domingo, 16 de fevereiro de 2020

Um banho de rio.


J. B. Pessoa
Capítulo - 21 do livro " Guris e Gibis".

A tarde estava abrasadora com aquele ativo calor, que parecia tostar uma vegetação já ressecada pelos meses de estio. A rua estava deserta, com a maioria de seus moradores fazendo a sesta, enquanto a intensa claridade ofuscava a visão, de quem se atrevia a sair pelas ruas, sem uma proteção adequada. Luís Augusto descansava numa rede, armada na varanda de sua casa, quando recebeu a repentina visita do primo. Folheava o seu álbum de figurinhas, satisfeito por ter sido completado em pouco tempo, quando ouviu o grito de Johnny, com aquela turma de pândegos:
- Acorda preguiçoso!... Isso são horas de dormir?
O garoto ergue-se da rede e ainda sentado, espicha os braços, bocejando preguiçosamente, falando sem terminar de fechar o bocejo:
- Sou eu quem pergunta: isso são horas de perturbar um cidadão?
- Deixa de lorotas! A turma ta te convidando para ir ao rio tomar banho!
- Nessa hora?!... Deixa o sol esfriar mais um pouco! – retrucou o garoto sem nenhum ânimo para sair naquele momento. Edgar que sabia da predileção do garoto pelas frutas do sertão, disse animado:
- Vamos Lula, que vai chegar uma canoa carregadinha de melancias e umbus!
- Melancias nessa seca?! Estamos no final de março; já acabou a época dessas frutas! –Observou Luís, desejando que a notícia fosse verdadeira.
- Existem algumas frutas que dão fora do tempo! – Argumentou Edgar, querendo convencer o amigo àquela aventura.
Luís pensou um pouco e acabou concordando, pois adorava tomar banho de rio. Além de gostar de umbus, a idéia de encontrar melancias o seduzia. Pediu permissão a mãe para sair, e partiu com a turma para o lazer natural das camadas menos favorecidas da cidade. Os garotos caminharam contentes, naquela típica conversação de meninos de suas idades, discorrendo sobre filmes, quadrinhos e os mais variados assuntos de seus interesses.
Era uma hora da tarde quando os garotos chegaram ao rio, sob um sol ardente, que parecia derreter as pessoas que se atreviam a sair de casa. Naquele momento, a areia do rio estava tão quente, parecendo brasas aos pés descalços de Géo, Nêgo e Edgar, que gemiam sem cessar. Pé de Pata e Luís estavam bem calçados, porém Johnny usava uma alpargata de lona, que não protegia muito bem, fazendo o garoto padecer por alguns minutos. Nesse momento Géo, que era o maior brincalhão da turma gritou:
- O último que cair na água é mulher do padre!
Os descalços correram na frente para molhar os pés, suspirando aliviados. A turma ficou por pouco tempo se banhando, pois a água não chagava até os joelhos. Naquele começo de ano, as chuvas foram poucas e nessa época, o rio já tinha baixado o seu volume. Em algumas áreas, o rio estava tão raso que a água mal dava pra encobrir os pés
Os garotos seguiram adiante, rio acima, em busca de um poço profundo, onde a meninada pudesse nadar. Havia pouca canoas navegando naquele momento, devido ao escasso volume de água que, às vezes, encalhava uma
carregada de mercadorias, numa área de muita areia. Quando isso acontecia, era necessário esvaziá-la, tirando todo o seu conteúdo para que a embarcação, mais leve, pudesse deslizar livre novamente. Os garotos foram até uma parte do rio chamado “Poço do Velho”. Lá encontraram Eduardo Ferreira na companhia de Mipai, Tõe Porcino e seu primo, Mamãe Eu Quero. Pocino ficou muito alegre ao ver Johnny e Luis Augusto, pois tinha uma admiração muito grande pelos garotos.
- Vocês por aqui meus camaradas? - Disse Porcino abraçando os amigos.
