sábado, 22 de fevereiro de 2020

A Tempestade.


J. B. Pessoa
Capítulo - 22 do livro "Guris e Gibis"

Logo após o alvorecer daquela especial manhã, já se notava certa instabilidade climática. O tempo estava nublado e fazia muito calor. Havia alguns meses que não chovia; apesar de ter caído uma escassa chuva pela madrugada, logo após a quarta feira de cinzas, a qual amenizou o clima tórrido da região. Houve escassas precipitações nas cabeceiras do Rio das Contas, motivando grandes esperanças; porém, aquele estio demorado estava preocupando os pequenos roceiros da caatinga e já tinha secado a vegetação das cercanias, dando a impressão de uma seca prolongada. Os catingueiros já haviam feito procissões e promessas, para salvar as suas roças e esperavam a famosa chuva do dia de São José, que não caiu na data prevista, mas poderia acontecer a qualquer momento, trazendo a fartura do milho verde para as festas juninas, abrindo o período das chuvas de março, que fecharia o verão.
Naquela segunda feira, Johnny foi despertado com um forte cheiro de terra molhada. Pulou da cama bem cedo e tomou um banho frio, para tirar o ranço da preguiça, que o incomodava. Ele era sempre o último a se levantar e por várias vezes sua mãe precisava ser enérgica, pois o garoto tinha muita dificuldade em acordar cedo. Adorava o sono da madrugada e sentia prazer em acordar tarde. Depois do café, pegou sua maleta escolar e despedindo-se da mãe e irmã, partiu alegre para sua escola.
Todas as manhãs, a diretoria do Grupo Escolar Castro Alves reunia seus alunos em um dos pátios, para entoarem os hinos cívicos e rezarem as orações ministradas pela professora Beth Azevedo. Após a reunião, as turmas se dirigiam às suas salas para mais um dia letivo. Johnny, Luis e Eduardo eram colegas de sala e cursavam o quinto ano primário na classe da professora Emília Ferreira. A sala dos garotos ficava na parte da frente, com vista para a Avenida do Rio Branco, ao lado direito do prédio, dando uma visão privilegiada de boa parte da cidade. A classe era mista, na qual havia várias meninas bonitas, causando invejas nos garotos de outras salas.
Minutos antes da chegada da professora, ocorria na sala, uma balbúrdia marota, motivada pela chegada de Orlando, que repetia pela terceira vez, o quinto ano primário. Como era o aluno mais velho da turma, tinha arvorado a si mesmo, a pretensão de líder da classe. Ele e Luís foram os últimos a aparecer. Luís pelos problemas gerados com sua transferência e Orlando pelos apelos de sua mãe à professora Alíria Argolo, para aceitá-lo novamente àquela escola. A secretária escolar o colocou na classe da professora Emilia, que era famosa como educadora severa. Quando o rapaz percebeu Johnny e Luis, lhe observando com ar de desaprovação, ponderou às suas agitações e chegou fazendo festas, principalmente para Eduardo, que o recebeu friamente. Johnny, surpreso com aquela novidade, saudou o amigo com uma frase típica da literatura dos quadrinhos:
- Olá Orlando! Que bons ventos o traz aqui?
O jovem rapaz olhou para o amigo com o semblante entristecido e, fingindo preocupação, respondeu:
- Ih, meu camarada, me botaram nessa fria! Vou ter que agüentar a fera o ano inteiro!
- Do que você está falando, rapaz? – perguntou Luís curioso com aquela observação.
Orlando olhou para os lados, certificando-se de que ninguém o ouvia, abraçou os dois garotos e, trazendo a si numa postura de cumplicidade, falou à surdina:
- Da professora Emília Ferreira! Aquilo é carne de pescoço, meu camarada...
- Para os malandros estúpidos e arrogantes, que não querem nada com os estudos – Interrompeu Eduardo, com indignação, pois não admitia críticas à sua querida mestra.
- Bom! Isso é verdade, o que não é o meu caso! – Disse Orlando sem o menor pejo, acrescentando:
- Minha mãe é muito amiga da professora e é por isso que eu estou aqui. Mas que ela é osso duro de roer, isso ela é!
