetros de comprimento. O homem tornou-se uma lenda. Com o tempo suas aventuras acabaram se confundindo com as do famoso “Bocais”, figura folclórica brasileira. Provavelmente, o personagem Bocais era misto do famoso poeta português Manoel Maria Barbosa Du Bocage, com o escritor italiano do final da Idade Média e começo da Renascença, Giovanni Boccaccio, cuja obra mais famosa, O Decamerão ou Decameron é considerada por muitos eruditos, como o primeiro livro realista da literatura.
Nas rodas da boemia jequieense ou entre a molecada era comum, ouvir casos escabrosos, substituindo o “Bocais” folclórico brasileiro por Nicodemos. Muitas das aventuras atribuídas ao jequieense eram plagiadas dos casos de Bocais e, muitos deles, podiam se ler nas páginas do famoso livro pré-renascentista de Boccaccio, sem os acréscimos exagerados da imaginação popular.
Mais uma vez Orlando fez suas apologias, com grandes doses de simulações, aproveitando a boa fé de seus camaradas. Como seus companheiros estavam em uma fase de grande contentamento, relevou as suas manhas, considerando-as como conseqüências equivocadas de uma mente desvirtuada. Ele próprio sabia que a turma não o tinha com muita consideração, Sentia-se triste com isso e, ao mesmo tempo, essa indiferença o aborrecia, deixando-o bastante indignado. “Quem era aquela turma sem eira e nem beira, que ousava desapreciá-lo?” - pensava a todo o momento. - “Um monte de suburbanos, moradores em ponta de rua, metidos a inteligentes, mas que não passavam de um bando de bocós!” Ele sabia que não era atraente, mas tinha boas relações com as pessoas certas, além do fato de ser um talentoso cantor. Seu grande sonho era ser um artista do rádio e aparecer cantando nos filmes nacionais. Orlando tratava seus amigos de infância e pobres como ele, com desrespeito e ao mesmo tempo bajulava-os, quando necessário.
A turma voltou ao assunto de antes, tendo desta vez a participação de Orlando, que se esforçava para ser simpático. Apesar dos pesares Tõe Porcino e Mipai gostavam dele. Porém o resto da meninada fazia suas restrições.
Pouco antes da sirene do Cine Bonfim tocar o último chamado, aparecem no local, Eduardo, Johnny e Luiz Augusto, fazendo festas à turma. Vinham acompanhados de Balbino e alguns garotos da Rua Santa Luzia. Edgar, vendo seus amigos na companhia do rapaz, chamou-os a parte e disse pasmado:
- Ué turma, eu não sabia que vocês tinham amizade com um tipo desses!
Luis Augusto sorriu e explicou a situação:
- Na semana passada, eu comprei fiado algumas revistas na mão dele, e efetuei o seu pagamento há poucos instantes e ele...
- E ele como é um cara de pau, bajulador, acabou envolvendo Luis e Johnny e você sabe como os dois são tolerantes! – interrompeu Eduardo.
- Deixa estar que todo mundo é filho de Deus! – Disse Johnny com bondade.
- Concordo com Johnny! – completou Luis Augusto.
Orlando, que era muito chegado a Balbino, ficou contente com a presença do amigo, apertou a sua mão, dizendo com alegria:
- Puxa a vida rapaz, você por aqui?!... Hoje não tem jogo no Estádio Aníbal Brito?
- Tem sim! É que a matinê de hoje é com o artista Rodou Chicote! E se o filme é colorido, nem te conto, eu deixo qualquer jogo para assistir!
- Rodou o chicote?! – Perguntou Luis, admirado.
- O jumento quis dizer Randolph Scott! Ele é um analfabeto de pai e mãe! – Disse Mipai, escarnecendo de Balbino.
Sentindo-se ofendido, Balbino refutou zangado:
- Me respeita seu sujeito, que eu estou no segundo ano, e eu não estudo francês!
A turma começou a rir da afirmação do garoto, enquanto Mipai completava:
- Na semana passada esse sujeito me disse que o nome do melhor filme que ele tinha assistido, era Covarde! Quando perguntei que filme era esse, ele me disse que era um filme feito, quando Deus andava no mundo! O artista do filme, ele tinha esquecido o nome, mais era covarde no começo e ficava valente no fim do filme!... Ah, sim! O nome do chefe dos bandidos era Nero! Adivinhe que filme era esse?
- Não faço a menor idéia! – disse Luis Augusto sorrindo.
- Johnny coçou o queixo, pensativo, e depois arriscou:
- Não seria Quo Vadis, o filme em questão?
- Acertou na mosca! – Respondeu o garoto com uma sonora gargalhada, sendo acompanhado pelo resto da meninada, que começava a mangar do desventurado rapaz. Balbino balançava a cabeça, dizendo aborrecido:
- Já disse pra vocês, que não sei falar estrangeiro!

Aproveitando a onda de gozação, que começou a reinar naquele momento, Mipai começou a desenterrar certas mancadas, ditas pelos seus companheiros em relação às pronúncias dos nomes de astros e estrelas do cinema. De repente, no meio da balbúrdia que começou a reinar, ouviram a sirene de o Cine Bonfim dar o terceiro e último apito, convidando seus espectadores à sessão da matinê daquela tarde brejeira.
A meninada entrou no cinema para assistir mais um filme de cowboys, estrelado por Randolph Scott, um dos maiores astros do faroeste. O cinema tinha poucos expectadores, pois a maioria da meninada tinha ido para o outro cinema, devido aos dois últimos episódios do seriado, visto pela turma no sábado á noite, quando burlaram o juizado, entrando pelos fundos do cinema.
A turma saiu da sala de projeção decepcionado com o filme. Apenas Johnny, Luis e Mamãe Eu Quero haviam gostado, pois se tratava de um musical a cores, produzido pela Metro Goldwyn Mayer, com a atriz Gypsy Rose Lee, intitulado “A Bela do Yukon”. Os três garotos acabaram sendo zombados pela turma, principalmente por Mipai e Nêgo, que adiava aquele sofisticado gênero de produção cinematográfica.
- Puxa a vida, que filme chato! – Berrou o indignado Nêgo.
Géo, chateado por haver gastado seus parcos cruzeiros em um filme, que considerou o pior que havia assistido, bradou com ironia:
- Até tu, Randolph Scott!... Você rodou o chicote na gente!
Isso sim, que é trocar gato por lebre! – Completou Mipai.
A turma ficou algum tempo papeando na porta do cinema, quando decidiram ir para a pista de patins. Johnny convidou seus amigos para ir ver a peça teatral na Casa Paroquial, sofrendo com isso novo deboche de sua turma. Com exceção de Luis e Eduardo, apenas Edgar acompanhou Johnny para o teatro, pois sua namorada o estava esperando. Mamãe Eu Quero seguiu seu primo e o resto da turma para a Praça Ruy Barbosa.

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