- É isso aí! Vim conhecer o famoso balneário que vocês tanto falam! – Respondeu Luis Augusto, correspondendo àquela intensa alegria.
- Bal... O que?! – indagou Géo surpreso!
- Desculpe o cinismo! Balneário é um lugar público, recreativo, destinado a banhos!
De cima de uma pedra que servia de trampolim, Edgar gritou, antes de pular:
- Então o lugar e aqui mesmo!
A turma se despiu de suas vestes e tomaram banhos nus. Aquela parte era totalmente deserta e só os moleques freqüentavam aquele poço. Os garotos evitavam molhar suas roupas para não delatar suas desobediências. Eles usavam essa artimanha para burlar a vigilância dos pais, que proibiam os filhos de se banharem no rio, com medo de acidentes.
Ao longo do rio havia algumas depressões, que na época da seca, quando o volume de água era menor, formava verdadeiras piscinas naturais. O Poço do Velho era o mais famoso de todos, tanto por sua profundidade como pela sua extensão. Ficava situado numa área do rio, correspondente, entre os subúrbios do Curral dos Bois e Cansanção, na zona oeste da cidade. Era freqüentado pela garotada de todos os cantos da cidade, principalmente, pelas turmas do Jequiezinho que, às vezes, invadiam a área com violência. Esse bairro, situado na zona leste, era separado da cidade por um grande mangueiro, que ficava alagado na época das cheias. Suas turmas vinham preparadas para um confronto generalizado, pegando, sempre de surpresa, a garotada do Joaquim Romão. Outras turmas que chagava com arrogância era a do “Morre Sem Vela” e do “Sobocó da Ema”, subúrbios situados na zona norte da cidade. O “Morre Sem Vela” e outro lugar denominado “Corte”era separado pelo Rio Jequié, que naquela parte da cidade era conhecido como Rio Jequiezinho, cujo acesso era feito por uma grande ponte ferroviária. Esse rio, muito estreito, era afluente do Rio das Contas e separava oficialmente o bairro que lhe deu o nome, do resto da cidade. O pequeno rio tinha três poços famosos, chamados de Panela, Ponte e Raiz. Maior e mais profundo do que o Poço do Velho, a Panela tinha um barranco de quatro metros de altura, que a molecada adaptou um trampolim de madeira. Os poços daquele rio eram freqüentados pelas turmas do centro da cidade; motivo pelo quais, os suburbanos da zona norte, esnobavam os da zona oeste, leste e sul, chamando-os de índios. Todas as turmas periféricas da cidade eram denominadas de índios pelos esnobes do centro. Como as turmas do norte e oeste tinham objetivos comuns e interesses mútuos, acabaram fazendo as pazes, ficando unidos com as turmas do centro, que tinham um inimigo comum: as turmas do Jequiezinho, cujos representantes políticos queriam a sua emancipação e formar um novo município. Os únicos que ficavam de fora, era a turma da Caixa D’ água, que eram detestados por todos e a turma da zona sul, um subúrbio
separado da cidade pelo Rio de Contas, chamado Mandacaru, cujo acesso se dava por uma ponte com vãos de trezentos metros, construída para dar suporte à rodovia conhecida como Rio - Bahia. O lugar era pouco povoado, porém com grandes perspectivas de futuro.
Os garotos ficaram algum tempo naquele poço, nadando e brincando de aventuras submarinas. Depois de uma hora avistaram uma canoa que navegava rio acima para o povoado do Curral Novo. A turma pediu carona a seu dono, chamado de Chico Canoeiro, que os cedeu de bom grado, pois a turma o ajudaria a remar contra a corrente. Chegando a aquela povoação, que ficava à margem esquerda do rio, os meninos se despediram de Chico e seguiam por uma trilha na margem direita, para conhecerem um poço, muito comentado pelos canoeiros, perto de uma roça de melancias. Luís Augusto estava preocupado, pois estava se afastando demais da ponte Teodoro Sampaio, por mais de seis quilômetros. Mipai, que era o mais arrojado e não media as conseqüências, convenceu a turma a ir adiante.