- Claro!...Esse é um dos motivos da nossa admiração pela professora, pois ela afasta do nosso convívio os garotos impertinentes! – Disse Eduardo com soberba.
Luís abraçou Orlando com cordialidade e estava contente em saber, que o garoto seria seu colega naquele ano letivo. Eduardo, não querendo guardar rancores, acabou por sucumbir diante das amabilidades, cheias de lisonjas de Orlando.
Os garotos sentaram em suas carteiras no final da fila, ao lado esquerdo da sala, próximo às janelas que davam visão para a avenida. Em todas as salas havia três fileiras de carteiras, com bancas semelhantes às escrivaninhas, as quais comportavam dois alunos. As fileiras do meio e da direita eram reservadas às meninas, que compunham um número maior naquela classe. À frente cada escrivaninha havia bancos colados, fazendo parte da mesma unidade. Os alunos que estavam sentados em bancos colados à escrivaninha, usados pelos colegas de trás, usavam outras escrivaninhas que tinha bancos colados, sentados pelos colegas da frente, e assim sucessivamente. Luis e Eduardo sentaram juntos, enquanto Johnny e Orlando ficaram atrás dos amigos, sendo os últimos daquela fila. As meninas, sendo a maioria, ocupavam toda a fila do meio, exceto a última carteira, ocupadas por dois irmãos, que moravam numa rua da periferia norte, conhecida com Rua do Morre sem Vela. Apesar de temer a professora Emilia, Orlando estava satisfeito com a classe onde iria estudar, pois a maioria dos seus colegas pertencia à elite jequieense. Ficou contente em ter como colega um garoto do nível de Luís, mas tinha uma profunda antipatia por Eduardo, a quem considerava com um perfeito mequetrefe. Já em relação ao Johnny, ele o considerava como um garoto de pouca importância, mas como era estimado
pela turma da Siqueira Campos, isso contava muito para ele, pois Porcino, Mipai e Edgar já o haviam salvado, por diversas vezes, de muitas encrencas, principalmente com as turmas do Jequiezinho. As amizades de Orlando eram baseadas nas possíveis vantagens que ele poderia ter. Sabia articular em interesse próprio e era um dissimulado que conseguia convencer as pessoas, com quem mantinha relações de amizade. Luis notava essa falha em seu caráter, mas era complacente com isso, devido à vida que o garoto levava, pois era obrigado pela mãe, a trabalhar arduamente para a manutenção da família, fato que o fazia ser reincidente nos estudos. A turma da Siqueira Campos gostava dele, porém com certas ressalvas. Tõe Porcino e Mipai tinham certa afeição pelo rapaz, pois cresceram juntos. Os dois conheciam bastante as suas artimanhas, e se davam bem, apesar de Porcino ter uma postura diversa de Orlando. Para o negrinho, honra e dignidade eram as maiores fortunas almejadas pelas pessoas de bem.
Orlando conversava animadamente sobre as coisas que estavam acontecendo na cidade, quando a professora Emília adentrou-se a sua classe com a austeridade de sempre. Nesse momento um silêncio respeitoso reinou no recinto. Ela cumprimentou seus alunos com um sonoro bom dia, cujo efeito foi à resposta em um coro articulado:
- Bom dia professora Emília!
Apesar da fama de durona, a professora Emília Ferreira era uma verdadeira mãe para seus alunos. As meninas adoravam a sua mestra, as quais confiavam e confidenciavam problemas, que não tinham coragem de exporem às suas mães. Era senhora forte, que não havia chegado ainda, à casa dos quarenta anos. Os moleques a temiam, pois conheciam bem a sua mão pesada. Ela batia forte e não tinha medo cara feia. Seus antigos alunos costumavam narrar certa lenda a seu respeito.