- Turma! É o melhor poço do rio! É bem fundo e largo. Tem um barranco mais alto do que a Panela! Lá só pula quem é macho de verdade.
- Deixa comigo! – Bradou Géo com bravata.
- Gente: já são três horas da tarde! Se afastarmos demais, o risco de voltar à noite para casa será grande! – Expôs com apreensão, Luis Augusto.
Johnny e Eduardo concordavam com Luis. A diferença entre eles e o resto da turma era a obediência dedicada aos seus pais. Johnny sabia se ele cometesse alguma falta, seria punido com severidade pelo Sr. Miguel. Além de levar as recriminações dos pais, ficaria de castigo, sem ir á matinê por alguns domingos. Os demais garotos, além dos estudos, trabalhavam e ganhavam seu dinheiro, contribuindo nas despesas da família. Sendo assim, via necessidades dar satisfações aos pais. Géo, Nêgo e Pé de Pata tinham pais evangélicos e temiam o sermão deles, mas como eram irresponsáveis, só se arrependiam de suas faltas quando a palmatória “cantava” em suas mãos.
- É ali mesmo, perto daquele barranco. – Disse Mipai apontando para um lugar, próximo a uma roça. A turma andou um pouco até chegar a uma área muito bonita, que ficava distante do Curral Novo. O poço era largo e bonito, com águas profundas e cristalinas, situado em um lajedo, junto a um barranco, bem alto, no qual havia uma grande árvore. Era rodeado de pedras por todos os lados, impedindo que a areia aterrasse aquela depressão, formando uma verdadeira piscina natural. A turma quando viu aquela maravilha, caíram na água que estava fresca sob o sol escaldante do verão. Ficaram nadando um bom tempo, com brincadeiras típicas de crianças saindo da puberdade e entrando na adolescência. Os mais corajosos, como Edgar, Porcino e Mipai pulavam de cima do barranco e caiam na água, subindo novamente por um curto caminho para depois repetir a façanha. Luis Augusto era o único que dava saltos ornamentais, causando inveja aos demais. Johnny e Eduardo olhavam tudo aquilo, admirados com a coragem de seus companheiros, mas não arriscavam acompanhá-los nessa empreitada. O mesmo acontecia com o resto da turma
- Bando de frouxos! – Gritou Mipai, zombando dos amigos.
- Homem que é homem de verdade, não tem medo de nada! Vocês não passam de uns filhinhos da mamãe! São todos uns mariquinhas! – Gritava Porcino, morrendo de rir com o receio dos garotos de aventurarem a um ato simples como
aquele. Não suportando o escárnio dos camaradas, Géo, Nêgo, Pé de Pata e Mamãe eu Quero, munidos de uma súbita coragem, pularam do barranco e tomaram gosto pela coisa, saltando repetidas vezes. Restando apenas Johnny e Eduardo, que de maneira alguma se atreviam a realizar aquela façanha.
- Vocês não são homens, porras! – Insistia Mipai.
Johnny, que sorria com desdém, disse cinicamente:
- Como diz uma velha piada!... “Eu sou homem, porém não sou nenhum fanático”!
- E como diz os mais velhos: “não vou fazer bonito para o diabo ver”! – Retrucou Eduardo, não se importando com a zombaria dos seus amigos.
A turma desistiu de caçoar dos dois, que saíram juntos para dar uma olhada pelas redondezas. Verificaram que aquela cerca próxima ao rio, era de uma roça cheia de melancias, prontas a serem colhidas. Johnny chamou seu primo e o resto da turma mostrando aquela fartura. Porcino querendo colher algumas foi repreendido por Luís.
- Mas isso é um roubo! Não devemos pegar nenhuma, sem o consentimento adequado do proprietário.
Mipai estava morrendo de vontade de provar algumas. Quando ouviu a advertência de Luis, tranqüilizou o garoto, dizendo:
- Não se preocupe Lula! Essa roça e de um amigo do meu pai. A gente pega as melancias e depois paga a ele, que cobra uma mixaria por cada colhida na roça, pois ele não terá despesas alguma com o transporte!
Luis Augusto gostou da idéia. Era um excelente negócio, agradando, também a Johnny e Eduardo, que achavam lícito pegar antes e pagar depois. Os meninos entraram na roça e colheram algumas que eram de excelente qualidade. Eles ficaram nadando naquele poço, se fartando das melancias, numa demasiada algazarra, cuja vozearia se escutava ao longe. Essa brincadeira durou um bom tempo, até atrair a atenção de um canoeiro, pelas cascas das frutas que iam sendo levadas pela correnteza. Johnny notou que o canoeiro olhou para a turma com raiva e seguiu rio acima. O canoeiro relatou ao dono da roça, o que estava acontecendo em sua plantação. O roceiro ficou fulo de raiva com aquela notícia. Ele e a família tinham trabalhado arduamente naquela roça, durante vários meses. Com a falta de chuvas, tiveram decarregar água em carotes* para irrigar a plantação e não perder a colheita. Era a última safra daquele ano de poucas chuvas, esperando, com isso, fazer um bom negócio com a venda de suas melancias. Como andava revoltado com os assaltos sofridos em sua lavoura, chamou o filho e juntos foram acabar com a farra daqueles moleques.
Johnny subiu no barranco para ajudar Pé de Pata e Nêgo, que tinham ido pegar mais melancias. No momento em que os meninos saíam da roça, foram surpreendidos por dois sujeitos, armados de espingardas, que berravam cheios de ódio. Subitamente, o estampido de uma espingarda ecoou pela tarde adentro e o grito de dor de Nêgo foi ouvido por todos, naquele instante. Sendo atingido nas costas por um tiro, o garoto largou as melancias e pulou na água, rapidamente. Voltando-se para os atacantes, Johnny ficou por alguns segundos, paralisado pelo medo que sentia e viu um segundo tiro atingir Pé de Pata entre as nádegas, enquanto o menino pairava no ar, pulando no poço. Quando percebeu que um dos sujeitos estava recarregando sua espingarda, Johnny não pensou muito e pulou de
cima daquele barranco, que tinha mais de cinco metros de altura. Nesse momento, toda a turma saiu em debandada, atravessando o rio, fugindo pela margem esquerda. Os garotos embrearam-se pelas matas adjacentes e despistaram os furiosos roceiros, que pareciam querer sangue. Depois de correrem muito, os meninos pararam para descansar embaixo de um umbuzeiro que estava carregado de frutos maduros. Estavam todos ofegantes e assustados. Perplexos com aquela ocorrência, Johnny e Luís, ficaram preocupados com os ferimentos sofridos por Nêgo e Pé de Pata.
- Pelo amor de Deus!... O que aconteceu? Por que aqueles homens atiraram na gente?! - Perguntou Luís Augusto, perturbado com aquela situação.
O que você queria?!... A gente estava roubando as melancias dele! – Respondeu com cinismo Mipai, morrendo de rir com a ingenuidade do garoto.
- Você não garantiu que a gente podia pegar e pagar depois?!... Rapaz isso é uma grande loucura!
- O que esse sacana fala não se escreve! – Bradou Edgar, que estava chateado com a irresponsabilidade de Mipai, colocando a turma numa encrenca daquelas. Nesse momento, Johnny se lembrou dos tiros e falou preocupado:
- Os meninos foram baleados! Precisamos levá-los ao hospital!
A turma caiu numa prodigiosa gargalhada, surpreendendo Johnny e Luís, que sem entenderem nada, continuavam atônitos com as ocorrências daquela inusitada tarde de aventuras. Ficaram pasmos quando viram as vítimas Nêgo e Pé de Pata rindo, cinicamente, deles mesmos, ainda com os olhos vermelhos de chorar. Eduardo, que era da cidade e conhecia as artimanhas dos roceiros, falou:
- Não se preocupe com isso! Os tiros foram de sal!