Após a sua formatura, a professora Emília foi convocada pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, para lecionar no povoado do Curral Novo. Nessa época, ainda existia na localidade, vestígios de jagunços que haviam escapado das garras da Revolução de 1930. Certa ocasião, um garoto de doze anos, que não respeitava ninguém, ousou desacatá-la em plena sala de aula. Ele era filho de um perigoso pistoleiro, que era temido por todos na região. A professora Emília não titubeou. Agarrou o moleque e lhe aplicou uma tremenda surra com uma vara de marmelo. Foi um deus-nos-acuda. Os habitantes do lugar, temendo pela vida da professora, tentaram levá-la dali, o mais rápido possível. Porém, a moça não arredou o pé de sua sala de aula. Pegou a sua pistola de dois canos, calibre 38, carregou com duas balas e, colocando a arma sob alguns cadernos, esperou pelo afamado valentão. Pouco depois, o pai do garoto apareceu perguntando pela professora Emília. Ela se apresentou altivamente e ele a congratulou pela merecida punição, sentenciada ao seu filho, alegando que, nem ele mesmo tinha conseguido àquela façanha. Disse para a professora que ela tinha o seu respeito e que, se ela precisasse dele pra qualquer coisa, podia contar com o seu apoio. Se o moleque do seu filho não andar
direito, ela poderia fazer uso da sua palmatória, a qualquer momento. A professora Emília agradeceu a compreensão e explicou a necessidade de uma disciplina mais rígida na educação da mocidade. Os dois, pai e mestra, acabaram tornando-se ótimos amigos e o impertinente garoto acabou sendo domado, concluindo com louvor o curso primário.
A professora iniciou sua aula com a matéria Educação Moral e Cívica, seguida com lições de Língua Pátria. Pediu que um dos alunos lesse um texto de Ruy Barbosa, o qual fazia parte do conteúdo dos livros Programa de Admissão e Admissão ao Ginásio, sendo acompanhado pelos demais da sala. A aula seguia em seu ritmo natural quando, antes da hora do recreio, o tempo começou a escurecer. O prenúncio de uma chuvarada podia ser notado naquele momento, pois havia um calor intenso, sendo intercalado por brisas frescas de odor agradável. A professora foi até a janela e, olhando para o horizonte, certificou-se de que, a chuva vinda do oeste. Ela esclareceu para os alunos que, segundo os roceiros, quando a chuva surgia do sertão era uma verdadeira tempestade. De repente, os ventos tinham ficado mais fortes e tempo mais escuro, quando um aterrorizante trovão rasgou os céus jequieenses. A partir daí, uma série de trovões e relâmpagos acontecia, dando origem a uma tempestade, que caiu sobre uma cidade, ávida de um bom aguaceiro.
As meninas, assustadas com os trovões, correram e abraçaram a sua professora, na procura de uma proteção. Ela sorriu compreensiva e explicou para a classe que ela estava diante de um fenômeno da natureza e, portanto normal. Aproveitando o excepcional acontecimento, a aula passou para as Ciências Naturais e a mestra esclareceu para a meninada temerosa, a origem dos ventos e das descargas elétricas que provocava os trovões, iniciando àquela precipitação.
Chovia com intensidade. O pessoal foi até as janelas da sala e verificaram que a avenida havia se tornado um verdadeiro rio. Aquele aguaceiro durou cerca de duas horas, terminando ao meio dia. Logo após a chuva, o sol apareceu, deixando a cidade com ar mais puro, dando um efeito primaveril a um outono que estava chegando. Os meninos saíram da escola contentes com aquele clima, que irradiava alegrias e, por toda a parte havia um contentamento visível no semblante de cada um.
Na saída da escola, quando todos seguiam para suas casas, Johnny combinou com os colegas, de ir ver o rio pela Ponte Theodoro Sampaio, logo mais à tarde. Após se separar de Luis e dos demais colegas, Johnny seguiu sozinho pela longa Siqueira Campos, que estava enlameada por falta de calçamento. Havia água correndo em algumas partes e a criançada aproveitava a oportunidade para brincar com seus barquinhos de papel.
As chuvas duraram vários dias, sendo mais aprazíveis no final da semana. A temperatura caiu e um deleitável frio começou a reinar na cidade.

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