- Como assim?! – Perguntou Luis intrigado
Nêgo, ainda rindo, mostrou as suas costas vermelhas, levemente sangrando pelos arranhões feitos pelo sal penetrado na pele e disse:
- Dói e arde pra porra, mas é só isso! O pior aconteceu com Pé de Pata, que levou um belo tiro no rabo.
Novas gargalhadas e desta vez até Luis que andava aborrecido com as estripulias daquela turma, riu a valer. Porcino estava bastante zangado em ter sido enganado por Mipai. Não podia admitir a idéia de ser passado por ladrão. Para não se aborrecer com o amigo, preferiu ficar alheio à conversa dos meninos, tratando de encher o seu embornal com os saborosos frutos daquele umbuzeiro. Luis provou alguns umbus e disse surpreso;
- Nossa! Como são doces! Vou levar alguns pra minha mãe.
O fruto do umbuzeiro desprende do galho durante o amadurecimento e continua o processo até apodrecer. Apesar de ser fora da época e da pouca chuva daquele ano a árvore estava carregada e naquele momento, o chão estava cheio deles. Os meninos aproveitaram e cataram muitos, usando suas camisas como sacos para carregá-los até as suas casas. Eles ficaram bastante tempo naquele divertimento e não sentiram as horas passarem. A tarde estava findando e o sol lançava seus últimos raios sobre a terra seca com o estio. A turma verificou que tinham se esquecido de tudo, não vendo o tempo correr e naquele momento estava bem longe de casa. Luis consultou o seu relógio, exclamando preocupado:
- Puxa a vida, são cinco horas!
- Vamos ter que “bater canela” até chegar anossa casa!– Disse Géo que detestava caminhar. Johnny, que estava com receio de chegar a sua casa, depois dos pais, balbuciou:
- Estou “lenhado”! Meu pai não vai perdoar! Ele pensa que eu estou estudando na casa de Luís!
- E eu disse pra minha mãe que ia para sua casa! - Observou Luis Augusto arrependido de ter se embrenhado naquela aventura.
Não suportando ver alguém arrependido, lamentando de ter feito algo, que para ele era normal, Mipai gritou, aborrecido:
- Bando de filhinhos da mamãe! Homem que é homem faz o que lhe der nas telhas e não fica aí, chorando pelas paredes, feito um maricas!
- Existe uma grande diferença entre meninos de família e biribanos! - Ponderou Edgar Pezão, que tinha uma grande admiração por Johnny e Luis e se sentia honrado com a amizade dos dois.
- Ta me chamando de biribano sujeito? – gritou Mipai indignado com o amigo.
- Não! Mas é um mentiroso. Você disse pra todo mundo aqui, que o dono da roça era amigo de seu pai e que a gente podia pegar as melancias e pagar depois.
Ouvindo a indignação do amigo, o garoto ponderou um pouco e, caçoando da turma, explicou:
- Ah!...Foi de araque!... Araque braque, turma!... Mas foi divertido, não foi?
- Foi!... Mas você não tomou um tiro de sal na bunda que nem Pé de Pata! - Observou Mamãe Eu Quero, rindo da infelicidade do amigo, sendo acompanhado das gargalhadas do resto da meninada.
Os garotos relevaram os acontecimentos e vieram caminhando pelas veredas da caatinga naquela puerilidade cativante. Luís abonou o episodio da roça e agora estava vendo tudo aquilo, como uma eventual experiência da sua juventude. Eduardo, que também estava preocupado em chegar atrasado, acabou se rendendo à animação pueril da garotada. A maioria deles estava entrando na adolescência e suas brincadeiras eram ainda infantis, cheias de fantasias. Nêgo e Pé de Pata sentiam-se como verdadeiros heróis, feridos no campo de batalha. Não estavam ligando para as zombarias de Géo e Mamãe Eu Quero, que a todo o momento relembrava o ocorrido, dando boas risadas. Johnny caminhava quieto, tentando se lembrar de onde conhecia aquele canoeiro, que passou por eles, quando a meninada roubava as melancias. Não conseguindo, pediu ajuda a Edgar:
- Rapaz, eu já vi aquele canoeiro antes. Tenho certeza que foi ele quem dedurou a gente para o dono da roça!
- Deixa isso pra lá! Eles vão fazer o que com a gente?
- Não sei! É uma cisma minha!
Quando os meninos chegaram ao Curral Novo, faltavam vinte minutos para as seis horas da tarde. Johnny, a pretexto de comprar umas cocadas, entrou na principal venda do povoado, para sondar o ambiente e ver se havia alguém à procura deles. Como temia represálias do dono das melancias, puxou conversa com o balconista, que ele conhecia da porta dos cinemas, para averiguar, sem dar na vista, se havia algum comentário a respeito do ocorrido. O lugar estava repleto de trabalhadores que, depois de uma árdua jornada, faziam daquele estabelecimento, o ponto de encontro, para uma boa conversa, acompanhada a tragos de aguardente.
Ninguém comentou nada do assunto, o que deixou Johnny aliviado. O sol ainda estava alto, pois no verão o crepúsculo acontece mais tarde do que nas outras estações. Os roceiros comentavam a demora das chuvas, pois o estio prolongado começava a incomodar aqueles agricultores, que viviam na labuta diária em suas terras.
A turma se preparava para a longa caminhada de seis quilômetros até as suas casas, quando parou na venda um caminhão carregado de lenhas, que ia para a cidade. Géo conversou com o motorista e os garotos ganharam carona até a Rua Gameleira, onde existia uma padaria da qual, destinava o carregamento. Os garotos subiram na carroçaria do caminhão e se acomodaram no meio das lenhas numa algazarra total. Johnny, Luis e Eduardo estavam aliviados, pois chegariam a suas casas antes do anoitecer. O resto da turma continuou com suas zombarias, relembrando a brincadeira, combinando voltar aquele poço para repetir a aventura.
- Não contem comigo! Não sou nenhum biribano, ladrão de cebolas! – Falou Tõe Porcino, que igual a Edgar trabalhava na feira e ainda estudava, tendo muito orgulho de sua independência e honradez.
- Quem é que andou roubando cebolas, seu sacana? – protestou Mipai, com raiva, sabendo que aquela indireta era para ele e julgava que a indignação de Edgar e Porcino não passava de hipocrisias.
- Eu não chamei ninguém de ladrão! Mas, como dizia meu falecido avô: “quem clama por justiça, deve ser, antes de tudo, um justo”!
Luis Augusto concordou, categoricamente, com Porcino, admirado com a sensatez daquele menino pobre, que defendia com eloqüência os princípios de moral e civismo, aprendidos no seio de uma família humilde. Na verdade ele admirava a turma toda, que, apesar de algumas criancices, peculiares da idade, denotavam uma precocidade fora do comum. Ele mesmo era considerado pelos seus conhecidos, como um menino de comportamento adulto, sendo isso, o referencial da sua amizade com aquela turma. Johnny, que também respeitava o amigo e, não querendo saber de brigas entre a sua turma, ponderou a questão com um provérbio popular:
“Águas passadas, não movem moinho”! - Vamos esquecer tudo isso e apertar as mãos.
Mipai foi o primeiro se manifestar e estendendo a mão para Porcino, perguntou:
- Mãos de amigo?
- Mãos de amigo! – Respondeu Porcino com o seu largo sorriso.
O caminhão seguia pela estada que o levava a cidade, com os meninos em cima, que iam cantarolando uma cantiga, cujos versos eram de uma molequice típica de uma turma, que não respeitava os valores convencionais.
Géo soltava sua voz com a modinha:
- Quebra, quebra guabiroba!
A turma respondia com o refrão
- Quero ver quebrar!
Géo novamente:
- Quebra lá, que eu quebro cá!
Os meninos:
- Quero ver quebrar!
Terminando a estrofe, cada um criava e lançava um verso de conteúdo maroto, obedecendo ao ritmo e melodia da cantiga. Os meninos aproveitavam o momento e caçoavam um dos outros, numa disputa sagaz na arte de versar.
Mipai aproveitou a ocasião para zombar de Pé de Pata, lançando um verso indecoroso, que feria os brios do amigo, acompanhado do mesmo refrão.
- Eu conheço um sujeito!
- Que é besta pra chuchu!
- Foi roubar melancias!
- E ganhou um tiro no cu!
Novas algazarras em cima do caminhão, seguidas de novos versos, mais indecorosos ainda. A tentativa de sobrepor os demais com versos mais espirituosos estava começando a suscitar rancores. Preocupado com isso, Johnny chamou a atenção da turma, energicamente:
- Vamos parar com isso, pois brincadeiras têm limites!... Vocês querem que o motorista expulse a gente do caminhão?
Géo, corroborando com a atitude de Johnny e temendo ir a pé o restante do percurso acrescentou:
-A gente teve muita sorte de encontrar este carro, que estava atrasado! Senão todo mundo ia voltar no pé grande!
- Aí, a vantagem ia ser de Edgar Pé Grande! –Disse às gargalhadas, Mamãe Eu Quero, numa alusão ao apelido do garoto, sendo acompanhado com um coro de gozações do restante da turma
- E uma dúzia de cascudos numa cabeça de coco, que só tem merda dentro é vantagem de quem, seus bandos de sacanas? – Gritou Edgar que não gostava do seu apelido.
A turma toda ficou calada, pois ninguém queria encrenca com o robusto garoto. Nem mesmo Mipai e Porcino que eram da mesma idade, se atreviam desafiar o famoso Edgar Pé Grande. Dessa vez foi Luís quem ponderou a confusão, pedindo a todos que acabassem com as zombarias, pois aquela brincadeira já estava passando da conta. Com os ânimos menos exaltados e cansados das estripulias daquela tarde excitante, a turma ficou quieta no restante da viagem, até o caminhão chegar ao seu destino.
Eram poucos os minutos passados das seis horas da tarde, quando o caminhão parou na frente da padaria. O serviço de alto falante anunciava o Ângelus e uma melancolia atingiu Luis, sentindo saudades da sua vida na capital baiana. Saltando do caminhão, os meninos agradeceram ao motorista, ofertando a ele uma boa quantidade de umbus. Estavam todos contentes, principalmente Johnny, Luis e Eduardo que estariam chegando a suas casas no horário previsto. Os meninos caminharam juntos até o pé da ladeira da Rua Rio de Contas, onde Luis e Eduardo de despediram da turma e subiram para suas casas no alto do Maringá e no morro do Cruzeiro. Johnny e o restante dos garotos deixaram Mipai, Mamãe eu Quero e Porcino na Rua Santa Luzia e seguiram para suas casas na Rua Siqueira Campos
Aquela tarde calorenta tinha sido excitante demais para Luis. Chegando a sua casa tomou um bom banho e depois do jantar caiu de cansaço em sua cama, não se importando com o luar magnífico daquela noite. Foi dormir pedindo aos anjos para sonhar com a encantadora fada, sua bela Berenice. Johnny, após o
jantar, ficou algum tempo com seus pais, proseando na calçada, enquanto observava sua irmãzinha, cantando cantigas de roda com outras crianças.
A noite estava maravilhosa, com seu luar prateado derramando a sua argêntea luz naquele subúrbio singular; trazendo, com isso, contentamentos a seus modestos moradores. Apesar de o dia ter sido calorento, a noite estava agradável. Uma suave brisa, típica da caatinga, que ia esfriando com o passar das horas, deixou Johnny bastante relaxado, que cansado das aventuras do dia, pediu as bênçãos de seus pais e foi dormir o sono dos justos.


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